Assim que os muros da cidade surgiram à sua frente, Ana soltou um leve suspiro. Seus pensamentos ainda estavam distantes, mas a visão da grande ponte se baixando lentamente à medida que o comboio se aproximava trouxe-a de volta à realidade. O som das correntes rangendo misturava-se com o zumbido da cidade logo à frente, criando um ritmo lento e pesado que marcava o fim de uma longa jornada.
Quando finalmente chegaram à entrada principal, dois guardas corpulentos e armados estavam postados de cada lado do portão principal. Suas armaduras rústicas brilhavam à luz do final da tarde, e eles mantinham suas posições rígidas, os olhos atentos examinando o comboio que se aproximava. Cada passo dos estranhos e ferozes animais de carga era medido com cuidado sob seus olhares implacáveis.
— Alto! — um deles gritou, levantando a mão em um gesto firme. Sua voz, grossa e rouca como o rosnar de uma fera, ecoou pelo ar, embora seu tom demonstrasse mais protocolo do que ameaça. Ainda assim, a presença bestial trazia um desconforto natural para qualquer recém-chegado.
Ana, ainda cansada, revirou os olhos discretamente e fez um gesto breve com a mão, como se dissesse que Miguel se encarregasse daquilo. Sem perder tempo, o secretário mascarado desceu da carroça com sua habitual postura impecável, as longas vestes caindo ao seu redor com perfeição. Seu movimento foi o suficiente para que os guardas o notassem, e assim que o fizeram, as expressões dos dois homens mudaram rapidamente.
O guarda que havia gritado deu um passo para trás, suas sobrancelhas se arquearam em reconhecimento. Ele sabia muito bem o que a presença de Miguel significava, e curvou-se em uma leve reverência, quase automática, com a importante chegada.
— A rainha está de volta, — disse Miguel, sua voz suave, porém firme. — Mas está cansada da viagem. Não quer alarde.
Ele lançou um olhar sutil para Ana, que ainda estava sentada no banco da carroça. Ela acenou levemente para os guardas, forçando um sorriso. Não tinha disposição para as formalidades de retorno, e a última coisa que desejava naquele momento era qualquer tipo de celebração ou grande recepção. Logo depois de acenar, Ana fechou os olhos, repousando-se novamente, como se estivesse confiando a Miguel toda a responsabilidade de lidar com o resto.
— Vamos organizar os novos moradores. Enquanto isso, gostaria que providenciassem um pequeno destacamento para garantir que a entrada seja desimpedida até nossa instalação.
— Sim… senhor… será feito — o guarda respondeu, a voz falhando com o nervosismo, mas a formalidade em seu tom mais perceptível agora. Ele se virou para seu companheiro, que deu um leve aceno de cabeça, ambos reconhecendo a ordem silenciosa que haviam recebido. Nenhum movimento brusco foi feito, e o silêncio de reverência se instalou no local.
Satisfeito com a resposta, Miguel retornou para a carroça, pronto para conduzir o veículo mais uma vez. No entanto, mal tinha se sentado quando percebeu um crescente murmúrio ao seu redor. Era um som baixo, mas inconfundível — um vozerio abafado, passos apressados e respirações pesadas que só podiam significar uma coisa: confusão à vista. A atmosfera tranquila transformou-se em tensão palpável em segundos.
Ele virou a cabeça na direção do tumulto, já se preparando para descer novamente, mas foi interrompido pelo gesto inconfundível de Ana. Sua mão levantada, com dedos estendidos, dizia claramente para ele permanecer onde estava. Ela mesma lidaria com aquilo.
Irritada, se levantou com um salto, os pés pousando firmemente no chão enquanto entendia que, para ela, o destino não era tão gentil a ponto de permitir um descanso.
Não demorou muito para que seus olhos captassem a cena: Garm, o grande lobo negro que a acompanhava, estava com as presas à mostra, rosnando de maneira baixa e ameaçadora. Os músculos de seu corpo maciço estavam tensionados, como uma mola pronta para se soltar, enquanto seus olhos brilhavam com uma fúria contida. Ele encarava fixamente um grupo de três guardas bestiais, que por acaso passavam em patrulha.
