Possuir outra vez um alaúde significava que minha música voltara, mas logo percebi que tinha perdido três anos de prática.
O trabalho na Artificiaria, nos dois meses anteriores, havia tornado minhas mãos fortes e resistentes, mas não exatamente da maneira certa. Passaram-se vários dias frustrantes antes que eu conseguisse tocar confortavelmente até mesmo por uma hora seguida.
Eu poderia ter progredido mais depressa se não estivesse tão atarefado com os outros estudos. Passava duas horas por dia na Iátrica, correndo ou ficando de pé; uma média de duas horas de aula e codificação diárias na Matemática, e três horas de estudos com Monet na Ficiaria, aprendendo os segredos do ofício.
Havia também a simpatia avançada com Lal Mirch. Fora da aula, ele era encantador, de fala mansa e até um pouquinho ridículo quando lhe dava na telha. Ao lecionar, porém, sua personalidade oscilava entre o profeta louco e o escravo batedor de tambor nas galés1. Todos os dias, em sua aula, eu queimava outras três horas de tempo e cinco de energia.
Combinado com meu trabalho remunerado na oficina do Kelvin, isso mal me deixava tempo suficiente para comer, dormir e estudar, que dirá para dar a meu alaúde a atenção que ele merecia.
A música é uma amante orgulhosa e temperamental. Recebendo o tempo e a atenção que merece, ela é sua. Desdenhada, chega o dia em que você a chama e ela não responde. Por isso comecei a dormir menos, para lhe dar o tempo de que ela precisava.
Após uma onzena nesse regime, senti-me cansado. Depois de três, ainda estava bem, mas só por meio de um tipo distorcido de determinação, trincando os maxilares. Mais ou menos na quinta onzena comecei a dar sinais claros de desgaste.
Foi durante essa quinta onzena que desfrutei um raro almoço compartilhado com Leif e Alastor. Eles haviam encomendado suas refeições numa taberna próxima. Eu não podia gastar um ocro de ferro numa torta de carne e uma maçã, e por isso tinha surrupiado um pão de cevada e uma linguiça cheia de cartilagens no Rancho.
Sentamos no banco de pedra sob o mastro da bandeira em que eu tinha sido açoitado. Esse lugar me enchera de pavor depois do açoitamento, mas eu me obrigava a passar algum tempo ali, para provar a mim mesmo que era capaz. Depois que ele parara de me deixar tenso, eu me sentava lá porque os olhares dos estudantes me divertiam. Agora sentava-me ali porque era confortável.
Era o meu lugar.
E, como passávamos um bom tempo juntos, tornara-se também o lugar de Alastor e Leif. Se eles achavam estranha a minha escolha, não diziam nada.
— Você anda meio sumido — comentou Alastor, com a boca cheia de torta de carne. — Esteve doente?
— Até parece — disse Leif, sarcástico. — Faz um mês inteiro que ele anda doente.
Alastor lançou-lhe um olhar furioso e grunhiu, fazendo-me lembrar de Kelvin por um momento.
Sua expressão fez Leif rir:
— O Alas é mais educado que eu. Aposto que você anda gastando todas as suas horas de folga em Torrente, indo e voltando a pé. Cortejando as damas como um jovem bardo fabulosamente atraente. — E apontou para o estojo do alaúde a meu lado.
— Ele parece andar doente — repetiu Alastor, fitando-me com olhar crítico. — A sua mulher não tem cuidado bem de você?
— Ele está apaixonado — disse Leif com ar de entendido. — Não consegue comer. Não consegue dormir. Fica pensando nela, quando devia estar tentando decorar sua linguagem codificada.
Não consegui pensar em nada para dizer.
— Viu? — disse Leif a Alas. — Ela roubou a língua dele, além do coração. Todas as suas palavras são para ela. O Vani não pode desperdiçar nenhuma conosco.
— E também não pode gastar seu tempo — concordou Alastor, atacando a torta de carne, que diminuía rapidamente.
Era verdade, é claro. Eu vinha negligenciando meus amigos mais ainda do que a mim mesmo. Senti-me invadir por uma onda de culpa. Não podia dizer-lhes toda a verdade: que precisava aproveitar ao máximo aquele período letivo porque era muito provável que fosse o último.
Eu estava sem um tostão.
Se você não consegue entender por que eu não podia contar isso a meus amigos, duvido que algum dia tenha sido pobre de verdade. Duvido que possa realmente compreender como é constrangedor só ter duas camisas e cortar o próprio cabelo, da melhor maneira que puder, por não ter condição de pagar o barbeiro.
Perdi um botão e não pude gastar um gusa para comprar outro igual. Rasguei as calças no joelho e tive que me arranjar com linha de cor diferente para fazer um remendo. Eu não podia pagar o sal para minhas refeições, nem a bebida nas raras noites em que saía com os amigos.
