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Ruzgar, o Piedoso

Era magnífico sentir o calor do sol em sua pele novamente, respirar um ar puro e menos fétido, olhar para o horizonte e ver as colinas, árvores e a grama. Ele desejou poder se abaixar e sentir a grama entre seus dedos novamente, mas tudo que podia sentir agora era o peso do saco de pedras em suas costas e as correntes grossas que limitavam seus passos. Apesar do peso, Ingall gostava de poder ver a natureza, mesmo que a distância. Ao voltar os olhos para o chão viu homens caminhando ao seu lado com lanças que agora já estavam baixas. Os homens sabiam que Ingall não tentaria agredir alguém, nem mesmo fugir, ele sabia o que devia fazer e obedecia. Alguns homens o chamavam de dócil ou manso por conta disso.

Com cuidado, Ingall deixou o saco de pedras próximo aos humanos que trabalhavam na construção do muro que protegeria a cidade. Os humanos pegaram alguns carrinhos e Ingall os encheu com algumas das pedras.

Ingall não sabia muito bem do que o muro protegeria a cidade, talvez nem os trabalhadores soubessem ao certo, já que maior parte eram escravos. A cidade sofria mais com ataques vindo de dentro do que de fora. Era possível que a construção servisse apenas para dar trabalho aos prisioneiros. Entretanto, a urgência imposta naquela construção o intrigava. Ingall não tinha o direito de questionar, por isso precisava estar sempre atento, ouvia o que os guardas diziam sem que o percebessem. Contudo, mais importante do que ouvir as palavras era ver e saber quem as dizia. No caso da construção, ele notara que a urgência das ordens não vinha de soldados, nem mesmo dos mestres de obra, mas de homens mais poderosos, sargentos, generais, capitães e Yorg, o conselheiro do rei.

O trabalho de Ingall foi interrompido pelo capitão Lendall, acompanhado do conselheiro Yorg. Ao ouvir Lendall chamando sua atenção, o gigante largou o que estava fazendo e se colocou de joelhos rapidamente, colocando os punhos sobre o chão, como o capitão o ensinara.

– Viu, ele é obediente – Lendall falou com orgulho para o conselheiro.

O conselheiro Yorg era uma figura magra e comprida, frágil. Toda vez que era obrigado a olhar o gigante se amedrontava, as pernas tremiam e o rosto empalidecia, mesmo quando Ingall estava preso em correntes e atrás das grades. Para Ingall era terrível que alguém tão poderoso o temesse daquela forma. Qualquer má interpretação de seus movimentos podia assustar o homem, que não hesitaria em ordenar que o punissem, pois além do medo havia desconfiança no olhar do conselheiro.

Ingall tirou os olhos do chão e percebeu que Lendall e Yorg olhavam para trás a procura de alguém. Não muito distante, distraído e admirado com a evolução da construção do muro, estava o rei Ruzgar, o Piedoso. Uma figura destoante de todas as outras que ali passavam, o rei era inconfundível. Em seus 54 anos, Ruzgar tinha cabelo branco na altura do queixo, o qual combinava com o cavanhaque curto. As vestes brancas, azuis e douradas contornavam o corpo tão forte quanto o que tinha 30 anos atrás, quando batalhou junto ao exército. Um rosto tão belo quanto o que tinha quando assumiu o trono, aos 17 anos.

O gigante o admirava verdadeiramente. E quem não o admiraria? As histórias diziam que ele batalhara bravamente ao lado de seu exército, uma atitude inimaginável de qualquer rei, que geralmente se acovardavam atrás de milhares de soldados. Mas eram esses nobres que Ruzgar gostava de matar com as próprias mãos para mostrar que, em suas próprias palavras, um rei digno de seu poder é aquele que está eternamente junto ao seu povo.

Apesar da brutalidade de algumas de suas histórias, o rei era conhecido também por ter uma alma caridosa. Uma das mais nobres era a tomada de um vilarejo. O lugar era comandado pelo rei Vadim II, o Terrível. As pessoas que ali habitavam passavam fome, devido à alta cobrança de impostos. Estavam a beira da morte quando o rei Ruzgar decidiu intervir. Ao lado de seu exército, Ruzgar derrotou os homens de Vadim II e permitiu que os sobreviventes continuassem a viver e se redimissem ao seu lado. Por salvar o povo do vilarejo e dar direito a redenção a seus inimigos, o rei Ruzgar ganhou seu título de Piedoso.

