— Tem certeza que não quer levar um bode? Não parece, mas são bem rápidos.
— Sim, tenho certeza.
— E o Garm? — insistiu o pugilista com uma teimosia que parecia testar a paciência de Ana. — Ele não se importaria de ir com você.
— Chega, Alex. — sua voz estava firme, mas fatigada. — Estou há meses sem um momento de paz. Vai ser bom relaxar a mente... sozinha.
— Está virando um padrão... essa sua inconsequência. O que custa deixar alguém te acompanhar?
Ana parou bruscamente, virando-se para ele com um olhar de puro desgosto.
— Chegou a hora de me fortalecer. Estou enferrujada, muito, muito, enferrujada! No pior dos cenários... eu morro. E daí? — ela deu de ombros, voltando a revisar sua mochila. — Que diferença isso faz? Sozinha, não vou mudar o rumo dessa guerra de qualquer forma. Vocês conseguem se virar.
O silêncio que se seguiu foi quase palpável, e logo ela notou que todos ao redor a encaravam, desconfortáveis com sua indiferença. Ela suspirou de novo, mas desta vez suavizando o tom.
— Só vou caçar por alguns dias, meu amigo — murmurou, os olhos voltados para a floresta ao longe. — Já passou da hora de dar atenção pra essa velha amiga. — completou com um resmungo, ajeitando a espada negra enrolada em couro em suas costas com um toque carinhoso.
— Caçar? Você vai literalmente para um reino inimigo sozinha!
— Esse é só o bônus, não a razão principal — um sinuoso sorriso apareceu em seus lábios, sutil, mas não despercebido. — A não ser que dê para juntar os dois objetivos em um só. Isso pouparia tempo.
O homem suspirou, desistindo da batalha perdida para tentar convencer sua líder. Cruzou os braços e lançou um olhar para Fernando, que estava ao seu lado com sua rabugenta máscara vermelha habitual. Com uma cotovelada suave, incitou o companheiro, que apenas se espreguiçou teatralmente, hesitando antes de falar.
— O que foi? Vai me encher o saco também? — perguntou Ana, arqueando uma sobrancelha.
O segundo conselheiro de guerra, meio desconfortável, se endireitou enquanto tentava encontrar palavras.
— Bem... nós... estávamos conversando e... com tudo o que está acontecendo, achamos que talvez você pudesse nos... instruir. — Ele parou, buscando apoio.
— A verdade é que atingimos nosso limite — continuou Alex. — As estátuas não podem se fortalecer da maneira tradicional, não tem músculos para treinar. Elas precisam de algo mais... de inspiração. Precisam ir além da técnica, além do que já conhecem.
— Há também os novos soldados... — Fernando complementou. — Não estão tão avançados, mas ter uma orientação da rainha com toda certeza os daria ânimo para colocarem um pouco mais de esforço nisso tudo.
Ana bufou, balançando a cabeça com irritação, mas seus olhos brevemente capturaram o olhar de Alex. Lá, no fundo de seus olhos cansados, ela viu algo. Respeito, sim, mas também uma tristeza velada, uma preocupação que parecia o corroer por dentro. Fernando, ao lado, tentou não encarar por muito tempo, mas seu silêncio dizia tudo. Eles tinham… medo.
— Vocês esperam muito de mim. Não tenho nada a dizer que vocês já não tenham dito.
— Não é uma ideia ruim, Ana. Apenas considere por um momento — Gabriel, o anjo de pedra, que até então estava em silêncio, interveio com sua habitual serenidade.
Ana o encarou com irritação, mas logo sorriu em uma desistência resignada. Não adiantava ter conselheiros se não fosse seguir seus conselhos.
— Vocês têm uma hora para reunir todos no portão. Vai ser uma aula rápida. Depois disso, eu parto.
Alex e Fernando se entreolharam, surpresos por terem conseguido convencê-la, mesmo que sem entusiasmo. Sem perder tempo, ambos acenaram rapidamente e correram em direção à fortaleza para reunir todos que conseguissem do pequeno exército de Insídia.
Terminando seus preparativos, Ana caminhou até uma árvore retorcida, cujas raízes gigantescas saíam do chão desordenadamente. Ela se sentou entre duas delas, o corpo afundando lentamente no conforto que a natureza proporcionava. O som suave das folhas ao vento e a brisa fria trouxeram uma calma inesperada. Os minutos passaram devagar, a tranquilidade da floresta envolvendo-a como um cobertor de memórias distantes.
