01
"Argh..." Eu me espreguiçava, sentindo uma dor pulsante nas costas. "Que cama terrív... espera um segundo!" A realidade me atingiu de uma vez, me arrancando do último resquício de sono. Eu não estava no conforto da minha cama, mas sim sobre um monte de feno num celeiro abandonado. O sol se esgueirava pelas frestas da madeira velha, lançando raios dourados diretamente no meu rosto.
Meu estômago rugia feito um monstro faminto, porém era a sede que me atormentava, mas me atormentava mesmo. O que restava do pão duro e queijo mofado virou um café da manhã improvisado. Mas água, essa era um problema. Nada desde que cheguei nesse mundo. Entre uma mordida e outra, um som sutil chamou minha atenção. Será água correndo? Estaria tão exausto ontem a ponto de não ouvi-la?
Engoli o último pedaço de pão e me levantei. O celeiro parecia bem menos ameaçador sob a luz do sol, e a natureza ao redor vibrava numa sinfonia de cores e sons. Os pássaros exibiam plumagens exóticas, suas formas eram estranhamente familiares, mas com um toque bizarro - jamais esquecerei do tucano com bico de beija-flor.
Segui a trilha sonora do que eu suspeitava ser água correndo. Após dez minutos de caminhada relaxada, lá estava: um pequeno córrego, suas águas turvas e opacas sob o sol matinal. Por um momento, fui levado pelo impulso de beber diretamente dali.
No entanto, um conselho antigo reverberou na minha mente: "Nunca beba água direto da fonte se não puder ferver, mesmo que pareça clara e limpa. A transparência não garante a ausência de microrganismos!" As palavras de 'Pink_Fire_Flames', um criador de vídeos de tutoriais do jogo que eu jogava, talvez me salvaram de uma baita dor de barriga.
Obviamente, aquela água não estava clara nem limpa. Sem possibilidade de ferver, optei por investigar a fonte. Peguei um galho caído e caminhei um pouco rio acima, buscando algum sinal de contaminação. No lugar, encontrei algo muito pior: uma criatura morta, um híbrido grotesco de rinoceronte e capivara, jazia no meio do córrego. Repugnante. Tanta água corrente e eu não poderia beber uma gota sequer, muito menos ferver. Que inferno!
Sei que o você vai me perguntar, mas porque não foi mais acima antes da água chegar no animal morto para tomar? Bom, eu tentei, mas a cor da água estava igual. E eu realmente não cheguei a esse mundo para morrer por água contaminada um dia depois.
Sem uma mochila ou algo similar, eu estava preso carregando o meu único pertence na mão, a garrafa de vinho. Ela realmente não ficaria em boas condições após passar o dia todo naquele sol quente. Eu sabia que no fim, seria só um peso extra, eu não tinha outra escolha, não havia como ficar carregando a garrafa para todo o lado, portanto, resolvi deixá-la no chão e seguir adiante.
Resolvi voltar ao celeiro, agora muito mais frustrado do que quando acordei, o sol estava realmente quente, eu teria que fazer alguma coisa antes de voltar à estrada, enquanto caminhava, me lembrei de um episódio de um programa de sobrevivência que assisti uma vez, 'À prova de todos' eu acho? Que sugeriu usar a camiseta para proteger a cabeça contra o sol. Então, chegando ao celeiro, virei a camisa do avesso, já que o lado de fora estava todo sujo e desgrenhado, vestindo-a na cabeça como um turbante improvisado. Eu realmente não sabia se isso ia funcionar, mas que escolha eu tinha? Além disso, também levantei a barra da minha calça o mais alto que pude, eu sabia que a jornada seria longa, longa, quente e muito, muito desidratada.
02
Retornei para a estrada, seguindo na mesma direção de ontem. Agora, com o sol iluminando tudo, optei por andar na linha de árvores, um pouco mais distante da estrada principal, era um pouco mais fresco e eu não ficava tão à vista. Desde o encontro no acampamento, a paisagem tinha mudado para colinas ondulantes e florestas, muito diferente das estepes abertas de antes, felizmente.