Ingall aprendera tudo com os sacerdotes que lhe visitavam para educá-lo, uma exigência do próprio rei, que desejava que o gigante conhecesse as verdades sobre o lugar onde vivia.

O rei e seus guardas se juntaram a Lendall e Yorg com um sorriso no rosto, agora direcionado a criatura enorme a sua frente. Ingall se inclinou ainda mais e não conseguiu conter o sorriso ao ver sua majestade.

O gigante tinha o cabelo amarrado para trás, fios sujos e cheios de nós. A barba cheia era aparada e contornava seu rosto, não possuía bigode grosso como os humanos. Suas vestes eram pedaços de pano escuro, restos remendados formavam uma espécie de camisa e uma saia, amarrada na cintura com corda. Seus punhos estavam sempre cobertos por braceletes para que pudesse ser acorrentado a qualquer momento, bem como seus tornozelos. Os fios escuros contrastavam com sua pele clara que ressaltava seus olhos violeta, uma característica única que sempre fascinava o rei Ruzgar.

– Ele está lindo, Lendall – disse o rei dando tapinhas nas costas cobertas pela armadura do capitão.

– Com todo o respeito, não sei se posso concordar quanto a beleza da fera, majestade. Ele não faz bem o meu tipo – arriscou o militar. O rei gargalhou e Lendall e os homens a sua volta riram junto. – Mas sim, ele está forte, grande e saudável. Não há nada que possa o parar... – Lendall inclinou o rosto próximo ao do rei. – Exceto nós.

O rei riu novamente e os homens se juntaram a ele. Ingall continuava com a cabeça baixa e um sorriso no rosto. Estava um pouco envergonhado, no entanto, porque sabia que tinha perdido peso, não estava em sua melhor forma, como afirmava o capitão. Havia alguns meses que as porções de comida vinham diminuindo e o trabalho cada vez mais intenso. O rei raramente o via, deixava a avaliação para seu conselheiro, que certamente era o responsável por diminuir a alimentação do gigante.

Ruzgar se aproximou de Ingall e seus guardas o seguiram com as mãos sobre o punhal das espadas. O rei fez um gesto para que o gigante se levantasse. Ao se levantar devagar, Ingall cobriu o sol da manhã às suas costas, criando uma sombra sobre os homens que o olhavam com fascínio e alguns, como Yorg, com medo. Ruzgar sorria, olhando-o de cima a baixo.

– Que bela criatura. Vejam estes olhos – disse o rei. Ingall sorriu timidamente. – Quantos metros ele tem, capitão?

– Três metros e sessenta centímetros, majestade – respondeu Lendall. – Já é adulto e não deve crescer mais do que isso. Não está muito fora da média dos gigantes, mas é certamente mais alto que muitos deles. Forte como ninguém. Deve levantar mais de uma tonelada com facilidade. – O rei Ruzgar olhou para o capitão com um sorriso incrédulo. Lendall riu. – É verdade, majestade. Talvez ele levante até mais do que isso. É um animal impressionante.

– De fato!

Ingall sentia orgulho ao ver o rei admirá-lo, mas também estava incerto quanto às afirmações do capitão. Três e sessenta e cinco era o que o mestre de obras tinha dito ao medi-lo com seus aparatos da última vez. Entretanto, levantar uma tonelada era algo que ele realmente não tinha como saber, mas duvidava que chegasse a tanto, ainda mais com a perda de peso dos últimos tempos.

O rei Ruzgar fez um gesto para que o gigante se abaixasse para que pudessem conversar melhor. Mesmo ajoelhado, Ingall ainda estava muito acima da cabeça dos homens.

– Nós temos uma missão especial para você, meu caro – disse o rei ao gigante, que continuou calado, mas curioso. – Pode ser um pouco arriscado, mas é por isso que preciso de sua ajuda. Precisamos de alguém grande, forte e leal. Sei que você é grande e forte, Ingall, mas posso contar com sua lealdade?