Seu olhar vagou até seu conselheiro principal, que permanecia imóvel ao seu lado. Havia uma certa melancolia no cenário, um sentimento que provinha das vagas memórias dos primeiros anos de sua solidão, quando Gabriel costumava ficar, daquela mesma forma, a acompanhando de forma silenciosa, enquanto os anos passavam sem pressa.
— Como é que eu passei mil anos ao seu lado sem nunca perguntar sobre isso? Mesmo no fim, não parecia que as estava usando…
Suas sobrancelhas inconscientemente se franziram enquanto finalizava seus sussurros, e não pôde deixar de lançar o questionamento ao sósia.
— Suas asas podem voar?
Gabriel olhou para ela com seus olhos frios por trás da máscara, intrigado pela casual pergunta.
— Infelizmente, não.
— Imaginei... — Ana desviou o olhar para o céu. — Ainda assim, o movimento delas é bem realista para asas de pedra. É incrível.
Ela passou alguns segundos em silêncio. Memórias vagas surgiam sem parar, mas se dissolviam tão rápido quanto.
— Você está disposto a morrer aqui, Gabriel?
O anjo de pedra inclinou a cabeça, confuso.
— Não entendi a pergunta.
— Está disposto a abrir mão da sua imortalidade por... isso? — a mercenária fez um gesto vago com a mão, apontando para o reino ao longe.
Gabriel se sentou em uma das raízes próximas a ela, pensativo. Ele olhou para o horizonte da floresta, onde as sombras dançavam ao vento.
— No começo, sequer imaginei que seria possível. Mas este lugar... nos deu algo... algo que nem sabíamos que existia. Um desejo de proteger. Não só você, Ana... mas todos. O reino. As pessoas. Nos deu um propósito.
Ana o encarou, surpresa com a honestidade que vinha da voz. Pela primeira vez, Gabriel não falava como uma estátua ou uma parte inerte do mundo ao seu redor.
— Era só... imitação. Copiávamos gestos, sorrisos, expressões, bordões.
— Era ridículo. Parecia que tínhamos atores amadores por toda parte. Bem, combinava com as máscaras — Ana sorriu, lembrando-se do nascimento da cidade.
Gabriel riu suavemente, um som quase imperceptível, mas que fez novamente os cantos dos olhos de Ana tremerem pelo ato inesperado.
— Sim, era meio cômico — ele admitiu. — Mas, com o tempo, absorvemos aquilo. Hoje não existimos... vivemos. Talvez ainda não como os outros... mas eu não me sinto mais vazio
"Eu…", refletiu Ana, notando a provavelmente involuntária troca para o singular.
Ela abaixou a cabeça, brincando com um galho que havia pegado do chão, traçando formas aleatórias na terra.
— Sinto muito, Gabriel.
— Pelo quê? — ele perguntou, surpreso.
— Por te deixar mais fraco. — respondeu Ana, sem levantar o olhar.
Gabriel balançou a cabeça suavemente, negando.
— Não estamos mais fracos. Estamos mais... completos.
— É. Talvez... — sua voz saiu como um sussurro, baixa e sem convicção, mas o conselheiro de pedra não pareceu se importar.
Os dois ficaram ali, encarando o vazio, cada um em uma reflexão própria sobre o conversado, até finalmente serem despertados pelo alto som de passos.
Um punhado de gente vinha em sua direção, com Alex logo ao lado. Não passavam de cem, uma fração dos soldados e moradores, mas seria suficiente para o que Ana pretendia. Ele se aproximou, respirando fundo enquanto o grupo se reunia.
— Eu os trouxe. Fernando está vendo se mais alguém aparece — disse Alex, ofegando.
A rainha passou os olhos por cada um dos voluntários. Soldados e mascarados entre eles acenaram em reconhecimento, enquanto os recém-chegados, os novos moradores da cidade, recuavam discretamente diante de seu olhar penetrante, sucumbindo ao peso da autoridade.
— Hum-hum — o som de Ana limpando a garganta saiu alto, trazendo o silêncio de todos. Ana ergueu o queixo, e sua voz, firme, mas sem necessidade de elevar o tom, ressoou claramente — Se organizem. Quero ver o padrão básico de treinamento.
