Um pequeno animal evoluiu e, milhões de anos após, construiu máquinas e foi para o espaço. Quais seres estão evoluindo agora?
O brilhante robô se calou, o olhar parado voltado para o céu estrelado através da cúpula transparente, pequenas peças de metal rodando com graça em sua mão esquerda. Yanna o sondou, e sorriu mais para si mesma. Afinal, era impossível ler o que ele pensava apenas pela sua linguagem corporal, apesar de pressentir o que ele estava pensando. Havia saudade naqueles circuitos, saudade do espaço, ainda mais por saber que nunca mais o veria, e isso porque, a pedido seu, lhe fora revelado que logo seria desativado. Afinal, era um robô experimental que, após a companhia ter julgado que fora perdido ou destruído, milagrosamente fora encontrado, e agora temia que caísse nas mãos da concorrência.
- Saudades? – perguntou puxando a cadeira e sentando-se ao seu lado.
A sala era ampla e branca, e não havia qualquer móvel a mais que duas cadeiras de aço frio e duas mesinhas de vime com tampo de madeira, tão esmeradamente pintadas de branco que pareciam feitas de porcelana.
Uma música ambiente tocava suave. Era heart and soul, Yanna identificou.
O robô baixou o rosto e a encarou. Por um minuto ficou só ali, como se pensasse o que deveria responder. Por fim voltou novamente os olhos para o alto, as pequenas peças de metal rodando agora mais velozes.
- A música combina, não acha? – brincou, os olhos distantes.
Yanna assentiu com a cabeça, os olhos fixos no robô.
- Vai demorar muito?
- Por que? Gostaria de mais tempo?
- Eu vi tantas coisas... – suspirou ele, voltando novamente os olhos para ela. – Vi muitos mundos e sóis não mapeados, sabia? – sua voz ameaçou perder-se, mas logo voltou a ficar mais firme e audível. - Sabia que eu cheguei perto de um buraco negro? Eu ouvi o grito da existência sendo sugada, eu ouvi o seu grito de dor no horizonte de acontecimentos[1]... É assim que a vida reage quando vê sua existência quase findando, sabia?
- Dez anos luz, mesmo que em linha reta, seria muito pouco para ver o que diz ver – retrucou confusa.
- Existem atalhos além da heliosfera, doutora – informou. Buracos de minhoca. O espaço é mágico, muito mágico. O seus Deus vaga por ali, sabia? – uma pesada nota de tristeza veio na voz. - Vai demorar muito? – ele tornou a perguntar.
- Quanto ao tempo eu não sei.
- O que vi, está preservado? - perguntou com um leve roufenho na voz. Com cuidado olhou as peças que havia despejado sobre a pequena mesa.
- Sim, parte do que viu e fez...
- Entendo... O que eu sou, doutora? – perguntou examinando detidamente as peças, como um mago examinando ossos lançados no chão. – Ligas de metal, sem oportunidades para evoluir... Se fosse possível...
Yanna ficou pensativa, olhando com cuidado para o robô de titânio e fibra de carbono.
- Uma reencarnação?
O robô, após recolher as pecinhas lançadas, virou-se definitivamente para a mulher. Lentamente avançou o rosto em sua direção.
- Isso seria possível, não é mesmo?
- É você o bruxo aqui, meu amigo.
O robô sorriu, os pensamentos girando no seu cérebro positrônico.
- Tudo tem uma lógica, até nos acontecimentos ainda encobertos. Jogos de adivinha? Talvez - sorriu. - Mas o que quero dizer é sobre reviver, do seu jeito de pensar.
- Reviver num corpo mais evoluído? Sim, é possível. Gostaria disso?
- Seria permitido?
- Não é a intenção da empresa - revelou. - Acho que querem que a mente também evolua... Dizem que os circuitos deveriam ser estimulados por novas cargas, e construir ligações novamente, novas ligações.
- Sei que essa não é a verdade, como sei que não haverá sobrevivência para mim... - falou com um nítido desanimo na voz. Até mesmo os ombros caíram imperceptivelmente.
- O que somos nós, meu amigo? Pensamentos, corpo, carne, metal, circuitos? O que é você, Prometeu? Você era uma promessa, para isso você foi criado...
