webnovel

Tragédia

Andressa subiu correndo a rua, atrás de sua mãe. Estava descalça e seu olhos derramavam lágrimas de dor, enquanto sua mãe corria em sua frente com lamentos dolorosos que saiam de seus lábios enquanto gritava pela rua;

_ Meu filho! Meu filho não, Senhor! - E repetia sem parar essas palavras.

Andressa estava lavando a calçada junto com sua mãe, quando vieram avisar, que seu filho fora alvo de um tiroteio que acontecia entre as duas facções que comandavam aquele bairro. Ele era divido por uma linha de trem, e todos sabiam que aquele que atravessasse aquela barreira, seria morto. O lado de lá do bairro, viera cobrar uma dívida daquele lado. Alguém chamou a atenção da facção para a presença deles e o fogo cruzado começou. E Thiago, irmão de Andressa, estava no local. Nenhuma das facções o reconheceu, pois ele trabalhava de segurança a noite em outro bairro, e de dia ele dormia e estudava para passar na faculdade, pois sempre dizia que assim, tiraria elas daquele lugar.

Andressa enquanto corria morro acima, tinha a esperança em seu coração que fosse um engano. Seu irmão estaria bem. Ele não saia durante o dia. Devia estar em casa no seu quarto. Elas não pararam para olhar. Simplesmente subiram o morro correndo.

Andressa nem se deu conta do cansaço quando alcançou o alto do morro. Ela parou e ficou olhando em estado de choque, sua mãe segurando um corpo em seus braços, ajoelhada na rua. Ela estava coberta de sangue e gritava desconsolada.

Andressa conseguiu se aproximar e olhar para o corpo nos braços da mãe. Era mesmo Thiago. Ela olhou para os lados. Algo tinha que ser feito. Precisavam leva-lo para o hospital. Ela sentiu seu coração oprimindo lhe o peito. Se aproximou de um rapaz com um rifle nas mãos. Ele a reconheceu como moradora. Ela dava aulas particulares para seu irmão mais novo.

_ Está se sentindo bem Andressa?

_ Leco... Por favor, leve meu irmão para o hospital. Não podemos deixa-lo sem socorro. Ele está sofrendo...

Leco olhou espantado para a jovem.

_ Andressa, não há mais nada a ser feito. Ele está morto.

Andressa simplesmente sentiu seus olhos escurecerem e depois não viu mais nada.

Andressa acordou em um quarto que não conhecia. A janela estava fechada, mas as lindas cortinas deixavam ver que já era noite. Ela sentou-se na cama e observou cada detalhe daquele lugar. Havia um guarda-roupas em um canto. Ela nunca havia visto móveis daquela forma. Suas portas pareciam estar pregadas a parede. Tinha uma cômoda em frente a cama com um espelho quadrado enorme pregado como se fosse um quadro. O ambiente estava totalmente fresco. Ela olhou para cima e viu a um canto, um aparelho com alguns buraquinhos e imaginou que devia ser ar condicionado. Era muito limpo o local. Ela se levantou e não resistindo a curiosidade abriu o guarda-roupas. Não havia nada dentro. Mas ele era bem grande. Gostaria de ter um daqueles em sua casa. De repente lembrou-se de seu irmão. Será que fora um pesadelo? Ela olhou para a cama em que esteve deitada e viu com muita vergonha que seus pés haviam sujado a colcha branca. Ela abriu a porta e se viu em um imenso corredor. Não fazia ideia de onde estava, mas precisava descobrir logo. Sua mãe precisava dela. Então caminhou até encontrar uma escada. Ela foi descendo e começou a ouvir vozes. Uma dessas vozes era a de sua mãe. Ela terminou de descer e foi olhando cômodo por cômodo, até encontrar a mãe sentada em um confortável sofá, rodeada de homens armados, com uma xicara nas mãos, falando algo sobre Thiago. Ela entrou devagar na sala. Ela conhecia todos aqueles rostos. Eles fizeram silencio quando ela entrou. Sua mãe também se calou e assim que a viu foi abraça-la.

_ Me perdoe minha filha!

_ Calma mãe. Você não tem culpa. Já não posso dizer o mesmo das outras pessoas dessa sala. – Sua voz soou roca. Mas eles ouviram o que ela disse.

_ Oh minha filha! Eu não tive outra saída! – Sua mãe, dona Glória dizia agoniada. – Nós não temos mais nada. Perdemos tudo! Eu lamento tanto.

Andressa afastou a mãe de si e a encarou nos olhos.

_ Mãe... Precisamos ir e resolver sobre o enterro de Thiago. Não devemos nos preocupar com mais nada além disso, nesse momento.

_ Filha...

_ Dona Glória. – Um dos rapazes conhecido por Chapado se aproximou sério. – Faça o que Andressa está pedindo. Ela está certa. Depois vocês conversam sobre outros assuntos.

