— Foi você quem escreveu sobre isso? — perguntou Cassandra, enquanto mordia um grande pedaço de carne, seus olhos lançando um olhar rápido para o jornal que folheava desinteressadamente.
Jorge, de pé ao lado da mesa, fez um aceno afirmativo com a cabeça, com um calmo sorriso brotando no rosto.
— Sim, fui eu. É incrível que tenham conseguido fazer um papel de tão boa qualidade nesses tempos. Me lembro dos meus dias de estagiário, antes do mundo desabar nesse caos.
Cassandra revirou os olhos, balançando a cabeça com uma expressão que misturava incredulidade e zombaria.
— Ah, você e suas histórias — ela deu uma risada curta. — Mas não tô falando disso, Jorge. Quero saber dessa notícia aqui. A gente vai entrar em lei marcial de verdade?
Jorge, com sua típica tranquilidade, suspirou, como se estivesse se preparando para explicar algo óbvio.
— Sempre estivemos sob lei marcial, Cass. Parece livre, mas Annabelle manda em tudo por aqui com mão de ferro, você sabe disso.
— Mas nunca tivemos restrições desse tipo!
— E ainda não temos — respondeu Jorge, com um toque de impaciência na voz. — Para de ser preguiçosa e lê direito a notícia. Não é nada tão dramático quanto você tá pensando.
— Já bati o olho, é o suficiente! — Cassandra retrucou, mexendo no jornal com desdém. — Campanhas de recrutamento, treinamentos obrigatórios para quem quiser ficar na cidade... Isso é um saco.
— Sim, é um saco — Jorge admitiu com um suspiro, antes de lançar uma pergunta que pairou no ar. — Quando vamos embora, então?
Cassandra parou, sua mastigação desacelerando, e olhou para ele com uma expressão pensativa.
— Ir embora? Quem disse que vamos embora?
— Você quer lutar por uma cidade que a gente mal conhece?
Cassandra soltou um longo suspiro, seu olhar agora mais pensativo, quase introspectivo. Com um movimento rápido, puxou um banco ao seu lado, batendo no assento suavemente para que Jorge se juntasse a ela. Seu tom de voz suavizou, mas havia uma firmeza na forma como ela se expressava.
— Senta aí, Jorge. Olha ao nosso redor.
A casa ao redor deles exalava uma simplicidade aconchegante. As paredes nuas, sem adornos extravagantes, ofereciam uma sensação de serenidade em meio ao caos que permeava o mundo lá fora. Dois quartos modestos, um banheiro funcional e uma sala espaçosa se conectavam de maneira fluida à cozinha, onde cada detalhe parecia cuidadosamente pensado para proporcionar conforto.
A geladeira, embora simples, estava surpreendentemente abastecida, com condimentos e alimentos organizados em prateleiras, algo raro para aqueles tempos. Sobre o balcão, uma vasilha repleta de frutas frescas se destacava; um verdadeiro luxo em tempos de incerteza, um símbolo sutil de que, pelo menos ali, uma pequena forma de estabilidade e fartura havia sido alcançada.
— Isso aqui... — ela gesticulou. — É a vida mais confortável que tive em anos.
Havia uma nostalgia dolorida em sua voz, como alguém que já havia desistido de encontrar um refúgio tão acolhedor.
— E se a gente for embora... pra onde vamos?
— Eu sei, Cass. Mas e se as coisas ficarem feias?
— E quando é que não ficam feias? — Cassandra rebateu, seus olhos fixos nos de Jorge. — Tudo nesse mundo é uma merda. Pelo menos aqui temos uma chance de lutar por algo que vale a pena.
Cassandra mordiscou o pedaço de carne, seus olhos observando com atenção os detalhes da refeição como se fosse uma metáfora para o que estava em jogo. O fogo suave da lareira lançava sombras quentes pela sala, iluminando seus cabelos enquanto ela erguia o pedaço de carne novamente, agora mais reflexiva.
— Talvez falte um pouco da emoção do abismo... mas as lutas aqui não são ruins. — Cassandra balançou a carne. — E olha isso, Jorge. Lá embaixo, esse simples pedaço valeria metade da minha casa!
Jorge suspirou profundamente, enquanto se servia de vinho da jarra. O líquido rubro escorreu para o copo de barro, o som suave misturando-se ao crepitar das chamas. Ele o ergueu aos lábios e deu um gole, aproveitando a pausa, como se as palavras que viessem a seguir exigissem uma preparação cuidadosa.