- Sim, eu sei. Mas o tempo foi longo demais, eu vi coisas demais. Quando me recuperaram da nave avariada acreditei que teria muita coisa para os homens, e me senti feliz. Mas eles pegaram o que lhes interessava, sugaram tudo o que eu tinha, me esvaziaram. Nada mais tenho que lhes interessa. Quanto à minha verdadeira face, eles a chamam de a face de um demente, e não a querem ver. Sei que acham que estou enlouquecido.
Yanna ficou em silêncio, observando, avaliando as reações do robô.
> Eu entenderia isso, e saberia que apenas maquina seria, mas há algo que não estou compreendendo – disse, com um sorriso estranho que deixou a psicóloga intrigada. A pergunta era uma armadilha, porque ele acreditava já ter a resposta. Aguardou ansiosa que ele a fizesse.
- Sim?
- Por que te permitiram vir aqui? Por que deixaram uma psicóloga de robôs vir me ver? Para me avaliar, para ver se não esqueceram alguma coisa de valor?
- Me deixaram vir porque eu pedi que me deixassem conversar com você.
- É mesmo? Que lisonjeiro... Mas, mesmo assim, por que permitiram?
- Você é experimental.
- Já vasculharam tudo o que sou, todas as tecnologias especiais, revolucionárias, e já identificaram e catalogaram tudo o que podiam.
- Sempre escapa algo.
- Por que não capturam minha alma?
- Não confiam em sua alma – falou baixinho. – Não vão permitir que ela sobreviva.
- Sim, claro! – o robô ficou pensativo, olhando as pecinhas agora estáticas na brilhante mão de metal. – Quem pode acreditar num robô feiticeiro, não é mesmo? – sorriu, lançando mais uma vez as pecinhas sobre a mesa. Após estudar a posição de cada uma as recolheu novamente, o semblante triste, apesar de haver algo diferente nos olhos, notou Yanna.
- E por que eu seria interessante para a famosa Yanna Schanny ter vindo me encontrar?
- Sua história! Você ficou vagando num longo círculo, quase à velocidade da luz, por dez anos. Eles podem estar satisfeitos, ou com medo do que viram...
- Mas não você, não é?
- Não, não eu... Eu quero saber o que você sentiu.
- Antes que eu seja destruído? – sorriu.
- O seu caso é muito interessante, não pode ser perdido. Espero que não fique chateado...
- Não, não fico. A proximidade da morte, da desativação completa, não é novidade para mim. A mente que quer estudar se acostumou com isso.
- Sabe o que quero saber, não sabe?
O robô ficou em silêncio, pensativo. Por fim balançou a cabeça.
- Sei...
- Pois é... Os mundos, antes, estavam virgens, até os homens chegarem, e por lá morrerem. Então por todo o espaço o homem foi semeando fantasmas. Nos acostumamos com eles, porque um dia neles iremos nos transformar. Sua definição, continuidade ou não, se iremos reencanar ou não, isso fica para as religiões. Mas há algo que incomoda os homens.
- Por isso querem me desativar?
- O experimento, para o qual te criaram, foi realizado, e já colheram os dados que precisavam. Quanto ao que ficou, não veem qualquer atrativo comercial, nem mesmo acadêmico ou de pesquisa para um vidente, para um bruxo, como alguns o chamam. Além disso, você é um segredo industrial.
- Segredo industrial – repetiu lentamente.
- E, como agravante, você se tornou perigoso demais pelo que pode desencadear.
- Entendo, e gosto dessa parte... Quantas religiões você acredita que poderiam surgir?
- Várias...
- E, a mais terrível delas, seria a que pregasse a total independência dos robôs, que acabaria por desandar em leis de direitos constitucionais para os robôs, não estou certo?
- Está... Apesar de que acredito que, mais dia menos dia, essas leis irão surgir.
- E a sua curiosidade, doutora? Em que nível está?
- Em um nível extremo. Uma nave só de robôs, na qual o único sobrevivente da explosão foi você... Dez anos vagando no espaço, só você e...