Ao ouvirem a ordem, os soldados obedeceram de imediato.
A maneira como cada grupo se alinhava com sua respectiva arma demonstrava uma disciplina que Ana não esperava. Os lanceiros estocavam com precisão quase mecânica, enquanto espadachins traçavam arcos com suas lâminas, como se desenhassem padrões invisíveis no ar. Já os pugilistas atacavam e recuavam, suas sequências fluindo como uma dança marcial perfeitamente sincronizada. Até os arqueiros e usuários de armas incomuns mantinham seu ritmo, suas mãos seguindo os movimentos repetitivos como se gravassem a técnica em seus ossos.
— Surpreendentemente bem adestrados — comentou Ana, enquanto seus olhos acompanhavam cada movimento.
Fernando chegou nesse momento, e sem nem mesmo perguntar, o novo grupo se juntou à exibição. A rainha sorriu, ainda mais satisfeita com o que viu.
— Estão diferentes de um minuto atrás, e estão confiantes. Não são os mais fortes... mas são ferozes. Vocês dois fizeram um ótimo trabalho.
Seu olhar voltou-se para Alex e Fernando, e com um leve aceno de cabeça, ela reconheceu seus esforços.
— Vocês, se aproximem. — Ana apontou para alguns membros de cada grupo. — Me emprestem suas armas.
Os soldados prontamente avançaram e, um por um, colocaram suas armas diante da rainha.
Ana ergueu a espada primeiro. Era pesada para uma lâmina comum, mas não mais do que o esperado. O ar ao redor dela pareceu se contrair, como se o próprio ambiente segurasse a respiração. A poeira, que antes repousava calmamente no solo, se ergueu lentamente, rodopiando ao redor dela com cada movimento da lâmina, enquanto a luz suave do amanhecer refletia no fio da espada, criando um brilho breve, mas intenso.
— Observem atentamente — disse, fazendo todos pararem seus movimentos repetitivos. — Mesmo que esta não seja a sua arma principal, há algo a se aprender.
Ela respirou profundamente, sentindo o equilíbrio da arma em suas mãos. Seus olhos se estreitaram, concentrando-se no fio da lâmina, e então em um movimento suave, quase imperceptível para olhos destreinados... ela se moveu.
Não foi extravagante, mas houve uma precisão e intenção por trás dele que fez o tempo ao redor parecer desacelerar. Os músculos de Ana trabalharam em perfeita sincronia, e o som do metal rasgando o ar foi como um trovão silencioso. Seus pés mal se moviam, e ainda assim, todo o seu corpo parecia participar do golpe.
— Uma espada — começou, sua voz reverberando por entre as árvores. — Não é apenas uma ferramenta. É uma extensão da alma de quem a empunha. Não corta só carne, corta o espírito, a vontade do oponente. O que um espadachim deve ser? Preciso, implacável, controlado. Ele faz o inimigo duvidar antes de atacar, e quando o golpe final é desferido, ele já venceu. Um corte deve ser o fim... de tudo. — a lâmina percorreu o ar novamente, um arco perfeito que parecia rasgar a própria realidade.
Todos que a assistiam notaram repentinamente que estavam suando. As mãos, antes firmes nas armas, agora tremiam ligeiramente, seus dedos apertando os punhos com força. Alguns sentiram seus corações acelerarem, como se a pressão invisível da técnica estivesse esmagando seus peitos.
Um toque de temor podia ser visto em seus olhares enquanto engoliam em seco, tocando seus próprios pescoços, conferindo se ainda repousavam onde deveriam. As respirações ficaram rasas, e alguns nem mesmo piscaram, com medo de perder um segundo sequer daquele espetáculo aterrador.
Sem hesitar, Ana largou a espada e agarrou a lança cravada no chão. O movimento foi rápido e preciso, como se a arma sempre tivesse feito parte dela. A lança girava entre suas mãos com fluidez, obedecendo a cada comando como uma parte de sua própria vontade, seus movimentos carregados com uma elegância letal.