O dinheiro que ganhava na oficina do Kelvin era gasto em coisas essenciais: tinta, sabão, cordas de alaúde... A única outra coisa que eu podia me dar ao luxo de ter era orgulho. Não suportava a ideia de que meus dois melhores amigos soubessem como era desesperada a minha situação.
Se tivesse uma sorte extraordinária, talvez conseguisse juntar dois crimos para pagar os juros de minha dívida a Devi. Mas seria preciso um ato direto de Deus para que, de algum modo, eu reunisse dinheiro suficiente para pagar isso e também a taxa escolar do período letivo seguinte.
Depois que fosse obrigado a sair da Academia e quitasse minha dívida com Devi, eu não sabia o que iria fazer. Levantar acampamento e partir para Ailen à procura de Alys, talvez. Olhei para os dois, sem saber o que dizer.
— Alas, Leif, desculpem. É só que tenho andado muito ocupado ultimamente.
Leif ficou um pouco mais sério e percebi que estava sinceramente magoado com minha ausência inexplicável.
— Nós também andamos ocupados, sabe? Tenho aulas de retórica e química e estou aprendendo kiaru — disse. Virou-se para Alas e fechou a cara. — Você precisa saber que estou começando a detestar a sua língua, seu cretino ordinário.
— Tu krali — respondeu amavelmente o jovem cealdamo.
Leif tornou a se virar para mim e falou com uma franqueza admirável:
— É só que a gente gostaria de vê-lo mais de uma vez a cada não sei quantos dias, quando você corre do Magnólio para a Ficiaria. As garotas são maravilhosas, admito, mas quando uma delas afasta um amigo meu fico meio enciumado. — Deu um sorriso luminoso e repentino. — Não que eu pense em você desse jeito, é claro.
Tive dificuldade de engolir o seco, com o bolo que se formou subitamente em minha garganta. Não me lembrava da última vez em que alguém sentira minha falta. Durante um longo tempo não houvera ninguém para sentir saudade de mim. Pelo nó na garganta, intuí o começo das lágrimas quentes se aproximando.
— Não há nenhuma garota, é verdade. Estou falando sério — afirmei, engolindo com força para tentar recobrar a compostura.
— Sim, acho que estamos deixando escapar alguma coisa nessa história — disse Alastor, olhando-me de forma estranha. — Dê uma boa espiada nele.
Leif fitou-me com um olhar analítico semelhante. Esse olhar dos dois bastou para me irritar, arrancando-me da beira das lágrimas.
— Vejamos — disse Alastor, como quem desse uma aula. — Há quantos períodos o nosso jovem A'lun está frequentando a Academia?
A compreensão derramou-se pelo rosto franco de Leif:
— Oh!
— Alguém se importa de falar comigo? — questionei-os, petulante.
Alastor ignorou minha pergunta.
— Que matérias você está cursando?
— Todas — respondi, contente por ter um pretexto para me queixar. — Geometria, Observação na Iátrica, Simpatia Avançada com o Lal Mirch, e ainda tenho o trabalho de aprendiz com o Monet na Ficiaria.
Leif fez um ar meio assustado.
— Não é de admirar que esteja com cara de quem não dorme há uma onzena.
Alastor assentiu com a cabeça e indagou.
— E você continua trabalhando na oficina do Kelvin, não é?
— Umas duas horas por noite.
Leif ficou estarrecido:
— E está estudando um instrumento ao mesmo tempo? Ficou maluco?
— A música é a única coisa que me mantém com os pés no chão — respondi, estendendo a mão para o alaúde. — E não estou aprendendo a tocar. Só preciso de exercício.
Alastor e Leif se entreolharam:
— Quanto tempo você acha que ele tem?
Leif me examinou:
— Uma onzena e meia, ou menos.
— O que vocês querem dizer?
Alastor se inclinou para a frente.
— Todos nós abarcamos coisas demais, cedo ou tarde. Mas alguns estudantes não sabem quando é hora de relaxar um pouco as pernas e soltar uma parte do mundo. Eles se queimam. Desistem, ou então enfiam os pés pelas mãos nos exames. Alguns piram. — Deu um tapinha na cabeça. — Costuma acontecer com os alunos do primeiro ano — concluiu, dirigindo-me um olhar significativo.
— Não estou abarcando o mundo com as pernas.
— Olhe-se num espelho — sugeriu Alastor.
Abri a boca para garantir a Alas e Leif que eu estava bem, mas, nesse instante, ouvi a sineta marcando a hora e só tive tempo para um até logo apressado. Mesmo assim, tive de correr para chegar na hora à aula de Simpatia Avançada.