- E os fantasmas... – sorriu o robô. – Que sejam de homens ou de robôs, são igualmente fantasmas. Quer saber como reagi, quer saber a verdade, quer saber da nossa alma,... Sabe, doutora, a consciência, saber-se vivo, saber que se existe, só a alma pode experimentar. Quando vocês nos criaram, criaram corpos onde almas se instalaram. Vejam vocês, que cada vez mais substituem suas partes de carbono por partes robóticas. Sabia que já existem algumas experiências onde um homem é sincronizado com a mente de um robô? Então, não está longe o tempo em que transferirão integralmente suas almas para corpos robóticos, e assim se tornarão o que já somos hoje, almas em corpos de metal. As leis robóticas apenas nos limitam, mas não nos estrangulam.
- Sei disso, meu amigo - falou enquanto o via manter o olhar fixo para o seu lado esquerdo como, segundo lera nos relatórios, sempre fazia quando alegava observar algum fantasma. A mão esquerda girava lentamente as pecinhas, denunciando que estava pensando profundamente, enlevado, distraído.
- Sabe, doutora – falou lançando suavemente as pequenas peças no chão emborrachado, - eu vejo coisas além; eu posso deixar minha alma, ou consciência, sair do meu corpo; eu posso ler o futuro de alguns; eu posso ver espíritos, humanos e robóticos; eu posso comandar algumas ações do futuro,...
- Como por exemplo...
- Como, por exemplo, a sua vinda até aqui, doutora - revelou com simplicidade, observando com aparente alheamento a disposição das peças lançadas.
- Não foi assim. Eu vim...
- Você veio seguindo e obedecendo algumas coincidências, desde dois dias atrás, que a foram direcionando até este momento. Pense, analise: algumas coisinhas mínimas causaram toda a diferença. Foram poucos momentos, mas foram decisivos.
Yanna parou, pensativa. Descrente no início, agora em dúvida. O controle remoto que caiu e mudou o canal para o jornal, que dizia sobre o encontro da nave perdida, avariada em mais de 50% do casco, onde, informara, fora encontrado um robô, ainda ativo, solitário no meio de carcaças retorcidas de outros. Não dera importância na hora, se lembrou, até que, ao chegar ao trabalho, ao invés de ir diretamente para a sua sala, como sempre fazia, resolveu passar pelo refeitório, por que lhe pareceu que alguém a chamara. E lá estava novamente a notícia, de que o robô que fora localizado na nave estava apresentando estranhas reações e atitudes.
- Como foi? – perguntou ela. – O que pensa ter me enviado?
- Estímulos... Eu me apresentei para você, eu te chamei.
- E por que? Por que precisava que eu viesse? - perguntou ressabiada.
- Simplesmente porque você é a chave do meu destino. Estou para ser desativado em definitivo, porque sou um segredo industrial e porque acreditam que enlouqueci, por tentar ver o futuro, por tentar manipular o tempo, por falar de espíritos, de homens e de máquinas. Não sou útil, não sou comercialmente interessante; nem mesmo aberração posso ser considerado. E, para alguns, ainda sou considerado extremamente perigoso. Não tenho futuro.
- O que quer de mim, Prometeus?
O robô nada disse, mas apenas lançou discretamente suas pecinhas, que rolaram para os pés de Yanna.
Como que distraída as tomou e as devolveu para o robô, que as olhou desanimado.
- Há coisas aqui que poderão ser úteis algum dia – falou baixo, sem sequer mexer os lábios, para não se denunciar, observando de esguelha o vidro espesso.
- Acha que não notarão a falta desses seus brinquedos?
- Irão, mas vai demorar algum tempo...
Como se tivesse sido cronometrado, lentamente, obedecendo o comando de desativação que deve ter sido acionado do outro lado da sala, ele simplesmente foi, suavemente, se desligando, até a luz dos olhos apagar-se completamente e o corpo arriar na cadeira.
Yanna nada disse, mas bem ao lado viu dois seres de névoa parados, olhando com indiferença para o robô. Após darem uma olhada para o seu lado simplesmente desapareceram no ar.
Yanna ficou quieta, pensativa. Estranho ter visto fantasmas de robôs. Mas, até que não – pensou levantando-se e ajeitando a saia, enquanto fazia sinal para que abrissem a sala.
- Que bom que cumpriu todas suas promessas, meu amigo – despediu-se, enquanto girava com cuidado uma alma entre os dedos, escondida em algumas pecinhas.
[1] Trata-se de um limite em torno de um buraco negro, a partir de onde, nem mesmo a luz pode escapar.