A mente tende a divagar durante longas caminhadas, ou talvez pela desidratação extrema. Enquanto eu me movia, comecei a observar o sol. Havia apenas um, e tinha a mesma cor do nosso. Um bom sinal, talvez? Minha paixão pela Astronomia me fez ponderar sobre as propriedades físicas desse sol alienígena. Mas então, e o tempo aqui? O dia teria 24 horas? E um ano, quantos dias teria? AAAH! Que SEDE, a minha cabeça tá doendo demais. Resolvi que era melhor parar de ficar pensando e tentar só andar.
Já fazia, a julgar pela posição do sol, algumas horas desde que saí do celeiro quando uma realidade um tanto desagradável tomou conta de mim depois que parei de divagar: eu estava fedendo. Não que eu pudesse fazer muito sobre isso, não ia me arriscar a tomar um banho naquele córrego. A caminhada incessante, a sujeira e os arranhões... tudo contribuía para um cheiro bem desagradável. Só esperava que, caso encontrasse alguém, não pensassem que eu era um vagabundo ou algo assim.
Meus pensamentos se voltaram para as roupas que eu estava vestindo. Lembrei-me de Kazuma na Light Novel. Ele foi transportado para esse mundo vestindo um conjunto de moletom, enquanto eu estava com uma camisa do Battlefield e uma calça esportiva. Realmente, assim como ele, parecia um grito de "virgem" a todos que pudessem ver.
Eu continuei caminhando, meus passos ecoando na estrada que se tornava cada vez mais desgastada, assim como meu All-Star falsificado (que por sinal, já estava começando a furar, assim como minhas esperanças). No início, parecia uma estrada de verdade, cheia de pequenas pedras. Agora, era mais como um caminho de terra batida. Isso não era nada bom.
Fui continuando o meu caminho, sem ter ideia de quantas horas se passaram. A única certeza era que, exceto pelos sujeitos que encontrei no dia anterior, não vi sinal significativo de vida. Ainda assim, sons estranhos preenchiam o ar, vindos da vegetação ao redor. Podiam ser animais, ou talvez monstros. Sem nem uma faca para me proteger, e tendo apenas um galho como defesa, cada barulho estranho era motivo para acelerar o passo. Sempre havia a sensação de estar sendo espreitado, talvez fosse apenas paranoia... ou talvez não, de toda forma, sempre que isso acontecia eu andava mais rápido, meu coração palpitava e eu esquecia da sede, que já me consumia.
O sol já não estava a pino, parecia final de tarde, e a sede ainda pior, com uma dor de cabeça tremenda, a boca seca, a garganta seca, dor por todo o corpo, tudo estava terrível, eu realmente começava a querer desistir (ao menos a camiseta protegia a cabeça, isso de fato funcionou, amém!).
Finalmente, após o que pareceu uma eternidade caminhando, avistei algo. Uma placa? Sim, uma placa! Era a primeira indicação de civilização que eu encontrava. A placa de madeira estava em uma bifurcação na estrada, apontando para a direita.
Aproximei-me, meio incrédulo. A madeira estava rachada e manchada em várias partes. A tinta, outrora brilhante, agora estava desbotada, adicionando mais um desafio à minha tarefa. Mas, com algum esforço, consegui decifrar:
"Par...éns, viaj...e! Estás a... 300 F...ls... alcançar a... extraordin...a dos demônios car...sins!...maravilhe-se com... nossa renom...a linhagem... temida até pelo...ei Demônio! Se tu... turista, bem-v... à nossa a...dora comunidade! Se... um demônio... ousarás... afrontar... a nossa for...a inigual...a?"
Apesar do desgaste e da falta de algumas palavras, a mensagem era clara. A placa estava apontando o caminho para um lugar chamado vila dos demônios carmesins. Aparentemente, uma comunidade que se orgulhava de sua força e de seu legado, a ponto de até mesmo desafiar demônios.
Depois de interpretar a mensagem na placa, fiquei ali parado por um momento, engolindo a secura da minha garganta. A linguagem teatral, os feitos grandiosos, tudo isso era muito característico dos demônios carmesins que eu conhecia das light novels. Pelo menos, parecia que este mundo não era tão diferente daquele. Mas 300 f...is? Que unidade de medida seria essa? Não consigo me lembrar de nada parecido.
