Olhos fechados, mãos doloridas, respiração profunda. No canto de sua jaula, Ingall sofria mais uma vez com aquelas memórias sombrias. Forçava-se a lembrá-las o tempo todo, para que o tempo não apagasse aquilo que jamais voltaria. Mas era difícil manter as memórias infantis vivas, os dezenove anos que se passaram levavam-nas depressa. Algumas se embaralhavam, mas uma se mantinha praticamente intacta.
Ele estava sentado sobre as pernas de sua mãe, comendo batatas que ela se recusava a comer junto, "Você precisa disso mais do que eu", ela dizia com sua voz profunda e gentil. O tio gritava alguma coisa, e então vinham as redes sobre sua cabeça. A mãe o pegava nos braços e levantava, e aqui a memória virava um borrão, apenas gritos, estrondos e dor. Então ele via suas mãos, sujas de batatas, sobre a grama. Estava sendo puxado para longe de sua mãe. Ela chorava. Alguns homenzinhos em armaduras, pouco menores que ele, tentavam prendê-la numa rede também. Enfurecida, ela jogava os corpos longe, e mesmo com os chicotes estralando em suas costas e as cordas em seu pescoço, ela continuava se movimentando em direção a Ingall. Ela o chamava, mas ele não tinha forças para ir até ela, era apenas uma criança, um "filhote", diziam os homenzinhos. Então, os chicotes começavam a cair sobre Ingall, e as lanças sujas com o sangue de seu tio furavam o pescoço da mãe.
Em sua jaula, com as mãos sujas de sabe-se lá o quê, Ingall enxugou as lágrimas. Sua mãe fora o último gigante que tinha visto de perto. Às vezes tinha impressão de ver alguns no horizonte, um borrão em movimento, solitário. Era assim que tinha que ser. Os humanos sabiam que se os deixassem unidos não seriam capazes de controlá-los. Quando jovem, Ingall viu um dos borrões correr rápido pelo campo e de repente cair. Borrões menores o cercaram, então sumiram, deixando o grande borrão para trás, estirado no chão. Ingall tivera mais sorte que o borrão quando decidiu fugir dos humanos. Ganhou algumas cicatrizes, ferimentos que por pouco não o levaram a morte.
O trabalho era pesado e exaustivo, mas ainda assim era melhor do que ficar preso em sua jaula, largado à escuridão e solidão, acompanhado apenas por ratos e insetos que ousavam se aproximar. Os guardas apareciam apenas para lhe alimentar e, se estivessem de bom humor, recolher suas fezes e urina. Claro que um trabalho tão repulsivo como este não era feito por guardas, mas sim por escravos, prisioneiros, novatos, ou pelo próprio gigante. Para sua felicidade, aquele era o dia de um prisioneiro fazer o trabalho sujo.
Um dos militares entrou pela porta ao fundo do corredor arrastando um homem com roupas velhas e sujas.
– Para trás, besta! – gritou o capitão Lendall, puxando o prisioneiro pelo colarinho para mantê-lo de pé.
Ingall obedeceu às ordens e se espremeu um pouco mais no fundo da jaula, secando as lágrimas mais uma vez e prendendo as correntes em seus punhos. Ele sabia o que tinha de ser feito e fazia antes mesmo que ordenassem na esperança de conquistar a simpatia dos guardas. Não sabia ao certo o quanto sua estratégia era eficiente. Os guardas podiam passar semanas consecutivas, limpando sua jaula e o tratando com um pouco mais de dignidade por conta de sua obediência, mas de uma hora para outra decidiam humilhá-lo sem motivo aparente.
Lendall se colocou à frente da jaula e ordenou que o prisioneiro puxasse um carrinho de mão encostado a alguns metros dali. Ficou parado olhando sério para Ingall, uma falta de expressão que deixava o gigante apavorado. Ele tremeu e abaixou a cabeça, encolhendo-se um pouco mais. Lendall gargalhou e chacoalhou o molho de chaves enquanto o prisioneiro chegava com o carrinho de mão. O portão menor da jaula foi aberta e o prisioneiro atirado para dentro.
– Este é Walden – disse o capitão sorrindo para Ingall, que agora erguera a cabeça.
- Prazer em conhecê-lo, Walden – disse o gigante com uma voz grave e profunda que, apesar de gentil, assustou o prisioneiro.
Walden se pôs de pé, tirando o feno grudado no rosto. Tentou dizer algo, mas o medo lhe calou. Apesar das correntes prenderem o gigante ao chão, Walden se sentia como um rato jogado numa caixa de serpentes.
