Com um gesto de Lal Mirch, começamos.
Dediquei de imediato toda a minha mente à defesa de minha vela e me pus a pensar furiosamente. Não havia meio de eu vencer. Por melhor esgrimista que você seja, não tem como evitar a derrota quando o seu oponente conta com uma lâmina de aço de Orien e você optou por lutar usando um graveto de salgueiro.
Desci ao Coração Congelado. Depois, ainda dedicando a maior parte do pensamento à proteção de minha vela, murmurei uma conexão entre esta e a dele. Estendi a mão e deitei minha vela de lado, obrigando-o a agarrar a sua antes que ela fizesse o mesmo e rolasse para longe.
Tentei tirar proveito da distração de Marzus e acender sua vela. Atirei-me a isso e senti uma friagem subir por meu braço a partir da mão direita, que segurava o pedaço de palha. Nada aconteceu. A vela dele continuou fria e apagada.
Coloquei a mão em concha em torno do pavio da minha, para bloquear a visão de Marzus. Era um truque banal e praticamente inútil contra um simpatista hábil, porém minha única esperança era perturbá-lo de algum modo.
— Ei, Marz — disse-lhe. — Você já conhece aquela do criaferro, do adorniano, da filha do lavrador e da desnatadeira1?
Marzus não respondeu. Seu rosto pálido se cristalizara numa concentração ferrenha.
Desisti da distração, tomando-a por uma causa perdida. Marzus era esperto demais para se deixar distrair desse jeito. Além disso, eu começava a ter dificuldade de empenhar a concentração necessária para manter minha vela em segurança.
Desci mais fundo no Coração Congelado e me esqueci do mundo, afora as duas velas, um pedaço de pavio e um pouco de palha.
Após um minuto, estava coberto de um suor frio e pegajoso. Estremeci. Marzus percebeu e me deu um sorriso com seus lábios enormes. Redobrei meus esforços, mas sua vela ignorou minhas melhores tentativas de inflamá-la.
Passaram-se cinco minutos, com a turma inteira num silêncio aterrorizante. A maioria dos duelos não durava mais de um ou dois minutos, com uma pessoa provando rapidamente ser mais inteligente ou dotada de uma vontade maior.
Aquela altura, meus dois braços estavam frios.
Vi um músculo do pescoço de Marzus contrair-se num espasmo, como o flanco de um cavalo na tentativa de afastar uma picada de mutuca. Sua postura se enrijeceu quando ele reprimiu a ânsia de estremecer. Um fiapo de fumaça começou a se elevar do pavio de minha vela.
Continuei a descer. Notei que minha respiração sibilava por entre os dentes cerrados, repuxando os lábios num arreganho de fera. Marzus não pareceu perceber, ficando com os olhos vidrados e sem foco.
Estremeci de novo, com tanta violência que por pouco deixei de ver o tremor na mão dele. Então, lentamente, a cabeça de Marzus começou a baixar em direção à bancada. Suas pálpebras se fecharam. Trinquei os dentes e tive a recompensa de ver um rolo fino de fumaça elevar-se do pavio de sua vela.
Estupidamente, Marzus virou-se para olhar, mas, em vez de cerrar fileiras em sua própria defesa, fez um gesto pesado de descaso e baixou a cabeça na dobra do braço.
Não olhou para cima quando a vela junto a seu cotovelo se acendeu em surtos espasmódicos. Houve uma breve salva de palmas, mesclada com exclamações de incredulidade.
Alguém bateu em minhas costas:
— Que tal essa? Ele se desgastou todo.
— Não — respondi com a voz engrolada, estendendo a mão por cima da mesa. Com dedos desajeitados, abri a mão que segurava o pavio e vi que havia sangue nela. — Mestre Lal, ele está congelando.
Falar me fez perceber o quanto meus lábios estavam frios.
Mas Lal já havia se aproximado, trazendo um cobertor para envolvê-lo.
— Você — ordenou, apontando ao acaso para um dos alunos. — Traga alguém da Iátrica. Vá logo!
O estudante saiu correndo.
— Que tolice — disse Mestre Lal, murmurando uma conexão para atrair o calor. Olhou para mim e acrescentou: — É bom você andar um pouco. Não está com aspecto muito melhor que o dele.
Não houve outros duelos nesse dia. O resto da turma ficou observando Marzus ser reanimado aos poucos, sob os cuidados de Lal Mirch. Quando chegou um A'vór mais velho da Iátrica, Marzus já se aquecera o bastante para começar a tremer violentamente. Após um quarto de hora de cobertores e simpatias cuidadosas, conseguiu tomar uma bebida quente, embora suas mãos ainda tremessem.
Terminado o tumulto, estávamos quase no terceiro sino. Mestre Lal conseguiu fazer todos os alunos se sentarem e ficarem em silêncio por tempo suficiente para lhes dizer algumas palavras.
— O que vimos hoje foi um excelente exemplo de congelamento de quem faz a conexão. O corpo é uma coisa delicada e alguns graus de calor perdidos com rapidez podem perturbar todo o sistema. Um caso brando de congelamento é apenas isso, um resfriamento. No entanto, os casos mais extremos podem levar ao choque e à hipotermia — explicou, olhando em volta. — Alguém sabe me dizer qual foi o erro do Marzus?
Houve um momento de silêncio, depois alguém levantou a mão.
— Pois não, Brenn.
— Ele usou sangue. Quando o sangue perde calor, o corpo se resfria como um todo. Nem sempre isso é vantajoso, uma vez que as extremidades podem suportar uma perda mais drástica de temperatura do que as vísceras.
— Então por que alguém pensaria em usar o sangue?
— Ele cede mais calor, mais depressa do que a carne.
— Quanta energia seria seguro ele extrair? — perguntou Lal, correndo os olhos pela sala.