No entanto, independentemente do que significasse, isso poderia ser uma oportunidade. Sabia que a vila dos demônios carmesins estava distante de Axel, pelo menos no mundo da light novels. Então, esta poderia ser minha melhor aposta para encontrar pessoas com quem eu poderia me relacionar de alguma forma. E mesmo que fosse uma longa jornada, eu não tinha muitas opções.
O estado desgastado e apagado da placa sugeriu que a vila estava realmente longe, talvez a muitos dias de viagem, mas mesmo assim, senti um lampejo de esperança. Com um destino definido e a motivação renovada, eu estava pronto para enfrentar o desconhecido que me esperasse na estrada...
03
Eu continuei minha caminhada, agora em direção à tal vila dos demônios carmesins. Conforme o sol se punha, minha fome e sede se intensificaram, cada vez mais insuportáveis. A luz do sol se foi e a estrada ficou mais escura, as sombras das árvores pareciam mais assustadoras, por isso, resolvi agora caminhar na estrada. Porém, tendo em vista a sede extrema, minha mente começou a me pregar peças. A realidade parecia distorcida, meus passos se tornaram irregulares e descoordenados. Eu podia sentir minha consciência escorregando, mas continuei a andar, tropeçando no chão batido e lutando contra a exaustão.
Então, algo aconteceu. Eu estava quase desmaiando quando ouvi um ruído estranho, um som alto e estridente. Meus olhos se arregalaram ao ver o que parecia ser um grupo de pequenas criaturas vindo em minha direção. Elas eram do tamanho de ratos, mas com asas finas como de morcegos e olhos que brilhavam no escuro. Eu poderia chamá-las de fadas ou seja lá o que diabos fossem, mas nada naquele mundo parecia se encaixar nas definições que eu conhecia.
Elas circulavam em torno de mim, emitindo aquele som estridente e acelerado. Eu tentei me afastar delas, mas minha energia se esgotava mais rápido a cada passo. Lembro-me de pensar como uma situação tão ridícula poderia se tornar tão ameaçadora, aquilo era simplesmente aterrorizante.
Naquela noite, eu estava sendo assediado por um enxame de fadas zumbidoras, enquanto lutava para manter a sanidade. Eu não sabia se deveria rir ou chorar, não sabia se aquilo era real ou não. Meu coração batia acelerado, minha boca estava seca, minha pele suava, embora o frio da noite tivesse caído. Meu estômago doía por causa da fome, mas era a sede que realmente me torturava.
Os raios da lua brilhavam através das árvores, criando um padrão sombrio no chão. A luz refletia nas asas translúcidas das criaturas, criando um show de luzes iridescentes que dançavam e se moviam ao redor de mim. Tentei afastá-las, acenando com as mãos, mas elas pareciam se divertir com meu desespero, zumbindo mais alto e voando mais perto. Em um momento de frustração, eu peguei uma pedra e joguei em sua direção. Elas rapidamente se dispersaram, mas em segundos estavam de volta, zumbindo ao meu redor..
Continuei minha caminhada em meio à escuridão, meus pés pesados e minha cabeça girando. O constante zumbido das fadas em meus ouvidos parecia amplificar com cada passo que eu dava. O som era perturbador, mas mais do que isso, era a sensação de estar sendo observado que me deixava cada vez mais ansioso. Essas pequenas criaturas estavam apenas brincando comigo ou tinham intenções mais sinistras?
Mesmo com todos esses pensamentos perturbadores, eu tentava manter o foco, me concentrar em seguir adiante. No entanto, a exaustão e a desorientação estavam me consumindo, cada vez mais profundamente. Minhas pernas pareciam feitas de chumbo, meus olhos lutavam para se manterem abertos, e minha garganta... Minha garganta ardia de uma sede insuportável. Eu mal conseguia pensar em outra coisa além de água.
Justo quando eu estava quase me permitindo cair, avistei algo à distância. De repente, toda a fadiga e a dor pareciam secundárias. O que eu vi emergindo da linha de árvores era o que eu mais temia. Todo aquele barulho atraiu uma silhueta, que a luz fraca da lua apenas delineava sua forma volumosa, mas isso foi suficiente para me fazer parar no lugar.
