Uma figura humana.
Ela estava simplesmente lá, de pé, imóvel. Ana estreitou os olhos, aproximando-se. A princípio, a figura parecia vagamente familiar, e logo essa percepção aprofundou-se ainda mais, pois, por mais que sua forma não mudasse, sua existência parecia flutuar entre diferentes pessoas. Por um instante, era Gabriel. Em outro momento, parecia Alex, depois Eva, até mesmo Nyx. Centenas de pessoas, algumas já esquecidas, algumas presentes em sua vida.
Por fim, era ninguém. Todos eles e, ao mesmo tempo, nenhum deles. Como se refletissem pedaços remendados do que fazia ela ser ela.
Se assemelhava a uma tela em branco, ou talvez um bloco de argila, sem forma definida. O corpo era completamente liso, sem qualquer detalhe visível. Não havia olhos, nariz, boca, nem mesmo dedos ou detalhes nas mãos. Apenas uma massa sem adornos.
Ela começou a circular em volta da figura, cada passo lento e calculado ecoando pelo chão fragmentado. Era como observar um enigma. Não havia nada, nenhum traço de identidade. E ainda assim, ela sentia como se aquela presença vazia estivesse encarando diretamente sua alma.
"Definitivamente isso é alguém, não algo", pensou, examinando-a de todos os ângulos.
Não havia vida, porém estava inegavelmente vivo.
Gabriel observava, mas a medida que Ana se aproximava da figura, ele começou a sentir algo estranho. Um peso. Como se o ar ao redor dele estivesse ficando mais denso, mais opressor. Ele tentou rir, soltar uma de suas provocações habituais, mas sua garganta parecia apertada. Algo estava errado. O sorriso confiante em seu rosto começou a vacilar, e sem entender por quê, ele deu um passo para trás.
— Que porra... — sussurrou o anjo, logo franzindo a testa por pensar que estava usando muito a palavra hoje, antes de voltar a encarar a estranha coisa.
Gabriel nunca havia sentido isso antes. Ele se sentia sufocado, como se estivesse na presença de algo que transcendia o caos anárquico de sua mana reversa e a ordem da pureza suja vista na mana divina.
Ana não notou o desconforto dele. Ela parou diante da figura, e sem pensar, sua mão se levantou, tentando tocar a superfície lisa e indefinida. Seria frio? Quente? Rígida? Macia? Era impossível deduzir. O material parecia simples, mas, ao mesmo tempo, emanava uma complexidade que desafiava qualquer lógica.
Para sua surpresa, a figura também estendeu a mão, acompanhando seus movimentos com uma precisão assustadoramente perfeita. Eles se moveram em perfeita sincronia.
As palmas se tocaram.
No momento em que o toque foi feito, o mundo ao redor de Ana pareceu girar, distorcendo-se. Ela não estava mais apenas olhando para a figura sem feições. Agora, ela olhava diretamente para si própria. Um espelho perfeito. Seu reflexo a encarava.
"Isso realmente… sou eu?"
A dúvida invadiu sua mente enquanto fixava-se na outra Ana em sua frente. Os olhos que via eram profundos e vazios, como um vasto abismo sem fim, mas dentro desse lugar insondável, havia algo familiar, como uma lembrança longínqua.
E então, esse abismo sorriu.
Quarenta dentes perfeitos surgiram na boca da figura, impecavelmente alinhados com uma precisão impossível. O sorriso era largo, muito largo, e aterrorizantemente antinatural. Era um sorriso que parecia conhecer todos os seus segredos, todos os seus medos. Um sorriso que, de alguma forma, ela sempre soubera que existia, mas que nunca havia realmente visto.
Instintivamente, Ana levou a mão à própria boca, tocando seus lábios. Ela também estava sorrindo. O sorriso se alargava de maneira tão irreal quando o que observava. Seus dedos passaram pelos dentes, um de cada vez, e então para seu horror e curiosidade, ela percebeu... quarenta dentes. Eles estavam ali. Perfeitos, afiados, alinhados, exatamente como os da figura diante dela.
Foi então que notou sua contraparte ficando mais opaca, algo tão sutil quando os passos de uma formiga, mas que, naquele foco extremo, foi tão perceptível quanto fogos de artifício no céu noturno. Sua forma clara balançou por um breve momento, como se estivesse sendo drenada de dentro para fora.
E, ao mesmo tempo, ela sentiu uma leve, mas estranha falta de apego.
— Liberdade?
Não sabia se sua definição estava correta. O mundo simplesmente parecia não importar mais.
Nada parecia importar mais.
Ela estava satisfeita. A ganância, aquela chama constante que a consumia todo santo dia, que sempre a acompanhava a essência do que acreditava ser, recuava, lentamente, de uma maneira quase imperceptível, mas presente, deixando apenas o eco de um vazio profundo.
