"Eu realmente fui uma vadia desgraçada."
Assim que consegui recobrar a consciência e ver o rosto assustado daquelas pessoas, foi esse o pensamento que tive sobre mim mesma.
Na minha frente haviam cinco indivíduos, todos machucados e, apesar de inicialmente bem paramentados, agora estavam aos cacos.
Fui eu quem os deixei assim, com equipamentos destruídos e corpos esfolados, cuspindo sangue e chorando pelos seus companheiros caídos. Contudo, o líquido vermelho e quente que deveria me manter viva fluía pela minha boca e escorria pela minha pele.
A moça que jazia deitada no chão, cercada pelos diversos amigos que a seguiram naquela empreitada, era a heroína. O bastião da luz, da verdade e da justiça.
Eu? Bem, eu sou a vilã.
Gradualmente meu corpo grotesco começou a se desfazer, a estrutura bizarra que cresceu ao meu redor quando aceitei a escuridão foi abalada pela luz que ela emitia.
Esse é o poder da heroína, banir todo o mau.
Enquanto eu me desfazia em luz, trincando como vidro, vi seu rosto. Apesar de tê-la deixado dessa forma, com um buraco em seu peito; senti, através daqueles significativos olhos castanhos, que a mesma não ficou ressentida.
O que estava estampado naquela face de sorriso gentil, era pena.
No momento em que dividiu a carapaça monstruosa que protegia meu núcleo. No momento em que cravou aquela espada luminescente em meu peito. No momento em que viu minha face e reconheceu meu sofrimento, ela disse:
— Espero que agora você possa viver uma vida feliz, Develine — sorriu, transmitindo toda a ternura que nunca recebi através daqueles seus lábios rosados.
"Então é isso que significa ser o herói, ser gentil apesar de tudo."
Aquilo era o completo oposto do que fui. Agora que morria, e somente agora, foi que me arrependi de tudo o que fiz. Em toda a minha vida eu acreditei que minhas ações eram justificáveis, pois foi assim que me criaram.
Eu sou Develine Hydess, uma jovenzinha mimada que nunca foi amada pela própria família. Um ser deplorável que, para esconder sua própria dor, tratou todas as pessoas ao seu redor como se fossem sacos de lixo.
Um nível tão elevado de destrato que cheguei a ser expulsa de casa pelo pai que me ensinou a ser como sou. Nem mesmo ele aguentou o monstrinho que criou.
"Então eu deveria ter respondido o ódio deles com amor?" pensei, apenas conseguindo rir de tal idiotice. "Que piada!", desviei meu olhar, fatigada por encarar a luz da sua resolução, do seu perdão, da sua vontade. "Se esse é o meu carma, que assim seja. Eu nunca fui amada mesmo, então, porque deveria demonstrar algum amor?" Me esforcei para encará-la de volta sem ser consumida pela pena em seu semblante.
Naqueles profundos olhos castanhos vi milhares de memórias. Eles pareciam refletir o meu interior. Diante disso, rapidamente me lembrei do quão deplorável eu fui. Da mentira que estava contando. Do quanto quis me enganar.
"Não", neguei o inegável quando o rosto daquela mulher reapareceu em minha mente. Era um semblante terno, um que há muito tempo havia esquecido. "Eu fui amada." As lágrimas fluíram. "Eu só não dei valor!" Não consegui mais segurar o choro.
Enquanto todos desejavam me usar, excluir ou ignorar, ela me estendeu a mão. Ela tentou me tirar daquele mundo de dor e eu a rejeitei, a maltratei. Contudo, até o fim, ela tentou me dar amor e carinho na esperança de que eu pudesse mudar.
"Me perdoe, tia, eu não merecia."
As lágrimas fluíram sem controle, se misturando com o sangue que ainda tinha e a natureza obscura que permanecia anexada em meu corpo. Verdadeiras lágrimas de dor e tristeza.
"Foi apenas alguns meses, mas foram os melhores da minha vida."
O monstro aterrador de corpo aracnídeo arroxeado, abarrotado de braços e com um busto feminino colado em seu topo, chorou como uma criança.
Um dos membros do grupo heroico ficou ofendido, mas prestes a xingar a heroína o impediu de me atormentar. De atormentar a criatura que se desfazia em lágrimas e arrependimento.
— Descanse em paz, Develine — ela sorriu, seus olhos perderam o brilho e sua cabeça pendeu.
Seu grupo chorou, berrando; destilando o ódio voraz que sentiam em minha direção, e apesar das ofensas, foi como uma brisa.
Aquela pessoa havia morrido com um sorriso no rosto e eu sabia que também estava morrendo. Acredito que esse foi o motivo pelo qual também sorri, o sofrimento estava acabando.
— Descanse em paz, Eliseline — devolvi o gesto.
O semblante confuso dos companheiros da heroína foi estranhamente satisfatório de se ver. E dentre eles, misturado a luz que escapava de ambas, de mim e da jovem abençoada que também se desfazia em partículas, vi o rosto de uma pessoa que já se foi.
"Eu gostaria de ter vivido com você", pensei enquanto sorria para ela, uma moça que podia ser tanto minha mãe, quanto minha tia, já que eram iguais em aparência.
Gêmeas.
Era complicado saber se era verdadeiro ou apenas fruto dos meus delírios pré morte. Por instinto, sorri como se fosse real.
Antes que a última parte do meu corpo se fosse, antes de os meus olhos serem tragados pelo vazio, vi os lábios daquela imagem se mover.
— Então viva — ela me respondeu com um largo sorriso no rosto. — Eu lhe desejo todo amor do mundo, minha pequena.
Em meio a escuridão avassaladora, um caminho de pedras brilhantes se formou, levando a minha consciência para a luz.
Nota sobre pontuação e estilo de escrita.
- Primeira pessoa é usado no prólogo e em possíveis outras situações ainda indefinidas.
- Terceira pessoa é usado na narrativa central.
- Travessão (—) é usado na fala comum.
- Aspas ("") é usado em pensamentos.
- Til (~) é usado em falas que denotam lembranças. Quando a protagonista ou algum outro personagem se recorda de algo, algum evento do passado, as falas dentro desses pensamentos vêm em tilde.
- Asteristico (*) é utilizado em onomatopeias.