— Dois graus? — sugeriu alguém.
— Um e meio — corrigiu Lal, escrevendo algumas equações no quadro para demonstrar quanto calor isso geraria. — Dados os sintomas, quanto vocês acham que ele realmente extraiu?
Houve uma pausa. Por fim, Balken manifestou-se:
— Oito ou nove.
— Muito bem — disse Lal, aborrecido. — Ainda bem que pelo menos um de vocês andou lendo — comentou, e assumiu uma expressão grave. — A simpatia não é para pessoas de mente fraca, mas também não é para as que têm um excesso de confiança. Se não estivéssemos aqui para prestar a ajuda de que o Marzus precisava, ele teria escorregado serenamente para o sono e morrido.
Lal fez uma pausa para deixar suas palavras serem bem absorvidas.
— É melhor vocês conhecerem francamente os seus limites do que fazerem suposições exageradas sobre suas habilidades e perderem o controle.
Soou o terceiro sino e de repente a sala se encheu de barulho, com os alunos se levantando para sair.
Mestre Lal elevou a voz para se fazer ouvir:
— A'lun Vanitas, importa-se de ficar aqui um instante?
Fiz uma careta.
Balken aproximou-se por trás de mim, deu-me um tapinha no ombro e murmurou "sorte". Eu não soube dizer se estava fazendo referência a minha vitória ou me desejando boa sorte.
Depois que todos se foram, Lal virou-se para mim, pôs de lado o trapo que havia usado para apagar a lousa e perguntou, em tom cordial:
— E então, como foram os números?
Não fiquei surpreso por ele saber das apostas.
— Onze para um — admiti. Eu tinha ganho 22 iyanes. Pouco mais de dois crimos. A presença desse dinheiro em meu bolso me aquecia.
Ele me deu uma olhadela especulativa:
— Como está se sentindo? Você mesmo ficou meio pálido, no fim.
— Tive um pequeno calafrio — menti.
Na verdade, na comoção que se seguira ao desmaio de Marzus, eu tinha saído furtivamente e passado alguns minutos assustadores num corredor dos fundos. Os calafrios quase convulsivos por pouco não me haviam impossibilitado de ficar de pé. Por sorte, ninguém me vira tremendo no corredor, trincando os dentes com tanta força que temi que se quebrassem.
Ninguém me vira. Minha reputação estava intacta.
Lal lançou-me um olhar que demonstrou que talvez suspeitasse da verdade.
— Venha até aqui — disse, apontando para um dos braseiros ainda acesos. — Um pouco de calor não lhe fará mal.
Não discuti.
Ao estender as mãos para o fogo, senti-me relaxar um pouquinho. De repente me dei conta de como estava cansado. Meus olhos cocavam, pelo excesso de noites maldormidas. O corpo estava pesado, como se meus ossos fossem de chumbo.
Com um suspiro relutante, recuei as mãos e abri os olhos. Lal fitava atentamente meu rosto.
— Tenho que ir — disse-lhe, com certo pesar na voz. — Obrigado por me deixar usar seu fogo.
— Somos ambos simpatistas — disse ele, dando-me um aceno amistoso enquanto eu recolhia minhas coisas e me dirigia à porta. — Sirva-se dele quando quiser.
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Mais tarde naquela noite, no Cercado, Alastor abriu a porta quando bati.
— Raios me partam! — exclamou. — Duas vezes no mesmo dia! A que devo essa honra?
— Acho que você sabe — resmunguei, entrando no quartinho que parecia uma cela. Encostei o estojo do alaúde numa parede e desabei numa cadeira.
— O Kelvin me baniu do trabalho na oficina.
Alastor se inclinou para a frente, sentado na cama:
— Por quê?
Lancei-lhe um olhar de quem já sabia.
— Imagino que seja porque você e o Leif passaram por lá e Ihe sugeriram isso.
Ele me observou por um instante, depois deu de ombros.
— Você adivinhou mais depressa do que eu imaginava — disse, esfregando o lado do rosto. — Não parece terrivelmente aborrecido.
Eu tinha ficado furioso.
Justo quando minha sorte parecia estar mudando, fui obrigado a deixar meu único trabalho remunerado por causa da intromissão bem-intencionada de meus amigos. Mas, em vez de atacá-los numa explosão de raiva, tinha ido para o telhado do Magnólio e tocado um pouco para esfriar a cabeça.
Minha música me acalmara, como sempre. E, enquanto tocava, eu havia refletido muito. Meu aprendizado com Monet ia bem, mas eram simplesmente coisas demais para aprender: como acender os fornos, como estirar arame na consistência adequada, que ligas metálicas escolher para obter os efeitos apropriados...
Não havia esperança de eu progredir na marra, do jeito que fizera ao estudar as runas. Eu não conseguiria ganhar o suficiente, trabalhando na oficina de Kelvin, para pagar minha dívida à Devi no fim do mês, muito menos ganhar o bastante para cobrir também o custo dos estudos.
— Provavelmente eu ficaria muito aborrecido — admti. — Mas o Kelvin me fez olhar num espelho. — Dei um sorriso cansado. — Estou com uma aparência diabólica.
— Você parece cansado como o diabo — corrigiu ele displicentemente; depois fez uma pausa constrangida. — Fico contente por não estar zangado.
Leif bateu e abriu a porta. A culpa espantou a surpresa de seu rosto ao me ver sentado ali.
— Não era para você estar... humm... na Ficiaria? — perguntou, sem graça.
Dei uma risada e o alívio de Leif foi quase palpável.
Alastor tirou uma pilha de papéis de outra cadeira e Leif arriou nela.
— Está tudo perdoado — declarei, com ar animado. — Só peço uma coisa: digam-me tudo o que sabem sobre a taberna Foles.