Seu porte lembrava o de um urso, mas era muito maior do que qualquer urso que eu já tivesse visto na televisão. Seus olhos vermelhos brilhavam no escuro, e mesmo à distância, eu podia ver a crueldade neles. As fadas, agora começaram a se dispersar, antecipando o que ia acontecer.
A adrenalina inundou meu sistema, minha mente subitamente clara apesar do terror paralisante. Eu não sabia de onde vinha essa súbita corrente de energia, mas agarrei-me a ela. A única coisa que eu conseguia pensar era em correr. Não importava se eu estava fraco, sedento, faminto ou exausto. Não importava se eu tinha uma ideia clara de onde eu estava indo. A única coisa que importava era colocar a maior distância possível entre mim e aquela criatura.
A estrada sob meus pés parecia oscilar e ondular, tornando-se cada vez mais difícil manter o equilíbrio. Mas eu continuei, meus pulmões ardendo, minha cabeça latejando, cada músculo do meu corpo gritando de dor. Mesmo com a visão turva e os ouvidos zumbindo, eu corria como se minha vida dependesse disso. Na verdade, era exatamente isso que estava acontecendo.
Os minutos se arrastaram como horas, mas eu mantive o ritmo. Eu podia sentir, eu podia ouvir a presença da criatura atrás de mim, suas garras arranhando o chão. Ela estava se aproximando, mas eu não iria desistir, não ainda.
Então, de repente, algo aconteceu. Meu pé tropeçou em uma pedra e, sem nenhum equilíbrio para me salvar, eu caí. Eu rolei pelo chão, meus gritos se perdendo no vento noturno. A dor se espalhou por todo o meu corpo, mas a única coisa que eu sentia era um vazio consumidor. Minha visão se apagou, o zumbido se transformou em um silêncio, e minha mente se rendeu à exaustão. A última coisa que lembro antes de tudo desaparecer foi o céu estrelado acima de mim e a certeza de que minha jornada tinha chegado ao fim.
04
No breu da inconsciência, um lampejo de sensação se fez presente, algo estranhamente lúcido em meio ao vazio em que eu estava afundado. Foi uma sensação úmida e quente, como a de um hálito de um animal grande e feroz. Em algum canto distante da minha mente, reconheci esse contato como um perigo iminente, mas meu corpo estava além de qualquer capacidade de reagir. Estava indefeso, entregue à mercê do que quer que fosse que me sondava na escuridão.
E então, de repente, um novo som preencheu o vazio. Eram vozes, que soavam tanto autoritárias quanto preocupadas. Ouvir elas nunca havia me proporcionado tanto alívio antes. Porém, minha mente estava se debatendo no abismo da inconsciência, impossibilitada de identificar as palavras que ouvia.
Junto com as vozes, ouvi o estrondo de algo grande e pesado se movendo com urgência. O som reverberava pelo chão, o solo vibrava sob meu corpo. Parecia quase como um terremoto. A presença predatória que estava perto de mim se afastou abruptamente. Meu perseguidor desapareceu tão rápido quanto havia surgido.
A última coisa que ouvi antes do silêncio absoluto me envolver foi uma exclamação: "Tem um cara aqui!". Essas palavras foram como um eco distante, se afastando cada vez mais enquanto eu era arrastado de volta para as profundezas da inconsciência.
Nesse ponto, não tinha mais forças para lutar contra o abismo que me puxava. Eu havia chegado ao meu limite. Mesmo assim, a voz que ouvi acendeu uma pequena chama de esperança dentro de mim. Talvez eu não estivesse sozinho. Talvez, apenas talvez, eu tivesse uma chance. Com esse último pensamento, me rendi ao peso da exaustão, permitindo que a escuridão me engolisse completamente.
Com a escuridão da inconsciência envolvendo minha mente, fui levado a um estado onírico. A princípio, tudo era nebuloso, um turbilhão de cores e sons indefinidos, como se estivesse tentando se concentrar em um quadro borrado. Gradualmente, porém, as imagens começaram a se formar e a se solidificar, ganhando nitidez e profundidade. Era como se minha mente estivesse se ajustando a uma nova realidade, a uma nova perspectiva.