_ Mas... – Dona Glória iria argumentar mas Chapado, que era conhecido por ser homem de confiança do chefão , a interrompeu.

_ Depois dona Glória. – Ele disse firme e olhou para Leco. – Leve elas em casa.

_ Vamos. – Ele disse chamando as duas.

Andressa e sua mãe saíram atrás dele e ele as fez entrar em um dos carros do chefão. Só então Andressa percebeu que aquela mansão, era do chefão daquele bairro. Era sabido que ele comandava outras áreas do Rio de Janeiro, mas gostava de morar ali. O jardim era lindo, planejado por arquitetos, e em sua garagem havia três carros, além daquele que estavam entrando e uma moto enorme. Andressa se imaginou nela. Com o vento fresco lhe batendo no rosto. Chegou a sentir essa sensação. Já dentro do carro, começou a estranhar aquela atitude dos membros da facção. Ela morava há duas quadras dali. Mas ficou calada e não recusou a carona, pois estava exausta emocionalmente e sua mãe também. Aproveitou o conforto do carro enquanto estavam indo para sua casa. Quando chegaram, elas saltaram e Leco disse para dona Glória:

_ Conte a Andressa sobre o irmão dela... Outros assuntos devem ser discutidos em momento mais propicio. Ambas estão abaladas agora. – Ele disse e foi embora.

As duas entraram em casa.

A simplicidade da casa não incomodava Andressa, mas naquele dia aquela casa a fez perceber o quanto ela não era ninguém. Sua mãe não era ninguém. Seu irmão não era ninguém. E ninguém se importava com a dor delas. Não de verdade. Enquanto pessoas andavam em carros de luxo e viviam em mansões protegidos de todo mal lá de fora, elas estavam ali. Vivendo miseravelmente. Se locomovendo de ônibus e tendo que ficar as vezes sem jantar porque o dinheiro era o suficiente para apenas pagar as contas e nada mais. Sua família trabalhava demais e no final do mês eram obrigados a colocar o jantar como algo de mínima necessidade. Andressa dava aulas particulares para algumas crianças, mas não podia cobrar caro, pois seus pais também não tinham boa condição e alguns só colocaram seus filhos com ela, para ajudar sua família. Sua mãe lavava roupas para fora. Outra vez por benignidade da vizinhança, pois todos tinham máquinas de lavar de roupas. Só Thiago ganhava um salário mínimo, mas um pouco mais da metade, ele gastava com os estudos. O que sobrava era pouco para viverem com dignidade.

Andreza olhou para dona Glória e ela estava sentada na poltrona rasgada da sala com olhar parado. Andreza achou que ela estava entrando em estado de choque e se aproximou e balançou seu ombro a chamando.

_ Mãe!

Ela pareceu sair do estado de torpor e fitou a filha. Seus olhos começaram a derramar lágrimas.

_ Filha... O que Thiago foi fazer fora de casa? Ele não saia durante o dia! Justo no dia que ele sai... Ele nunca mais retorna. Nunca mais retornará. – Ela disse com a voz embargada.

_ Ele lhe disse que ia sair? Não vi quando ele saiu. – Andressa perguntou se sentando no braço da poltrona em que sua mãe estava.

_ Não me disse nada. Ele estava estudando quando sai para ajudar a limpar a calçada.

_ Agora não quero pensar nisso. Onde ele está? Alguém o levou para o necrotério?

_ Sim. Micão o levou.

_ Precisamos decidir o que vamos vender para pagar o enterro de Thiago. Quero que tenha um velório decente também. Ele foi um homem honrado em vida, e vai partir com honras também. Ele tomou a morte de alguém. Alguém que se envolve com a facção. – Andressa disse olhando para os móveis da sala. Elas pegaram antes do caminhão coletor. Ninguém iria querer comprar aquelas coisas que foram jogadas no lixo. Começou a fazer um inventário em sua cabeça, e as únicas coisas que poderiam ser vendidas, eram o computador de Thiago e suas roupas. Pois ele sempre fez questão de roupas de marcas famosas, e estavam quase intactas, pois como trabalhava a noite, usava o uniforme, e durante o dia, passava a maior parte do tempo de pijama. Ela esperava que fosse o suficiente.

Andressa se levantou e foi até o quarto de Thiago. Pegou uma bolsa de viagem e começou a dobrar cuidadosamente as roupas dele lá dentro. Depois olhou mais atenta para o computador e viu um celular em cima dele. Ela o pegou e começou a mexer nele. Olhando os contatos, percebeu que não conhecia ninguém. Não eram pessoas daquele bairro. Ela respirou fundo e o colocou na parte da frente da bolsa. Encontrou no guarda roupas alguns perfumes que também davam para ser vendidos e os jogou dentro da bolsa. Assim que terminou de colocar todas as roupas, tomando o cuidado de deixar um par para vesti-lo, fechou a mala e saiu com ela. Sua mãe não disse nada. Andressa não esperava que ela dissesse algo mesmo. Estava abalada demais.

