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Comboio

A água fria molhou o rosto de Ingall, que acordou assustado. Os guardas do outro lado da jaula se divertiam. Não era a primeira vez que acordado assim e certamente não seria a última. O gigante se apressou, correu de joelhos até as correntes no fundo da jaula e se algemou. Os homens entraram, rindo e conversando entre si. Passaram correntes estupidamente grossas ao redor dos tornozelos de Ingall. Algemaram os punhos bem próximos um do outro, as algemas tão justas que o machucavam um pouco. Ingall viu as grades da jaula correrem para o lado e recebeu autorização para se arrastar para o lado de fora.

Ao final do corredor, uma porta grande como a de um celeiro se abria, deixando o vento frio da madrugada escura entrar. Ingall saiu do calabouço com um olhar confuso, mas não se atrevia a perguntar o que estava acontecendo. Lá fora, muitos guardas o aguardavam, muito mais do que o normal, dezenas, se não centenas. Seu coração acelerava, nada de bom poderia vir daquilo. Desesperado, Ingall olhava para cada um dos homens, em busca do mestre Lendall, mas ele não estava ali. O capitão Lendall era o responsável por todo deslocamento do gigante. Por que não estava ali naquele momento? Algo terrível tinha acontecido e estavam o levando para um lugar igualmente terrível, talvez o poço. Mas por quê? O que ele tinha feito de errado nos últimos dias? A conversa que tivera com o rei semanas atrás parecia ter sido perfeita.

Alguns homens se reuniam em uma pequena roda, um deles estava com o elmo sob o braço, parecia mais velho que os outros guardas, uma figura que Ingall sabia já ter encontrado num passado distante. O homem falava com força, apontava para uma direção e gesticulava muito. Então se lembrou quem era o homem. General Nefin, o superior do mestre Lendall, um homem duro que odiava a existência do gigante tanto quanto o conselheiro do rei. Se Nefin fosse o responsável por sua vida, Ingall estaria morto em alguns minutos. O gigante tentava ouvi-lo, mas a distância dificultava, tudo que conseguiu ouvir antes de lhe forçarem a andar foi "não deixem que o vejam" e "eles já devem estar partindo".

Se o general se referia ao gigante, os guardas certamente estavam falhando em evitar que alguém o visse. Ingall teve infelizes encontros enquanto o empurravam pela cidade. Muitos se assustavam, saiam correndo ou fechavam portas e janelas rapidamente. Outros tentavam atirar coisas no gigante, e eram brutalmente detidos pela tropa que o escoltava.

Ingall mal pode se conter ao perceber que estava sendo encaminhado para fora da cidade. Um misto de alegria e medo tomou conta de sua mente e corpo. Suas mãos tremiam, fazendo os grilhões tilintarem, suas pernas queriam dar passos maiores, se libertarem e correrem até os portões. No topo das torres que abraçavam os portões, arqueiros invocados apontavam suas flechas para a cabeça do gigante, acompanhavam atentamente sua caminhada. Ao atravessar os portões, Ingall entendeu o que estava acontecendo.

Uma enorme caravana, com carroças cheias de escravos e prisioneiros, soldados e armas, partia lentamente. Logo ao final da fila estava o capitão Lendall, impaciente com a demora de sua tropa. Ele açoitou o cavalo e ordenou que os homens se apressassem para se juntar a caravana. Ingall teve dificuldade para acelerar os passos com suas pernas algemadas, mas os homens com as lanças em suas costas não pareciam se importar com isso e o aceleravam.

O sol já se levantava e radiava o solo. Era verão, mas a primavera tinha sido tão generosa naquele ano que ainda era possível ver os resultados de seu trabalho como se as estações não tivessem mudado. Flores brotavam em cada centímetro que os olhos escuros de Ingall pudessem alcançar. Ele não se lembrava da última vez em que vira a floresta se reerguer do inverno de forma tão majestosa. Cores vivas, o sol quente sobre seu rosto, a brisa refrescante. Não podia acreditar que estava fora da cidade depois de tantos anos. Já tinha entendido que tudo aquilo era parte da missão especial que o rei lhe contara, mas, entre os pequenos prazeres que a visão da natureza lhe traziam, temia que seu destino final pudesse ser muito menos belo. Além do mestre Lendall, outros capitães acompanhavam a caravana. A presença do general era o que mais incomodava o gigante, apesar de Nefin não ter lançado nem mesmo um olhar em sua direção durante o percurso.