E então, na névoa onírica, uma figura começou a tomar forma. Primeiro indistinta e vaga, foi se tornando mais nítida com o passar dos segundos. A forma feminina, a cabeça de cabelos castanhos, os olhos escuros... levou um tempo para reconhecer quem era. Como se minha mente estivesse relutante em aceitar a realidade da figura ali presente. Era Yunyun.
Naquele sonho, eu via Yunyun na Vila dos Demônios Carmesins, sempre à margem, observando os outros enquanto permanecia à distância. Ela parecia tão solitária, tão deslocada em meio à alegria e excitação dos outros, assim como eu me sentia, como eu sempre me senti. O sentimento de solidão era algo que eu entendia bem, algo que era cotidiano em minha própria vida.
Em seguida, o sonho mudou, e eu me vi na minha pequena cidade natal, andando pelas ruas que conhecia tão bem. Mas, assim como Yunyun, eu estava tão sozinho. As pessoas ao meu redor eram apenas vultos distantes. Eu podia vê-las, ouvi-las, mas não podia tocá-las. Não podia me conectar. Sentia-me tão distante delas quanto Yunyun se sentia de seus companheiros demônios carmesins. Uma onda de tristeza me envolveu, uma profunda sensação de desolação e abandono.
A sensação de isolamento em uma cidade pequena, a distância entre o mundo exterior e o meu próprio mundo interno, tudo isso era algo que eu compartilhava com Yunyun. Éramos dois solitários, cada um à sua maneira, tentando encontrar nosso lugar em um mundo que parecia não ter espaço para nós.
Eu me via em Yunyun, e em seu desejo de se conectar com os outros, de ser aceita e entendida. Seu anseio por amizade e companheirismo, seu desejo de provar seu valor, tudo isso ressoava em mim. Pude sentir seu medo, sua incerteza, sua esperança. E embora nossas circunstâncias fossem diferentes, havia uma semelhança fundamental em nossas experiências, uma ligação que me fez sentir menos sozinho.
O sonho, que se desenrolou de forma tão gradual e sutil, terminou abruptamente. Foi como se uma corda tivesse sido cortada, derrubando a ilusão e me puxando de volta à vida. As imagens e sensações do sonho desapareceram de repente, como se arrancadas da minha mente. Mas a lembrança da solidão compartilhada que parecia existir entre Yunyun e eu permaneceu, um eco persistente em meu próprio reflexo.
05
Eu estava no limbo entre o sonho e a realidade, embalado pelas vozes que zuniam suavemente ao meu redor. Ainda não estava certo de onde estava, apenas que a escuridão havia sido substituída por um nevoeiro cinzento. Lentamente, a névoa começou a se dissipar, e a luz penetrante começou a preencher minha visão. Com um esforço considerável, consegui abrir os olhos.
O que vi me deixou em estado de choque. Uma figura se projetava sobre mim, emitindo uma aura verde brilhante que se movia em torno de sua forma. Um grito escapou de minha garganta, alto e cheio de pavor: "AAAAAAAAAAAAAAH!" Minha mente estava girando, a adrenalina correndo pelas minhas veias e meu coração batendo forte contra o peito.
O vulto reagiu ao meu grito com um susto igualmente intenso. "EEEEEEEEEEEEEEEEEEH!???" Veio um grito agudo em resposta, a figura também saltando para trás em alarme. Em minha agitação, esqueci do mundo ao meu redor, arremessando-me para trás sem pensar. Minha cabeça bateu com força contra a parede atrás de mim.
Agora me dei conta: eu estava dentro de uma carroça. A estrutura de madeira dura sob meu corpo, o barulho suave das rodas contra o chão. Olhei de novo para a figura à minha frente, meus olhos agora se ajustando à luz. O medo ainda vibrava através de mim, uma sensação residual do terror que eu havia sentido ao acordar.