– Não, não, não, fera – debochou Lendall. – Não é um prazer conhecê-lo. Walden é um homem terrível, um dos piores que já pisou nestas terras.
Ingall olhou para o prisioneiro infeliz, fraco, devastado pelo cansaço e, a julgar pelos lábios secos, cheio de sede. Acovardado diante de sua presença, o prisioneiro não parecia nem um pouco ameaçador, mas sim uma criatura de quem se tem pena.
– Walden é um dos homens que traiu a coroa. Estuprou mulheres, assassinou bons soldados e, o pior de tudo... Ele tentou assassinar o rei.
Lendall esperou uma careta de horror e assim fez Ingall, seguindo as expectativas de seu mestre. Lendall riu com o pavor do gigante.
- Você é um verdadeiro depravado. Não é, Walden?
O prisioneiro ficou quieto, amuado, olhando para o chão.
- Walden. – O capitão esperava uma resposta. – Walden, responda a minha pergunta.
- Não – respondeu timidamente.
- Como é? – Lendall deu um passo adentro da jaula e agarrou Walden pelos cabelos loiros e sujos.
- Eu não estuprei, eu não...
Lendall puxou seu cabelo com mais força e arrastou o prisioneiro na direção de Ingall, que estava apavorado com seja lá o que seu mestre desejasse. O capitão atirou Walden na direção do gigante, que o agarrou rapidamente.
– Mate-o – ordenou.
Ingall tremeu, tentou falar algo, mas seus lábios apenas se moveram rapidamente e disseram nada. O homem frágil em suas mãos estava mais apavorado que os ratos que perambulavam pelo calabouço.
– Ele me chamou de mentiroso, Ingall! De mentiroso!
– M-mestre...
– Eu nunca minto! Já menti alguma vez para você? – O gigante balançou a cabeça em negação. – Então faça o que é justo e mate este... este... – Lendall não achou um xingamento apropriado e deixou por isso mesmo.
– Mestre, eu nunca matei ninguém – disse com temor. – Nem mesmo um animal. Eu não sei como fazer.
– Torça a cabeça dele!
Era impossível para Ingall não demonstrar seu incômodo, mas decidiu obedecer. Ajeitou o homem em sua mão direita com firmeza e apenas pousou a esquerda sobre a cabeça. Walden começava a chorar. Debatia-se, usava toda a força que lhe restava, mas era impossível se soltar das manzorras do gigante, mesmo se estivesse em sua melhor condição física. Era como se não passasse de um boneco de pano nas mãos da criatura enorme.
Ingall já estava demorando muito. O capitão Lendall esperava, caminhando de um lado para o outro, arrumando o cabelo molhado de suor. Estava impaciente. Respirou fundo pela boca e se arrependeu imediatamente ao sentir o cheiro forte de excrementos lhe invadindo. Tossiu e cuspiu diversas vezes, então saiu da jaula a procura de ar fresco que entrava pela porta que deixara aberta, onde um de seus homens o esperava. O guarda olhava para o calabouço com um olhar preocupado.
– Está bem. Eu mudei de ideia. Pode soltá-lo.
Ingall soltou o homem imediatamente, aliviado por ter se livrado daquela terrível tarefa. Walden caiu no chão de joelhos, ainda chorando.
– Olha só pra você – disse Lendall. – Era tão valente, tempos atrás, e agora está aí se humilhando diante de uma besta, limpando sua merda.
Lendall chutou a pá para Walden, que a pegou sem reclamar, engolindo as lágrimas. O prisioneiro se dirigiu ao lado oposto ao de onde estava o gigante acorrentado e viu o monte de fezes que se acumulavam lá havia dias. O cheiro forte quase fez Walden vomitar, mas não tinha nada no estômago e apenas cuspiu no chão.
– Desculpe – disse Ingall para o homem que agora afundava a pá em suas fezes.
Walden o odiou por um segundo. Olhou fundo nos olhos violeta do gigante, viu além da fera violenta que o capitão dizia que era, enxergou seu medo. Diante de si havia mais do que um gigante, era uma criatura acuada, temerosa e frágil, apesar de suas mãos fortes. Ao se desculpar, o gigante demonstrava submissão forçada, um servente que já não pensava mais em liberdade por ser irreal demais até mesmo para o mundo dos sonhos.
Walden limpou o bigode com as costas da mão e acenou com a cabeça.
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