Os guardas, no entanto, não estavam dispostos a recuar. Seus corpos estavam curvados em uma postura animalesca, prontos para o combate, enquanto exibiam suas próprias presas, menores do que as de Garm, mas ainda assim ameaçadoras. O pelo de suas peles eriçava-se com a tensão que parecia prestes a explodir, e um rosnado grave saía de suas gargantas, ecoando no silêncio crescente ao redor.
— Sério? Uma briga agora? — Ana sibilou para si mesma, esfregando as têmporas com uma das mãos, o gesto batendo contra a máscara que cobria seu rosto. A sensação do metal contra seus dedos a irritava ainda mais, mas ela respirou fundo, controlando o impulso de perder a paciência de vez. Sabia bem do que Garm era capaz. Se aquilo escalasse, os três bestiais não teriam chance.
Sem perder mais tempo, ela caminhou diretamente até o lobo, seu andar tranquilo contrastando com a tensão ao redor. Com um movimento calmo, mas firme, ela levantou a mão e bateu suavemente na cabeça de Garm. O impacto fez o grande lobo soltar um grunhido baixo, mas ao reconhecer quem era, relaxou imediatamente, como se tivesse sido um simples cão travesso sendo repreendido. O rosnado profundo cessou de uma vez, e embora seus dentes ainda estivessem expostos, os olhos de Garm focaram-se unicamente em Ana
— Você tinha um melhor temperamento antigamente — riu ela. Sua voz, apesar de calma, carregava um tom inconfundível de autoridade. — Deixa eu cuidar disso.
Os três bestiais observaram a cena com uma mistura de confusão e temor. Eles sabiam bem do que aquele lobo era capaz. Durante o último conflito, o número de seus companheiros dilacerados por suas mandíbulas era incontável, um verdadeiro massacre. Ver agora a criatura imponente ser controlada com tanta facilidade por Ana os deixou perplexos. Não era o medo de Garm que os perturbava, mas sim a forma como ele se submetia docilmente à rainha.
Em seguida, Ana olhou na direção do trio, e começou a se aproximar com passos deliberadamente lentos. Eles estavam claramente nervosos, tensos, seus corpos prontos para saltar, mas hesitantes. Sabiam muito bem que atacar a rainha seria um erro fatal. O orgulho que sentiam por serem guardas bestiais não superava o instinto de sobrevivência. A punição seria muito pior do que qualquer derrota em batalha.
Quando chegou perto o suficiente, ergueu a mão e, sem qualquer cerimônia, deu um leve soco na cabeça de cada um dos três guardas, assim como fez com Garm, de forma casual, como se fosse uma repreensão leve, mas significativa.
— Vocês também. Calma.
Os bestiais pareciam confusos, mas a tensão que permeava seus corpos começou a esvair-se gradualmente. Os rosnados cessaram, e seus dentes antes expostos lentamente se ocultaram novamente. Eles se endireitaram, ainda sem compreender completamente o que acabava de acontecer, mas claramente derrotados. Não por uma batalha, mas por uma repreensão que sabiam não ter como contestar.
— Escutem bem — Ana continuou, agora circulando o grupo. Sua voz tinha um tom de desdém, mas era mortalmente séria. — Eu já ouvi a versão da história dos dois lados, e adivinhem? As duas são estúpidas.
Ela fez uma pausa breve, aproveitando o silêncio para intensificar sua presença, enquanto a autoridade em suas palavras pairava como uma ameaça no ar.
— O que ocorreu no passado deve ser deixado lá. Na verdade, continuem, se quiserem, desde que mantenham essa besteira longe dos meus domínios.
Ela se aproximou ainda mais dos três, suas palavras carregadas de uma ameaça velada.
— Se eu souber de qualquer briga estúpida nos meus territórios, as punições serão severas. E acreditem, vocês não querem me testar. Isso vale pra você também, lobo idiota.
Os quatro abaixaram as cabeças, resignados e claramente frustrados.
— Entendido? — Ana ergueu a sobrancelha, esperando por uma resposta.
— Sim, senhora... — responderam quase em uníssono, as palavras soando como um murmúrio contido.