A figura, no entanto, parecia mais intrigada do que assustada agora. Ela me olhou com os olhos arregalados, claramente tão surpresa quanto eu com a situação. E eu, ainda assustado e lutando para entender o que estava acontecendo, pude apenas encará-la com uma mistura de medo e angústia, aguardando o próximo movimento com o coração batendo forte no peito.
A silhueta à minha frente gradualmente se tornou mais clara, delineando-se em uma pessoa que eu poderia finalmente reconhecer. Era uma garota, provavelmente um pouco mais velha do que eu, vestida com um traje azul-claro que contrastava com as sombras da carruagem. Ela tinha olhos castanhos que pareciam brilhar com uma luz interna e cabelos médios e escuros que caíam desordenadamente em torno de seu rosto.
Outra garota, muito parecida com a primeira, porém mais velha, estava um pouco mais atrás, vestida de maneira semelhante e com uma expressão alerta. Seu cabelo marrom curto e olhos também castanhos, com uma espada longa em uma bainha ao seu lado a tornavam um tanto intimidante. Ela observava a cena, atenta, mas se manteve silenciosa.
Engolindo a onda de pânico, reuni minha coragem para questionar, "QUEM SÃO VOCÊS?" A garota à minha frente abriu a boca para responder, mas a outra falou primeiro, sua voz era firme, quase que hostil.
"Ei, relaxa aí, maluco. Você estava desmaiado no meio da estrada com um One-Punch-Bear em cima de você. Eu não sei nem como que você ainda está vivo," ela explicou, cruzando os braços sobre o peito. "A minha irmã aí insistiu em te ajudar, sorte sua que o coração dela é bom e ingênuo, então é melhor você ficar de boa."
"V-você estava me ajudando? Vocês me ajudaram? Como assim?" Eu gaguejei, ainda processando as informações. Meu coração ainda estava batendo forte no peito, mas agora estava misturado com um pingo de gratidão, bem como com a dor da pancada que dei com a cabeça na parede.
"Você bateu forte a cabeça em? Nossa carruagem estava passando pela estrada, quando começamos a ouvir gritos vindo do caminho mais à frente. Quando chegamos, encontramos você," a garota mais velha respondeu, uma pitada de indiferença em seu tom.
"E-e-então o que era essa aura verde saindo da mão dela?" perguntei, lembrando o brilho estranho que tinha me assustado tanto.
"Isso é magia de cura," explicou a irmã mais nova suavemente. "Eu estava curando seus ferimentos. Você estava muito mal."
Por fim, percebi que a dor aguda que antes consumia meu corpo tinha se dissipado em grande parte. Olhei para baixo e notei que os cortes e arranhões que cobriam minha pele haviam cicatrizado, embora algumas cicatrizes ainda permanecessem. Além disso, tanto a fome quanto a sede extremas haviam cessado.
A surpresa deve ter sido evidente no meu rosto, pois a garota mais nova ofereceu um pequeno sorriso tranquilizador, o gesto suavizando as linhas do seu rosto. A outra ainda permanecia sentada, observando a interação com uma expressão cautelosa e séria. Eu não tinha certeza de como ou por que, mas de alguma forma, eu tinha sido salvo.
"Eu te disse que ele era um vagabundo, maninha," a irmã intimidadora quebrou o silêncio, seus olhos estreitos fixos em mim. A acusação foi direta e afiada, me pegando desprevenido.
"E-ei! Eu não sou um vagabundo," protestei, tentando manter minha voz firme, apesar da minha crescente incerteza.
"Ah é?" ela retrucou, uma sobrancelha arqueada em desafio. "Então o que um cara faz sem pertences algum desmaiado na floresta e todo desgraçado? Minha irmã chegou a ter que te dar água e comida na boca enquanto você estava desmaiado, porque pelo visto você não come nem bebe já faz muito tempo." Suas palavras eram duras, mas não injustificadas. Já fazia muito tempo desde que eu tinha comido aquele pão velho, e não havia tomado nem uma gota de água desde que cheguei.
"E você está fedendo," ela acrescentou com um revirar de nariz, a indiferença em sua expressão contrastando com a acusação. Eu senti um calor subir em meu rosto. A humilhação fazia a cabeça girar, apesar de eu saber que suas palavras eram verdadeiras.