— Uma lança é diferente. Não é apenas uma arma de alcance. É uma ferramenta de precisão. Sua finalidade é clara: abrir caminho, romper defesas. Não importa o que esteja a sua frente, deve penetrar onde nada mais consegue. Se você empunha uma lança, deve fazê-lo com a convicção de que pode perfurar o próprio mundo.
Enquanto falava, seus dedos manipulavam a arma com facilidade, fazendo-a girar em arcos perfeitos, como um furacão de aço e madeira. Os movimentos eram graciosos, quase artísticos, mas havia uma tensão palpável em cada gesto, como se estivesse prestes a explodir.
Então, sem aviso, ela parou. Seu corpo, antes relaxado, contraiu-se. Seu braço se estendeu em um instante, rápido como um relâmpago, e a ponta da lança, que antes se assemelhava somente a um borrão, tocou sutilmente o tronco da árvore à frente. Tudo permaneceu imóvel, o ambiente silencioso, como se o tempo tivesse congelado.
Então, veio o estrondo.
A madeira se despedaçou, fragmentos voando em todas as direções. A força concentrada no toque havia se manifestado em um único ponto, e o impacto, silencioso no início, liberou toda a energia acumulada em uma explosão brutal. A árvore, outrora firme e imponente, agora não passava de destroços espalhados pelo chão.
Os soldados observavam em um silêncio atônito. O impacto da demonstração revelava a verdadeira essência da lança, devastadora, imparável, os atravessando como se eles quem tivessem sido atingidos pelo golpe.
Sem mais rodeios, Ana a largou no chão e sua postura mudou imediatamente, os pés plantados firmemente no chão, o corpo relaxado, mas pronto para a ação. Ela avançou com um soco que estranhamente não moveu o ar, seguido de um chute que, de forma semelhante, o cortou sem causar vibrações.
— Nas artes marciais — murmurou entre um golpe e outro. — O corpo é a arma. Não há lâmina, não há ponta afiada. Apenas você. Bem, há exceções... — ela deu uma breve pausa, um sorriso sutil surgindo no canto de seus lábios. — Mas confie apenas em seus punhos, em suas pernas e em sua vontade.
Diferente de suas exibições anteriores, que carregavam a grandiosidade de uma força bruta ou a precisão letal de uma lâmina, os movimentos de Ana agora eram mais sutis, quase silenciosos. Ela não precisava de espetáculo, cada ação era calculada, eficiente, sem excessos. Seus pés se moviam com precisão, seus punhos acertando o ar como se o moldassem. Não havia nada de espalhafatoso, mas carregava uma sensação de controle absoluto.
— Seja sutil, é uma dança entre você e o oponente. Não espere gritos, não espere o brilho do metal. Respire, ataque e repita o processo. Seja como água: sem forma, capaz de se adaptar a qualquer situação. Flua, nunca resista. Cada movimento deve ser uma resposta, e cada resposta, um golpe devastador. Não ataque o inimigo... absorva-o. E então... destrua-o de dentro para fora.
Por fim, após alguns minutos de demonstração, Ana seguiu para o próximo item, mantendo seu ritmo meticuloso. Com exceção das artes marciais, ela apresentou apenas um movimento de cada arma, sem repetir. Era como se cada técnica fosse deliberadamente contida, resumida a sua forma mais pura. A simplicidade aparente de seus gestos quase beirava o bobo, algo que, em outros contextos, poderia ser considerado insuficiente. Afinal, o que alguém poderia aprender com tão pouco?
No entanto, ninguém ousou reclamar. Não havia risos contidos, nem olhares de dúvida. O silêncio era pesado, como se o ambiente estivesse carregado de uma energia indescritível. Na verdade, ninguém sequer cogitava desdenhar daquilo. Os olhos de todos estavam vidrados, presos pelos movimentos de Ana, como se as danças que ela executava carregassem consigo algo muito mais profundo do que poderiam compreender à primeira vista.
Ela não apenas ensinava... ela impunha.
A sabedoria da monarca parecia ter uma vontade própria que não admitia ser ignorada, um domínio absoluto e palpável que não dava escolha a não ser absorver aquele conhecimento. Era como se estivesse gravando, à força, sua influência em seus corpos e mentes, deixando claro que tudo o que viam deveria ser lembrado, custe o que custar.
Não era uma aula, não era um treinamento.
Era uma transformação.
Naquele momento, a vontade da rainha havia se tornado a deles.