— Ótimo. Agora, desapareçam — ordenou, mas logo parou, pensando por um breve instante. — Não, na verdade, esperem aqui por um momento.
Com um gesto curto, os três guardas se alinharam ao lado dela, aguardando novas ordens com uma mistura de nervosismo e alívio por estarem fora de perigo. Garm, por outro lado, soltou um leve bufar, seus olhos lançando um olhar rápido e insatisfeito para os guardas antes de voltar sua atenção para Ana.
— Sem mais provocações por hoje, sim? — a Rainha murmurou, com um leve sorriso em seus lábios.
O lobo bufou novamente, mas começou a caminhar, obediente, seguindo em direção à cidade. Ana o observou partir por um instante, seus olhos agora mais cansados. Foi então que notou Marlene observando a cena a apenas duas carroças de distâncias, com um sorriso curioso no rosto. A planta anciã parecia achar a situação divertida, o que fez Ana soltar um suspiro leve antes de se dirigir a ela.
— Lá estão os campos de cultivo — disse Ana sem rodeios. — Vocês podem começar a se organizar por ali, iremos apresentar vocês a todos mais tarde.
Marlene seguiu o gesto de Ana com um olhar solene. Suas longas raízes começaram a se estender pelo chão, explorando o solo fértil ao redor. Havia um som suave de folhas roçando enquanto a anciã examinava o terreno com precisão. O vento balançava suas pétalas levemente enquanto avaliava as vastas terras recém limpas a distância, na qual a luz do Sol batia por toda extensão, criando uma atmosfera tranquila, mas cheia de potencial.
— É uma boa terra. Te agradeço por ceder a nós.
— Não agradeça, já disse que vão ter que trabalhar por isso — comentou a mercenária, com um tom mais pragmático. — Esses três aqui vão ajudar vocês a entender a organização da cidade.
Os guardas, que esperavam em silêncio ao lado, endireitaram-se ao ouvir suas instruções. Eles pareciam curiosos com a chegada da nova divisão e aliviados por não terem enfrentado nenhuma punição séria.
— Vocês três, quando terminarem aqui, falem com Gabriel para enviar suprimentos para lá. Finalmente começaremos as plantações de forma adequada, com nossa nova líder da Divisão dos Fazendeiros.
Os guardas acenaram, intrigados com a nova divisão mencionada, mas relativamente animados ao ouvirem a palavra fazendeiros. Seus corpos exigiam carne para manter-se fortes, mas fazia semanas que não sentiam o rico sabor dos vegetais que comeram por uma vida toda.
Ana respirou fundo, permitindo-se alguns segundos de descanso mental após a logística ordenada. Contudo, seus momentos de reflexão foram interrompidos pelo som de estática suave de Marlene se preparando para mais uma frase. Porém, ao invés de palavras, o som foi acompanhado por um leve sorriso rouco que escapou dos "lábios" da plantínea.
— O que foi? — Ana perguntou, sem entender a graça da situação em questão.
Marlene, com seu tom sempre sereno e cheio de uma ironia sutil, inclinou-se mais um pouco na direção da mercenária, suas pétalas formando um sorriso ainda mais amplo.
— Não sabia que você seria tão leviana com os nomes — respondeu a mulher planta, com o chiado suave escapando de suas pétalas ao final da frase.
Ana parou por um momento, refletindo sobre o comentário. Sabia que o nome dado fora apressado, mas não esperava uma repreensão tão sutil. Seus lábios se curvaram em um sorriso sarcástico, e ela levantou uma das mãos, balançando-a casualmente, como se afastasse uma preocupação insignificante.
— O que acha de… Divisão Dríades?
Por um momento, Marlene ficou imóvel, como se estivesse processando a sugestão. Mas, logo em seguida, as folhas que compunham seu corpo se agitaram levemente, e a planta carnívora inclinou-se para frente em uma espécie de reverência, um gesto de aprovação claro. Suas pétalas se fecharam com elegância, formando uma estrutura compacta que parecia indicar satisfação.
— Uma escolha… mais adequada — murmurou, sua estática agora transformada em um som de aprovação.
— Ótimo, — disse Ana, já voltando para a carroça. — Eu não estava com ânimo para pensar em mais um.
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