"Ei, mana! Não precisa ser tão dura com ele," a garota mais nova interveio, seu tom repreensivo se dirigindo à irmã mais velha. A diferença de idade entre elas era evidente, a mais velha tinha um ar mais amadurecido, e apesar de sua dureza, parecia ter por volta de 25 anos. A mais nova, com seu tom de voz suave como mel e olhos castanhos cheios de preocupação, tinha uma inocência de alguém que mal havia passado dos seus 18 anos
Parecia que eu havia me encontrado em uma situação bem inusitada. Ainda assim, mesmo diante das palavras ásperas da irmã mais velha, eu estava grato. Grato por terem me encontrado, grato por terem me ajudado. Agora, tudo que eu podia fazer era tentar entender onde eu estava e como poderia retribuir sua bondade.
Ainda corado de vergonha, forcei-me a erguer a cabeça e encarar as irmãs. "Olha, eu não sou um vagabundo", comecei, minhas palavras ecoando com sinceridade, "Eu estou indo em direção à vila dos demônios carmesins, mas eu me perdi e acabei usando todas as minhas provisões."
Após a pausa, o olhar das irmãs em mim parecia pesado e avalista. Engoli em seco, eu sabia que não estava sendo totalmente honesto, mas também não era de todo mentira. "Eu sei que devo ter sido um fardo e vocês têm todo o direito de terem suspeitas sobre mim, mas eu juro que não quero fazer mal nenhum e sou muito grato por terem me salvado. Quando eu conseguir dinheiro, eu vou pagar vocês, eu prometo, eu sei que vocês devem ter gastado bastante comigo já, nem sei quanto tempo eu passei inconsciente."
A irmã mais nova sorriu, sua expressão suavizando um pouco. "Você esteve inconsciente por cerca de um dia", ela disse. O choque passou por mim como uma onda. Um dia inteiro. Eu não podia acreditar.
"A vila dos demônios carmesins?" A irmã mais velha perguntou, sua voz carregada de incredulidade. "Aquela vila é cheia de gente maluca, por que alguém iria querer ir lá propositalmente?!" Ela parecia genuinamente perplexa com minha intenção, o que só me deixou ainda mais intrigado.
"É uma longa história," murmurei, esfregando a nuca. Eu poderia ver a irmã mais velha baixar um pouco a guarda, embora ainda houvesse uma desconfiança em seus olhos.
"Seja como for, você tem meu voto de confiança temporário, porém," ela advertiu, seu olhar intenso fixo no meu, "se você tentar algo, eu irei te decapitar antes mesmo de você piscar." O tom ameaçador em sua voz fez meu estômago se revirar, mas eu só poderia assentir em entendimento. Eu estava, afinal, em débito com elas.
As palavras de advertência da irmã mais velha ainda ressoavam em meus ouvidos quando estava prestes a indagar sobre a proximidade de nossa rota com a vila dos demônios carmesins. Mas meus pensamentos foram interrompidos pelo som estridente de uma porta se abrindo e a figura de um homem adentrando a carruagem. Ele parecia estar nos seus 50 e poucos anos, com uma barriga proeminente e um sorriso largo no rosto. Não parecia ser um guerreiro, mais parecia um comerciante, pelo menos era essa a sensação que eu tinha.
"Eu ouvi uma baita conversa aqui embaixo, então só podia ser nosso convidado que acordou! Olá, amigo!! Como você está? A propósito, eu me chamo Stephane, prazer!" Ele exclamou, se dirigindo a mim. Sua voz ressoava pela carruagem, cheia de animação e entusiasmo, enchendo o espaço outrora silencioso com uma vibração quase palpável.
"E-eu estou bem, prazer em conhecer o senhor," respondi, com receio.
"Com esse medo na voz, aposto que minha filha aqui já andou te ameaçando, né?" Ele disse, enquanto apontava com a cabeça para a garota mais velha e continuou: "Ela sempre faz isso. Mas caramba, você dormiu por um tempão, em? Achei que você tinha morrido, pelo visto a minha caçula aí fez um serviço muito bom pra te fazer voltar à vida hahaha." Ele deu uma piscadela para a irmã mais nova, que corou levemente.