— Ainda podemos voltar pra Barueri — sugeriu ele, com uma calma que contrastava com a preocupação subjacente. — Também gosto daqui, mas… não acho que podem vencer se essa guerra realmente estourar.
Cassandra arqueou uma sobrancelha, seus olhos se fixando nos dele, desafiadores como sempre.
— Você já viu aqueles caras lá fora brigando? Acha mesmo que não têm chance? Eles são máquinas de guerra!
O jornalista balançou a cabeça, sua expressão se tornando mais sombria enquanto apoiava o copo sobre a mesa.
— Não é uma questão de força. Eles são fortes, inegavelmente. Mas a maior parte da população aqui não é feita de guerreiros, são moradores comuns. Você realmente acha que vão resistir a um bombardeio de manipuladores puros? Ou as estratégias complexas das guildas?
— Ah, VOU TROCAR ESSA FRASE eles não são tantos assim — retrucou Cassandra, dando de ombros. — E não vão ter mana suficiente pra uma guerra prolongada. Vão focar em destruir as muralhas, isso é óbvio — ela tomou um gole de vinho antes de continuar. — Além disso, se formos para Barueri, não pense que vamos escapar de lutar. Não dá pra fugir de uma guerra como essa.
Ela fez uma pausa, sua expressão endurecendo um pouco ao encarar o olhar preocupado de Jorge.
— E, pra ser honesta, não quero lutar contra essa rainha louca.
— Podemos escolher outro lugar então — sugeriu o jornalista, sua voz quase um sussurro, como se temesse que a ideia fosse insensata. — Um lugar mais longe. Não somos fracos, Cass. Podemos viajar, encontrar uma cidade fora do radar, sem essa confusão toda.
A mulher, no entanto, não desviou o olhar. Ela se inclinou levemente e pousou uma mão firme no ombro de Jorge, um gesto carregado com uma mistura de camaradagem e afeição.
— Você me conhece melhor do que qualquer pessoa viva, sabe que não sou de recusar esse tipo de aventura. Se fosse alguns anos atrás, eu estaria lá fora, em busca de uma nova luta.
Ela parou, como se não soubesse como continuar, e por fim gesticulou para o próprio rosto, apontando para o canto dos olhos.
— Olha pra isso.
O mercenário a observou em silêncio, um tanto confuso no início, até que seus olhos finalmente captaram o que ela estava mostrando: as rugas finas ao redor dos olhos dela, marcas sutis que apareciam mesmo na retorcida pele queimada, demonstrando de forma inegável o peso do tempo. Ele piscou, e sua própria mão subiu até o rosto, tocando as rugas que agora decoravam sua pele, um lembrete silencioso da passagem dos anos.
— Não somos mais jovens — continuou Cassandra, sua voz agora tingida de uma melancolia resignada. — Eu estou chegando aos quarenta. Talvez seja a hora de darmos uma pausa. Quero… — ela hesitou, sua voz vacilando por um segundo, como se as palavras fossem difíceis de serem ditas — eu quero morrer em paz. Talvez eu não mereça, eu sei, mas quem sabe o karma permita que eu construa uma família, até ter uma filha, talvez?
A confissão caiu como uma pedra no silêncio que se seguiu. O homem a olhou, atordoado, incapaz de esconder o choque em seu rosto. Finalmente, em um movimento repentino, pegou o jornal que estava na mão dela e o jogou de lado, uma risada alta e incrédula escapando de seus lábios.
— Você, a bruta chefe de arena, pensando em família? — zombou ele, mas havia carinho em sua voz.
Ela riu de volta, empurrando o braço dele de brincadeira, mas não o respondeu, perdida nos próprios devaneios.
— Ah, e quanto aos nossos objetivos?
— Isso não mudou. — Cassandra deu de ombros, um brilho desafiador voltando aos seus olhos. — Aquela escrava ainda é minha posse, não é? Mas e se… buscarmos aos poucos?
Jorge suspirou novamente, mas dessa vez havia algo diferente em sua postura. Como se, ao invés de resistir à ideia, estivesse finalmente aceitando a possibilidade.
— Se você diz… bem, então também ficarei. Não é como se esse reino fosse menos interessante do que a glutona. E fazer uma pequena pausa na história da gladiadora louca não vai ser um problema.
Cassandra sorriu, um riso baixo e genuíno escapando de seus lábios. Havia uma sensação de alívio em seu peito, por mais que tentasse ao máximo evitar demonstrar.
— De alguma forma — disse ela, seu tom cheio de um otimismo renovado — tudo vai dar certo.