Andou bastante e subiu por uma rua estreita que não cabia nem duas pessoas juntas e resfolegando, chegou a porta que queria. Ela bateu e esperou tranquilamente. Logo André, seu aluno, veio atender a porta e sorriu quando a viu.

_ Mãe! A tia tá aqui! – Ele gritou e uma criança começou a chorar lá dentro e Laura, que devia ter a idade de Andressa, uns dezesseis anos, veio correndo e deu um safanão na cabeça de André.

_ Você acordou seu irmão, burro! – Ela disse zangada e o menino correu para dentro como se nada tivesse acontecido. Então Andrea veio até a porta. – Oi Andressa! Precisa de alguma coisa?

_ Sim. Preciso vender essas coisas agora. Meu irmão foi baleado e preciso pagar o enterro dele. – Andressa foi direto ao assunto.

_ Eu... Já volto. – Andrea disse com olhos surpresos e entrou para dentro da minúscula casa deixando Andressa esperando na porta.

Logo ela voltou com o bebê nos braços e ao lado de Leco.

_ Andressa... O que está fazendo aqui?

_ Preciso vender essas coisas. São roupas de boa qualidade e semi novas. Tem também três perfumes intactos e um celular. E lá em casa ainda tem um computador...

_ Andressa... Volta para casa e amanhã falamos sobre isso. Você está de cabeça quente...

_ Você vai me ajudar agora! – Ela disse nervosa. – O dinheiro que eu conseguir vai ser para o enterro de Thiago e a culpa é de vocês! Então tratem de cooperar comigo... – A voz dela falhou na última frase.

_ Sua mãe não conversou com você?

_ Ela está em estado de choque.

Leco respirou fundo fechando os olhos e depois se voltou para Andréa.

_ Vou dar uma saída. Fique em casa. – Ele disse e fechou a porta depois que estava do lado de Andressa.

_ Eu posso ser morto por isso! – Ele disse zangado, olhando para Andressa e tomando a bolsa de suas mãos. – Venha comigo. – Ele disse e começou a subir ainda mais a estrada estreita, até chegar no topo e alcançar algumas casas um pouco maiores que a sua. Ele abriu a porta de uma delas e mandou que Andressa entrasse.

Ela entrou sem medo. Lá havia alguns membros da facção, bebendo, fumando e jogando baralho. Estavam sentados em volta de uma mesa e havia alguns em pé também. Olharam curiosos para a recém chegada e para Leco com indignação.

_ O que faz aqui com ela Leco? Quer morrer? Um deles perguntou passando por Andressa a fitando irado e soltando fumaça na cara de Leco que permaneceu impassível.

_ Ela quer que vender as coisas do irmão dela para pagar o enterro.- Leco disse sem rodeios.

_ Vai embora moça. O enterro de seu irmão já foi pago. E vai ter velório e tudo. – o que jogou a baforada no rosto de Leco disse se aproximando dela.

_ Vocês já fizeram demais matando meu irmão. Não quero dever favores a vocês. Essas roupas são boas e também tem um computador em casa.

_ Olha aqui moça... – O rapaz que estava diante dela ia dizendo, quando Chapado o interrompeu lá da mesa, jogando as cartas de lado.

_ Comprem! – Ele ordenou.

Leco foi até a mesa e despejou o conteúdo da mala em cima da mesa. O celular e os perfumes também caíram. Chapado olhou para as roupas e pegou o celular o observando.

_ Quanto a moça quer por tudo? – Chapado perguntou sério.

_ Bem... Tem um computador também. Vocês podem busca-lo lá em casa. E contando com ele, eu quero cinco mil reais.

_ Vocês ouviram. Dividam as roupas, os perfumes e o celular entre vocês e levantem dois mil e quinhentos reais. Eu ficarei com o computador pelo restante. – Ele disse e retirou a carteira do bolso e tirou de lá as notas de cem e as entregou para Leco que passou para Andressa.

Os outros rapazes fizeram a conta de quanto cada um teria que dar e entregaram para ela. Quando já ia saindo na companhia de Leco, Chapado os chamou.

_ Leve a bolsa moça. Não queremos ficar com ela.

Andressa achou estranho, mais foi até a mesa e recolheu a bolsa. Chegou em casa aliviada por ter resolvido o problema mais urgente e sua mãe não estava mais na poltrona. Andressa foi até o quarto que elas dividiam e quando viu que ela estava dormindo, não quis perturba-la e muito silenciosamente, guardou o dinheiro no bolso de um casaco no guarda roupas e aproveitou para pegar seu pijama e saiu do quarto. Tomou um banho rápido e foi dormir. Mas só conseguiu, quando o dia já estava raiando.