Então elas eram filhas dele.
"Sim senhor, eu acordei sem nenhum ferimento e estou me sentindo muito bem".
"É, ela é uma arquimaga muito talentosa!" Ele continuou, sua voz soando orgulhosa. Olhei para a irmã mais nova, que parecia um pouco envergonhada com o elogio do pai.
"Eu estava ouvindo a conversa de vocês," ele prosseguiu, "que bom que você não é um mal elemento. Volta e meia aparece um doidão caído por aí porque bebeu demais ou porque é um andarilho, mas pelo visto você tem boa pinta, rapaz!"
Ele riu, uma risada contagiante que encheu a carruagem. Era difícil não sorrir junto.
"Então, se eu ouvi direito, você está indo para a vila daqueles demônios malucos?" Stefhane arqueou uma sobrancelha, seu rosto se abrindo em um sorriso brincalhão. Hahaha, boa sorte por lá. Aquela gente é mais esquisita que um dragão com duas caudas!
"Sim, é para lá que estou indo", respondi a Stefhane, forçando um sorriso fraco. Ele conseguiu arrancar uma risada suave de mim, apesar de tudo. Encorajado pela atmosfera amigável, decidi arriscar uma pergunta. "Mas Senhor Stefhane, posso perguntar... Se a vila tem uma reputação tão estranha, e a estrada por aqui parece tão deserta... O que o traz a essas bandas? Vocês são as primeiras pessoas que eu encontrei até agora".
"Bom,eu sou um comerciante de suprimentos, tenho uma remessa para entregar lá pertinho da vila para um freguês antigo, a gente vai passar em frente à entrada principal". Ele explicou, com um aceno casual de sua mão grossa. "Eu acho que daqui umas 4 horas a gente deve chegar no seu destino se tudo ocorrer bem, a propósito."
Arregalei os olhos, surpreso. Isso era um alívio, mesmo com a interrupção inesperada, eu estava no caminho certo.
"Já está de manhã, senhor?" Perguntei, percebendo a luminosidade do lado de fora da janela. Stefhane deu uma risada.
"Oh sim!! Me desculpe, aqui é tudo fechado com cortina né, não dá para ver. Já é quase manhã, agora são 5 horas! Daqui uma hora a gente vai dar uma parada em um rio que tem aqui perto, pra tomar café, tomar um banho... já que você tá precisando, né? Hahaha!!!!" Ele riu de novo, uma risada tão alta que não pude deixar de sorrir.
Com a promessa de mais algumas horas de viagem e a perspectiva de um banho quente e um café da manhã, senti um lampejo de energia percorrer meu corpo, que agora já estava descansado. Parecia que, apesar do susto, eu havia caído em boas mãos. E, por mais estranha que a situação pudesse parecer, eu estava começando a recuperar a esperança.
" Mas afinal, qual o seu nome, rapaz?!" Stefhane perguntou, olhando para mim com expectativa. Ele estava curioso, era óbvio. E eu estava pronto para dizer:
"Meu nome é Vi-". Parei no meio da frase. Havia algo que me impedia de continuar. Uma sensação, um instinto que dizia que dar meu nome verdadeiro talvez não fosse uma boa ideia. Eu não sabia exatamente o porquê, mas decidi confiar nesse sentimento. Então, sem pensar, soltei a primeira coisa que veio à minha mente.
"Vitor Satou."
Foi então que senti. Um silêncio abrupto, pesado como chumbo, caiu na carruagem. As expressões das irmãs mudaram. A mais velha franzia a sobrancelha, parecendo surpresa, e a mais nova tinha os olhos arregalados, olhando para mim como se eu fosse um fantasma. Stefhane, por sua vez, engasgou com a própria saliva, os olhos arregalados, enquanto ele me encarava.
"Satou?" Ele repetiu, a voz vacilante. "Como em...Kazuma Satou?"
Congelei. Eles conheciam esse sobrenome. Por que a mera menção do nome 'Kazuma Satou' os afetou tanto?
Foi então que me dei conta, Talvez eu tivesse cometido um grande erro.