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Queda

A neve cai gentilmente sobre o meu rosto e já estou afundado nela. A árvore ao meu lado não tem mais folhas suficientes para impedir que a neve se acumule sobre mim. O frio me congela os ossos, mas não há nada que eu possa fazer a não ser ficar deitado aqui esperando pela morte. Divina, minha égua, está caída sobre minha perna esquerda dormente há mais de uma hora. Ela também espera por sua morte, rezo para que ela não saiba disso. Eu poderia poupá-la do sofrimento se não tivessem tomado minha faca. Talvez não adiantasse muito ter uma faca, já que meu ombro esquerdo está deslocado. Divina é um animal grande demais para que eu consiga move-la. Se eu não tivesse olhado para trás, talvez eu não tivesse nos jogado para o barranco, talvez ela não quebrasse a pata e eu poderia acariciar a crina de minha única amiga após receber a benção do rei.

Numa disputa estúpida por terras, lorde Slayton tinha sequestrado a sobrinha do rei Cromwell, Frances, uma jovem de 15 anos que estava tão envolvida na disputa quanto um esquilo. Lorde Slayton sabia o tamanho do amor que o rei nutre por sua sobrinha, e achou que poderia negociar as terras em troca da segurança da pobre coitada. O lorde não contava com a astúcia dos homens do rei. Fomos alertados e encontramos o comboio antes que pudessem voltar para casa. Ao ser convocado para o resgate, recebi a chance de conquistar minha glória, mas deixei tudo escapar.

O informante tinha errado as contas e estávamos em desvantagem. Sorri quando Sir Roger disse que não estava disposto a dar para trás e nos dividiu em dois grupos para montar uma emboscada. Eu não teria sorrido se soubesse meu futuro infortúnio. Surpreendemos o comboio e os atacamos pela frente e pela lateral, encurralando os malditos contra a parede de pedras. Enquanto os batedores se ocupavam com os homens de Slayton, eu e mais meia dúzia vínhamos atrás procurando por Frances. A emboscada nos deu uma bela vantagem, mas a desvantagem numérica começava a ficar evidente. Corpos cobriam o chão, cheiro de sangue e suor, o calor da guerra se sobrepondo ao frio dos ventos de inverno. Enquanto eu cortava o peito de um tonto, vi Frances saltando de uma carruagem, ainda usando sua roupa de dormir e coberta apenas por um casaco de pele, assustada com os gritos. A garota esperta tinha dado um jeito de se esquivar dos olhos inimigos. Era minha chance, aticei Divina enquanto recolhia minha espada e estendi o braço para agarrar Frances, que se aliviou ao ver o brasão do rei Cromwell em meu peito.

Divina nunca foi uma das éguas mais rápidas, contrastando com sua mãe, Preciosa, que Deus a tenha. Eu sabia que logo estariam atrás de nós, apesar da vantagem, os cavalos deles certamente eram mais velozes que Divina. Ao invés de seguir para o acampamento, desviei do caminho, galopando entre as árvores e com sorte fazendo as pegadas se confundirem entre as raízes. Idiota, só perdi tempo. Devia ter me afastado mais. Eu achava que tinha os despistado, mas sobre a neve branca éramos um pingo de tinta sobre o papel. Um assovio alto me fez olhar para trás. Frances se agarrou com força a minha cintura e aticei Divina em direção a uma estrada que não conhecia, mas certamente me deixaria ainda mais distante do acampamento, sem esperança de reforços.

Como eu imaginava, não importava o quão rápido Divina corresse, os cavalos inimigos eram mais rápidos. Olhei para trás e vi quatro homens montados. Frances chutou Divina com os calcanhares e, por um momento, tive vontade de jogá-la de volta para aqueles malditos. Ordenei que ela parasse com aquilo, Divina estava ficando irritada e relinchava. Olhei para trás novamente e vi que na verdade eram cinco homens, dois dividindo o mesmo cavalo, sendo o de trás um arqueiro. Frances gritou algo que não entendi, sua voz estava carregada de desespero. Olhei para trás pela última vez, esperando que um milagre nos tivesse afastado dos desgraçados, mas ao tirar os olhos do caminho, devo ter guiado Divina contra uma pedra.

Ao invés fazermos a curva à direita, Divina relinchou e seguiu em frente aos tropeços, levando-nos ao barranco. Tudo rodou e eu não entendi o que tinha acontecido. Quando voltei a mim, estava aqui, caído ao lado da árvore, afundado na neve espessa, sem meu elmo e vendo tudo rodando. Divina respirava profundamente, caída sobre minha perna esquerda. Demorei a encontrar Frances, que estava mais acima, desacordada ao lado de uma rocha.

Risadas orgulhosas me mantinham atento enquanto eu tentava continuar acordado. Eu tentei me levantar para ter uma visão melhor de Frances, mas meu ombro gritou e me manteve no chão. Vi os homens sorridentes se aproximarem dela. "Está viva", disse um deles, colocando-a sobre o ombro. Fui avistado e dois homens se aproximaram de mim. Eu ainda estava confuso e não entendia bem o que eles diziam, na verdade, não me importava, certamente estavam caçoando de minha condição deplorável e meu fracasso. Achei que fossem acabar comigo, pedi a Deus que me deixasse ir aos seus braços sem sentir mais dor, mas acho que mesmo Ele me despreza. Tiraram minha espada e a pequena faca que eu carregava na cintura. Os homens partiram aos risos, deixando-me à espera da morte.