– Sim, majestade! – Ingall respondeu sem demora. – Eu farei qualquer coisa para ajudá-lo.

– Tem certeza? Você já feriu muitos dos meus homens no passado. Quebrou casas, assustou o povo e quase matou alguns. Gastamos muitas moedas para reerguer construções e curar os feridos, tivemos um terrível inverno naquele ano por sua causa.

– Sinto muito, majestade – disse o gigante, terrivelmente envergonhado pelos seus atos do passado.

– Você quis ir embora do meu reino, mesmo depois de lhe darmos tudo o que era necessário para se alimentar, crescer e ser tão forte quanto é hoje.

Ainda ajoelhado diante do rei, o gigante tocou distraidamente uma mecha de seu cabelo.

– Majestade – começou Ingall –, eu nunca tive a chance de lhe implorar perdão pessoalmente. Peço que ouça meu lamento e me perdoe. Eu era jovem demais e pouco grato. – Ingall abaixou um pouco mais a cabeça. – O tempo que passei preso no poço após este episódio foi...

Ingall não se lembrava da palavra correta. O sacerdote o ensinara a falar apropriadamente com a realeza, mas a falta de prática e oportunidade dificultava a memorização. O vocabulário que Ingall ouvia dos soldados era limitado e um tanto grosseiro, como haviam lhe explicado.

– Gratificante. É a palavra que procura – disse Yorg.

Ingall sabia muito bem o que aquilo significava, certamente não era a palavra que queria para descrever a terrível experiência no poço. Ele sabia que o conselheiro não era iletrado como ele. Ingall sabia para onde o conselheiro queria levar a conversa e desviou.

– No poço, eu entendi que vossa majestade só queria o meu bem e que aqui é o melhor lugar para mim. Por isso, eu garanto que jamais voltarei a repetir meus erros e juro lealdade ao rei Ruzgar, o Piedoso.

Ruzgar estava fascinado com as maneiras do gigante. Nunca imaginara que aquela criatura pudesse se portar tão bem diante de um rei e entender sua excelência. Até então, acreditava que os gigantes não eram animais complexos o suficiente para entender a hierarquia dos homens, muito menos para falar. Por um instante, o rei se arrependeu por saber tão pouco sobre aquelas criaturas.

– Fico feliz em poder contar com você, Ingall – o rei falou exibindo seu belo sorriso simpático. – A missão que lhe darei será sua maior oportunidade de mostrar sua lealdade. Se tudo correr bem, garanto que terá um lugar melhor para se deitar e poderá deixar este trabalho exaustivo para se juntar aos meus homens.

Assim, o rei Ruzgar deu meia volta e se afastou, seguido por seus guardas. Ingall mal podia conter a alegria. O que poderia significar tudo aquilo? Teria uma armadura vermelha e brilhante como a do mestre Lendall? Era difícil saber, mas as palavras do rei encheram seu peito de esperança.

O gigante estava se levantando quando percebeu que uma figura ainda estava ali o observando. Era o conselheiro Yorg, com uma expressão descontente misturada a repulsa.

– O poço deve ter sido realmente terrível para algo tão jovem como você era naquele tempo. – Ingall concordou levemente com a cabeça. – Com seu tamanho atual você poderia facilmente sair daquele lugar. Mas o poço já não é mais como você conheceu, gigante. Eu mesmo me certifiquei das alterações necessárias.

Apesar de ser um pequeno humano, Ingall se sentia aterrorizado pelas palavras e pelo poder do conselheiro. Desde cedo aprendeu que tamanho e força não garantiam poder.

– O rei pode não saber muito sobre sua espécie – disse Yorg encarando-o –, mas eu sei muito mais sobre você do que você mesmo.

O conselheiro cuspiu no chão e se retirou. Ingall se levantou devagar, vendo-o se afastar e cerrou os punhos. Ao perceber que seu sangue fervia, tentou relaxar imediatamente e olhou para os guardas que o cercavam. Apenas um levantara um pouco a lança, olhando o gigantesco punho fechado. Ingall relaxou a mão e o guarda voltou a abaixar a lança, reunindo-se aos outros distraídos.

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