Assustada com essa sensação de perda, Ana puxou a mão rapidamente, rompendo o contato. A figura a imitou no mesmo instante, repetindo seus movimentos com uma precisão aterradora. E, conforme a mão do inexplicável ser recuou, ela se tornou novamente inerte, voltando ao estado imóvel e sem expressão. Por algum motivo, mesmo sem fazer qualquer sentido, Ana sentia certa tristeza vinda do corpo semelhante a um manequim.
Gabriel, que observava de longe, sentiu o peso esmagador aumentar a cada segundo. Ele tentou se mover, tentou falar algo, mas era como se uma mão invisível estivesse pressionando seu peito. Seus pés estavam presos ao chão, e ele não entendia por quê.
— Talvez… — ele finalmente murmurou, sua voz fraca e incerta, quase inaudível, como se estivesse falando consigo mesmo. Sem completar o pensamento, Gabriel afundou no solo em um movimento súbito, como se fosse tragado por uma onda de cores distorcidas que o envolvia, desaparecendo por um instante.
De repente reapareceu, novamente despencando do nada pesadamente no chão. Se levantou ofegante e ainda tentando se recompor da experiência.
— Desculpe, ainda estou me acostumando com esse, hmm… novo lugar.
Ana não ligou para a estranha ação, apenas olhou para ele com uma mistura de confusão, interesse e irritação.
— Quando isso apareceu aqui, Gabriel?
— Pouco antes de começar esses implantes nos punhos — ele fez uma pausa, como se tentasse recriar o momento em sua mente. — Não foi algo grande ou esplendoroso. Ouvi o barulho de algo caindo, o que claramente é impossível, já que só eu estou aqui. Pensei que aquele idiota do seu grupo voltou pra me visitar, mas no fim, era essa coisa estranha em meio aos gaveteiros sem uso.
Ana franziu a testa, seu olhar fixo no anjo. Algo sobre aquela resposta não parecia fazer sentido, mas ela não conseguia entender o motivo. Havia uma sensação de desconexão, como se algo maior estivesse fora de seu alcance.
O silêncio se instalou por alguns momentos, até que Gabriel, ainda tenso e inquieto, rompeu o silêncio com uma pergunta inesperada.
— Do lado de fora... quando "nós" nos separamos? Quanto tempo ficamos juntos?
— Você diz no Grande Vazio? Creio que por volta de mil anos juntos.
Gabriel balançou a cabeça lentamente, parecendo mais pensativo do que o habitual.
— Entendo… então tem mais de 500 anos que eu não conheço — disse, a frase carregada de uma estranha melancolia. Ele olhou para Ana com uma expressão séria, como se estivesse tentando preencher uma lacuna imensa com pedaços que simplesmente não se encaixavam. — Você me trouxe muito o que pensar hoje. Preciso de um tempo.
Lentamente, levantou a mão, apontando os dedos para a testa de Ana. Seu sorriso voltou, mas havia algo de sombrio nele.
— Bang.
Ana, em uma mistura de irritação e ironia, se inclinou para trás, fingindo que havia levado um tiro. Seu corpo relaxou de forma exagerada, enquanto tudo escurecia, mas não sem antes praguejar em meio a uma risada seca.
— Filho da puta.
E então, ela despertou bruscamente na carroça, o mundo real voltando com força. Os sons do comboio a fizeram rapidamente notar que era realmente a realidade, mas a sensação do toque em sua palma ainda pairava em sua mente, como se estivesse presa entre dois mundos. Ela esfregou os olhos, tentando afastar o último vestígio dos acontecimentos, deixando-os para pensar mais tarde.
— Dormiu bem, senhora?
A pergunta de Miguel, que notou o movimento, finalmente a fez despertar por completo. Ana passou as mãos pelos cabelos e bateu de leve nas bochechas, antes de se ajeitar na parte da frente da carroça.
— Na verdade, não muito — respondeu ela, com uma leve amargura na voz. Sua língua passava pela sua arcada lentamente, e, como esperado, a quantidade excedente de ossos expostos realmente estavam lá.
— Bem, estamos nos aproximando da cidade. Logo você poderá descansar em uma cama adequada.
Ana acenou levemente, mas sua mente já estava voando longe da conversa. De repente, como se pensasse em algo, virou-se para o secretário mascarado, abrindo um grande e forçado sorriso.
Miguel viu a ação e a encarou por um momento, confuso.
— Você… está bem?
— Olhe isso! Meus dentes não estão diferentes? Bem mais estranhos!
— Parece o mesmo de sempre pra mim…
— O mesmo de sempre? — questionou a mercenária, perplexa. — Eu sempre sorri assim?
— Pelo que me lembro, sim. Na verdade, é um pouco perturbador, mas estão a mesma coisa… você está realmente bem?
Ana o encarou, sem reação.
"Alguma vez já parei para prestar atenção no meu próprio sorriso?", pensou em silêncio, ficando assim até que os muros da cidade começaram a surgir no horizonte.
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