Andressa se levantou e percebeu que sua mãe não estava mais no quarto e que pela posição do sol, já devia ser tarde. Sentiu-se culpada. Tinha que dar apoio a sua mãe. Aquele dia seria um dia difícil em suas vidas. Era a despedida eterna de seu irmão. Depois nunca mais veriam seu rosto a não ser por fotos e lembranças pessoais.

Ela se trocou rapidamente e foi até a cozinha. Sua mãe também não estava ali, mas havia café fresco. Andressa tomou um xicara e depois foi a procura de sua mãe.

Dona Glória estava na frente da casa, onde uma multidão se juntou para lhe dar os pêsames. Pelo menos, foi o que Andressa pensou.

Andressa se aproximou da mãe e passou seu braço em volta de seus ombros. Para sua surpresa a mãe a fitou com olhar assustado, antes de se voltar as vizinhas. Andressa então entendeu que havia algo de muito errado ali.

_ O que está acontecendo mãe? – Andressa perguntou inocente.

_ Sinto muito Andressa, mas tem três meses que vocês não me pagam o aluguel e Eu já tinha avisado a sua mãe. Agora que Thiago morreu, não vejo como poderiam me pagar o atrasado e nem como continuariam a pagar o aluguel. – Dona Clarisse disse indelicada.

_ Você está cobrando a minha mãe, justo no dia da despedida do meu irmão? Você não tem coração? Um dia a mais não iria lhe fazer falta e não precisava chamar toda essa plateia para nos humilhar ainda mais! – Andressa disse zangada.

Dona Clarisse sorriu irônica.

_ Você acha que eu chamei essas pessoas? Não, minha querida. Elas estão aqui por outras dívidas. Soube que você vendeu as coisas de seu irmão e vim buscar minha parte. E elas vieram em busca do mesmo.

_ Como assim? Eu vendi as coisas de meu irmão e o dinheiro é a conta de enterra-lo. E o que mais devemos a essas pessoas?

Uma pessoa da multidão se aproximou.

_ Ele me deve dinheiro. Não vou ficar no prejuízo! – Um homem barbudo disse se aproximando com uma nota fiscal.

Andressa olhou para a nota e reconheceu a assinatura de seu irmão. A nota estava no valor de oitocentos reais. Ela ficou sem fala por instante.

_ Para que ele pegou dinheiro com você? Ele trabalhava...

_ Acha mesmo que ele trabalhava? Que estudava? – O homem disse com piedade nos olhos.

_ Claro que sim. Ele trabalhava toda noite e durante o dia ficava em casa estudando...

_ Moça... Tem muitas coisas que você não desconhece e eu lamento de verdade.

Andressa olhou para as outras pessoas.

_ Então vocês também vieram cobrar dividas de meu irmão? – Andressa disse tentando ignorar a calunia explicita nas palavras do barbudo.

As pessoas foram se aproximando uma a uma e todas tinham notas com a assinatura de Thiago. Quando todas mostraram as dividas, Andressa contou vinte e três mil reais em dividas. Ela não imaginava onde poderia arrumar aquele dinheiro, a não ser que ela mesma começasse a traficar. Seus olhos se encheram de lágrimas e ela puxou sua mãe para entrar, mas dona Clarisse foi firme em suas palavras.

_ Vocês só entram nessa casa agora para retirar seus pertences! E eu exijo meu pagamento imediatamente!

De todas as pessoas, dona Clarisse é a que demonstrava menos compaixão. As outras mostraram suas notas, mas não a pressionaram.

_ Sim. Vamos tirar. – Andressa disse, pensando em anotar o nome de cada pessoa a quem seu irmão devia, ir embora da favela e trabalhar em algum lugar longe dali. E iria pagando aos poucos as pessoas. No entanto, dona Clarisse, ela teria que pagar naquele momento.

Foi até o guarda roupas e tirou o dinheiro que havia guardado e contou novecentos reais para dona Clarisse, achando estranho aquele atraso todo, já que todos os meses, o dinheiro de Thiago era usado para pagar o aluguel. Sabia que nem os cinco mil completos seriam o suficiente para pagar o enterro do irmão. Por um momento, se sentiu tão desmotivada que pensou em deixar que fosse enterrado como indigente. Mas foi só por um momento. Ela não permitiria tal insulto a memória de seu irmão. Pensaria em um jeito. Agora, pagaria dona Clarisse, juntaria suas roupas e as da mãe, e se abrigaria na casa de sua madrinha. Conversaria com todos e daria sua palavra que pagaria a todos. Ela respirou fundo como que para ganhar coragem e encontrou sua mãe com olhos vagos sentada na velha poltrona. Passou por ela e foi até a rua. Entregou o dinheiro a dona Clarisse que pegou, contou e cruzou os braços.