Já havia se passado um dia de viagem e Ingall não fazia ideia de quanto tempo ainda faltava. Era difícil conseguir captar alguma coisa, já que os homens falavam pouco entre si sobre o destino. Ao mesmo tempo não pareciam nem um pouco preocupados com a missão e se divertiam assustando os prisioneiros. Os capitães repreendiam aqueles que açoitavam os acorrentados, diziam coisas como "desse jeito eles vão ficar fracos demais até lá". Ingall sabia que sua força era incomparável a de qualquer um daqueles homens, mas temia não estar tão forte quanto esperavam. O capitão Lendall não precisava se preocupar com os outros prisioneiros, sua responsabilidade era exclusivamente o gigante. O cargo de Lendall dependia do sucesso de Ingall, bem como a vida de Ingall dependia do sucesso de Lendall, e o capitão fazia questão de lembrá-lo disso a todo momento.

Após três dias de viagem, com o sol prestes a se pôr, a caravana finalmente chegou a seu destino final. Um pequeno grupo em um acampamento os esperava ao lado de uma enorme floresta com árvores mais altas que o gigante, faias que repousavam aos pés de uma montanha. Os homens logo apontaram para Ingall com curiosidade, mas foram impedidos de se aproximar.

- É aqui que vão trabalhar, vagabundos – gritou um homem rechonchudo para os prisioneiros que chegavam. Apesar da aparência cansada, ele se mantinha sobre um caixote com um ar severo e autoritário, parecia estar sob comando do acampamento.

Ingall e maior parte dos escravos e prisioneiros foram levados para dentro da floresta. As carroças estavam paradas ao redor do acampamento e alguns dos escravos eram obrigados a descarregar as lonas das barracas que, se Ingall ouvira bem, ficariam montadas ali por um bom tempo. Os guardas davam trabalho a todos, uns iam à caça, uns colhiam lenha e outros contornavam a montanha para pegar a água de um rio que diziam não ser muito longe. Ingall podia ouvir o som da água bem distante e estava ansioso para ver um rio novamente, molhar seus lábios com água corrente e não de um balde sujo. Entre as poucas memórias que tinha antes de perder sua mãe, ele se lembrava de viver próximo a uma cachoeira.

Uma pontada em suas costas fez o gigante parar de sonhar e começar a andar. Os guardas que o cercavam com lanças o guiavam para longe da montanha e do acampamento. Ingall estava com medo, embora os humanos nem sempre fossem bons com ele, não queria ficar afastado de todos. Alguns arqueiros mais adiante se juntaram aos lanceiros que o rodeavam. Enquanto era guiado pelo campo, viu com o canto do olho mais homens se juntarem ao grupo. Ouviu um galope atrás de si, se aproximando com velocidade. Então viu cavalo e cavaleiro tomarem a dianteira. Era o mestre Lendall, com a armadura brilhante de sua capa curta que dificilmente usava. O gigante estava aliviado por finalmente poder vê-lo de perto após tantos dias de viagem.

– Como você está? - perguntou o capitão em um tom simpático.

– Muito bem, mestre. Sou grato por poder ver a mata tão de perto.

Eles não pararam de andar. Os guardas que cercavam Ingall pareciam não ter se importado muito com o capitão, embora ainda tivessem que fazer uma breve reverência. Lendall também não parecia se importar com as formalidades naquele momento, ele continuava a fazer o cavalo andar ao lado do gigante.

– Esta é uma grande oportunidade para você, gigante. Aproveite bem enquanto puder. Não pense que ficará aqui observando os pássaros. Terá muito trabalho por aqui e o rei Ruzgar espera que você colabore. Sua força vai acelerar o trabalho. É o que o rei espera de você, bem como eu. Você vai nos decepcionar, Ingall?

