Lal parou entre dois braseiros de tamanho médio. Com sua barba bem aparada e a toga preta de professor, ele ainda me lembrava o estereotipado mágico perverso que aparecia em inúmeras peças aturianas de má qualidade.
— O que todos vocês precisam lembrar é que o simpatista está ligado à chama — disse. — Somos senhores e escravos dela.
Enfiou as mãos nas mangas compridas e recomeçou a andar de um lado para outro:
— Somos senhores do fogo porque o dominamos — prosseguiu, batendo com a palma da mão num braseiro próximo e fazendo-o tilintar baixinho. As chamas atiçaram o carvão e começaram a subir em labaredas vorazes. — A energia de todas as coisas pertence ao arcanista. Damos ordens ao fogo e ele obedece.
Caminhou lentamente até o outro canto da sala. As chamas do braseiro às suas costas diminuíram, enquanto o braseiro do qual ele se aproximou ganhou vida e começou a arder. Apreciei seu talento cênico.
Lal Mirch parou e tornou a fitar a turma:
— Porém também somos servos do fogo. Porque o fogo é a mais comum das formas de energia. E, sem energia, nossa mestria como simpatistas pouca serventia tem.
Deu as costas para a classe e começou a apagar as fórmulas escritas no quadro de ardósia.
— Peguem seu material e vamos ver quem vai disputar com o A'lun Vanitas hoje.
Começou a escrever uma lista com os nomes de todos os alunos.
O meu foi o primeiro.
Três onzenas antes, Lal começara a nos fazer competir uns com os outros. Dava a isso o nome de duelo. E, embora fosse uma forma bem-vinda de quebrar a monotonia da aula, essa atividade recentíssima também tinha um componente sinistro.
Uma centena de alunos saía do Arcano a cada ano, talvez um quarto deles com seus guílderes. Isso significava que todo ano havia mais 100 pessoas formadas no uso da simpatia. Pessoas que, por uma ou outra razão, talvez tivéssemos de enfrentar num futuro próximo.
Embora Lal nunca o dissesse explicitamente, sabíamos que estava nos ensinando algo que ia além da mera concentração e da engenhosidade.
Estávamos sendo ensinados a lutar.
Lal Mirch mantinha um registro cuidadoso dos resultados. Na turma de 38 alunos, eu era o único que ainda não fora vencido. A essa altura, até os estudantes mais obtusos e ressentidos eram obrigados a admitir que minha pronta aceitação no Arcano tinha sido mais do que um golpe de sorte.
Duelar também podia ser modestamente lucrativo, já que havia algumas apostas clandestinas. Quando queríamos apostar em nossos duelos, Balken e eu fazíamos o jogo um para o outro, embora, via de regra, eu não tivesse dinheiro para empatar.
Assim, não foi por acaso que nos esbarramos ao pegar nosso material. Entreguei-lhe dois iyanes por baixo da mesa e ele os enfiou no bolso sem olhar para mim.
— Caramba — disse baixinho —, hoje uma certa pessoa está muito confiante!
Dei de ombros com ar despreocupado, embora, na verdade, estivesse meio nervoso. Eu havia iniciado esse período letivo sem um centavo e me virava como podia. Na véspera, entretanto, Kelvin me pagara uma onzena de trabalho na Ficiaria: dois iyanes. Era todo o dinheiro que eu tinha no mundo.
Balken começou a vasculhar uma gaveta e pegou cera de simpatia, corda e uns pedaços de metal.
— Não sei se vou conseguir muita coisa para você. A cotação está ficando ruim. Acho que três para um será o máximo que você vai arranjar hoje. Ainda estará interessado, se descer tanto assim?
Dei um suspiro.
A cotação vinha caindo por causa da minha classificação como invicto. Na véspera, tinha sido de dois para um, o que significava que eu teria que arriscar dois lumens pela chance de ganhar um.
— Tenho uma coisinha planejada. Não aposte enquanto não tivermos estabelecido os termos. Você precisa conseguir pelo menos três para um contra mim.
— Contra você? — murmurou Balken, enquanto recolhia uma braçada da parafernália. — Só se você estiver disputando com o Lal.
Desviei o rosto para esconder um rubor levemente embaraçado diante desse elogio.
Lal bateu palmas e todos se apressaram a ocupar seus lugares apropriados. Fiz par com um garoto mitreziano chamado Marzus. Ele estava uma posição atrás de mim na classificação da turma. Eu o respeitava como um dos poucos da classe que seriam capazes de representar um desafio real para mim na situação certa.
— Muito bem — disse Lal Mirch, esfregando as mãos com ar ansioso. — Marzus, você está numa classificação inferior; escolha a sua fonte.
— Velas.
— E o seu vínculo? — indagou Lal ritualisticamente. Com as velas, era sempre pavio ou cera.
— Pavio — respondeu ele, e levantou um pedaço para que todos o vissem
Lal virou-se para mim.
— Vínculo?
Coloquei a mão num bolso e tirei meu vínculo com um floreio.
— Palha.
Houve um murmúrio na sala. Era um elo ridículo. O melhor que eu poderia ter esperança de conseguir seria uma transferência de 3%, talvez 5. O pavio de Marzus seria 10 vezes melhor.
— Palha?
— Palha — repeti, com um pouquinho mais de confiança do que sentia. Se aquilo não virasse a cotação contra mim, eu não sabia o que conseguiria fazê-lo.
— Pois então que seja palha — disse Lal, descontraído. — A'lun Marzus, já que o Vanitas está invicto, caberá a você indicar a fonte.
Um risinho baixo se espalhou pela turma.
Senti um bolo no estômago. Não esperava por essa. Normalmente, quem não escolhia o jogo ficava com a indicação da fonte. Eu tinha planejado escolher o braseiro, por saber que a quantidade de calor ajudaria a compensar minha desvantagem auto imposta.
Marzus sorriu, cônscio de sua vantagem:
— Nenhuma fonte.
Fiz uma careta.
A única coisa a que poderíamos recorrer seria o calor do próprio corpo. Difícil, nas melhores circunstâncias, para não mencionar que era meio perigoso.
Eu não conseguiria vencer. Não só perderia minha classificação perfeita como não havia jeito de fazer um sinal para que Balken não apostasse meus dois últimos iyanes. Tentei fazê-lo olhar para mim, mas ele já estava empenhado em intensas negociações, em voz baixa, com um punhado de outros estudantes.
Sem dizer uma palavra, Marzus e eu fomos sentar em lados opostos de uma grande bancada de trabalho. Lal Mirch pôs dois cotos de vela no tampo, um em frente a cada um de nós. O objetivo era cada qual acender a vela do adversário, sem permitir que ele fizesse a mesma coisa com a sua.
Isso envolvia dividir a mente em duas partes diferentes, uma das quais sustentava a Vileza de que o pedaço de pavio (ou palha, se o aluno fosse burro) era idêntico ao pavio da vela que se queria acender. Depois cada um tirava energia de sua fonte para fazer com que isso acontecesse.
Entretanto, a segunda parte da mente ocupava-se em tentar manter a convicção de que o pedaço de pavio do adversário não era igual ao da própria vela.
Se tudo isso parece difícil, acredite, você não sabe nem a metade.
Para piorar a situação, nenhum de nós tinha uma fonte simples de que extrair energia. Era preciso ter cuidado ao usar o próprio corpo como fonte. O corpo é aquecido por uma razão. Reage mal quando seu calor é retirado.
Suei frio, o duelo estava prestes a começar.