Aquela era a primeira vez em muito tempo que o capitão falava seu nome, o que fez Ingall estremecer. Seu nome era uma gozação por si só, sendo associado a um dos guardas, um homem feio que diziam se parecer com o gigante. Os sacerdotes precisavam de um nome para concluir a cerimônia de purificação, um nome humano, um nome de seres civilizados, diziam. O gigante, ainda um filhote traumatizado com a perda de sua família, não tinha direito a escolha, então os soldados sussurraram seu novo nome aos sacerdotes, o que não agradou nem um pouco o guarda Ingall.

– Jamais o decepcionarei, mestre. – Ingall respondeu com pavor nos olhos, causando um pequeno riso em Lendall.

– É isso que eu gosto de ouvir. Agora vamos ao seu aposento.

Ao tirar os olhos do capitão e finalmente voltá-los para frente, o gigante viu um enorme buraco alguns passos adiante. Suas pernas tremeram ao notar que aquele seria o seu aposento. Ingall voltou os olhos para seu mestre, mas o mesmo não parecia se preocupar com seu desespero e fez menção para que os homens à frente de do gigante abrissem espaço para que ele pudesse se aproximar do buraco. Ingall olhou para trás e só então notou as dezenas de homens armados com lanças e arcos que o seguiam. Ele não teve tempo de contar, mas tinha certeza de que se tratava de mais de cinquenta homens.

– Entre – ordenou o capitão.

– O poço não, senhor – Ingall balbuciou. – Tenho me comportado tão bem.

– Não há negociação, besta! – Lendall voltara a falar no tom que sempre usava. – Preciso confiar em você primeiro. E se você não tentar nenhuma gracinha, logo te darei um lugar tão confortável quanto sua jaula. Entre!

Ingall estava paralisado, encarando o buraco com pavor, sua mente assombrada pelas lembranças. O buraco que encarava agora era ainda pior do que o poço do reino. Era pura e simplesmente um buraco fundo na terra. As lanças começaram a cutucar suas costas novamente, cada vez com mais força e possivelmente criando pequenas feridas. Ingall ergueu levemente os braços com as mãos abertas, sinalizando que estava disposto a cooperar. O capitão Lendall ordenou que os homens tirassem as enormes correntes dos tornozelos do gigante. Lanças e flechas apontadas para ele, prontas para matar no menor deslize. Devagar, Ingall se sentou à borda do buraco e constatou que a terra era bastante dura, mas se não tomasse cuidado poderia ceder com seu peso colossal. Arrastou-se com cuidado buraco adentro, tentando diminuir o impacto da queda, mas as lanças em seu pescoço o apressavam.

O gigante caiu no buraco, um pouco de terra o acompanhou e pousou sobre seus cabelos escuros. Não tinha se ferido, porém se equilibrar com as mãos atadas não foi nada fácil. O buraco era escuro e úmido, o espaço apertado o suficiente para que mal pudesse se sentar, fundo o suficiente para que não conseguisse alcançar a borda com os braços esticados. Não parecia ter saída. Ingall precisaria de ajuda para sair dali, o que o fez tremer de medo ao notar que nem a força de todos aqueles humanos seria capaz de tirá-lo de lá. E antes mesmo que ele pudesse questionar se aquele seria seu destino final, o capitão Lendall surgiu na borda e o encarou com um misto de prazer e curiosidade.

– Os rapazes fizeram um bom trabalho mesmo - disse Lendall, seguido de um assobio impressionado. – A besta coube inteirinha aí! Nem imagino quantos metros tenha isso. Mas será o suficiente, não é mesmo, besta?

– Senhor... – Ingall começou, mas não conseguiu continuar. O medo travara sua garganta.

– Descanse bem. Amanhã começaremos os trabalhos.

Sem dizer mais nada, o capitão deu as costas e partiu. Um lanceiro olhou para Ingall com curiosidade e cuspiu em seu rosto, ou ao menos tentou, já que o buraco era fundo o suficiente para que o gigante tivesse tempo de desviar e deixar o cuspe cair sobre seu ombro. Outros lanceiros se juntaram ao redor do buraco, montando guarda, e ali ficaram até o anoitecer.