Agora, jogado na neve, evito chorar para que minhas lágrimas não congelem sobre o rosto. Eu tinha tudo em mãos e deixei escapar. Toda a culpa cai sobre minhas costas, a desesperança de Frances, o sofrimento de Divina e a decepção da minha família. Meu pai, que sempre sonhou em me ver honrando o nome da família deve estar me olhando com desgosto lá de cima. "Thomas", ele me dizia, "você vai sair do campo, vai tirar eu e sua mãe daqui. Este nunca foi meu lugar, minha vida não é aqui. Você sabe disso". Papai sonhava em fazer parte da guarda real, o dinheiro e a honra compensariam tudo, ele acreditava. Não sei se concordo tanto com isso agora, meus colegas não parecem se importar com minha falta, acho difícil sair daqui vivo. Quando jovem, meu pai se envolveu em uma confusão que nunca consegui entender, mas envolvia dívidas e acabaram estourando seu joelho. Tornou-se inútil para qualquer uso militar, mancava muito e precisava estar sempre com sua bengala. Ele se martirizava por ter falhado tanto, jogava a responsabilidade do bem da família em cima de seu único filho.

Eu tinha apenas sete anos quando meu pai começou a se desesperar. Minha mãe era quem o colocava de volta nos eixos e erguia sua cabeça. Apesar de trabalharmos arduamente, o solo, por mais fértil que fosse, não trabalhava no ritmo dos homens. Estávamos devendo uma enorme quantia em impostos, os cobradores do reino nos ameaçavam o tempo todo, às vezes passavam por ali apenas para nos observar. Mamãe foi escravizada para tentar pagar as dívidas, mas não foi suficiente. No dia em que completei oito anos, invadiram nossa casa e tomaram tudo o que tínhamos. Móveis, jarras, sementes, colheram o que restava da plantação e fizeram eu e meu pai assistir tudo em silêncio, esbofeteando papai quando ele tentou argumentar e ameaçaram me bater com um pedaço de pau caso ele não se aquietasse. Após tirarem todos nossos pertences, tiraram também nossa liberdade e nos jogaram numa carroça. Minha primeira visita ao reino não foi nem um pouco calorosa, já que lá voltei a ver minha mãe apenas para ver meus pais serem levados para longe de mim. Sob choro e protestos, fui levado a um orfanato. Dias depois, recebi a notícia de que meus pais tinham sofrido um grave acidente. Eu sabia muito bem que não tinha acontecido acidente nenhum, mas foi só quando comecei a trabalhar para a cavalaria que entendi que eles não tinham sido simplesmente assassinados, e sim usados como exemplos, expostos e mutilados em praça pública.

Minha ingressão a cavalaria foi sutil. Eu ainda era um ajudante de carpinteiro quando entrei num estábulo pela primeira vez. Um terrível cheiro de urina, fezes e sabe lá Deus o que mais infestava o ar, alguém não vinha tomando conta dos animais direito. Trabalhávamos num telhado quando o carpinteiro sumiu de repente, sem dar satisfação. Eu tinha apenas 13 anos, não fazia ideia do que fazer, muito menos dar continuidade ao trabalho, então me voltei ao estábulo e fiquei por lá, acariciando e alimentando os cavalos. Não me lembro bem como aconteceu, mas de repente lá estava eu cuidando dos animais propriamente e recebendo por isso. Pouco me importava o dinheiro, eu só queria ter a chance de estar perto daquelas lindas criaturas.

As crianças do orfanato não eram as mais simpáticas e estavam sempre chegando e saindo. O mais próximo que tive de uma família foram os cavaleiros que, apesar de não serem muito próximos de mim e não puxarem muita conversa, apreciavam meu trabalho e bagunçavam meu cabelo quando me viam. Logo comecei a cavalgar pelo pátio e receber mais elogios. Aquilo me alimentava, eu fazia parte de algo, era apreciado e passei o resto da vida procurando por isso. Fui treinado para usar a espada e recebi mais "parabéns" e "boa, garoto". Quando completei 15 anos me deram um uniforme e me mandaram para o campo acompanhado de outros homens para recolher impostos.

Eu queria me matar toda vez que batia a porta de um camponês, lembrando-me dos horrores da infância. Sir Roger já não aguentava mais me ouvir implorando para me mudar de função, exaltando todos meus acertos. Apesar de ser resistente, Sir Roger sabia do meu valor e reconhecia que era um desperdício me colocar como um mero coletor de impostos. Passei a fazer patrulhas e me destaquei novamente ao alertar e batalhar contra um ataque que mais tarde descobrimos ser montado por lorde Slayton. Após colocarmos os malditos para correr, vivi um dos dias mais felizes de minha vida, quando fui nomeado oficialmente como um cavaleiro pelo Sir Roger.

Achei que aquela fosse a honra máxima que eu devia prestar ao nome de minha família, mas logo notei que era preciso de mais. Apesar do título, novo salário, nova função e novas roupas e armaduras, eu continuava sozinho e praticamente esquecido pelos outros. Tinha o respeito de todos, mas parecia que ainda não era alguém que quisessem ter por perto.

As terras dos meus pais eram afastadas das demais, não por que queriam, era o que podiam conquistar com as próprias mãos. Eu não tive muito contato com outras pessoas antes de ser jogado no orfanato, muito menos com crianças, já que sou filho único. A falta de contato e o luto pelos meus pais dificultaram minha vontade em desenvolver habilidades sociais. Minha mãe sempre falava sobre como a minha chegada transformou a vida deles e como ela sonhava que um dia eu também pudesse ter a minha própria família.

As mulheres nunca tiveram olhos para mim. E por que teriam? Quieto e feio, não há nada em mim que alguém possa achar atraente e interessante o suficiente para se construir uma família. "São esses seus olhinhos", uma mulher bêbada me disse após me beijar, "essa cara invocada. Ela assusta, mas eu gosto", beijou-me novamente. Ela tinha razão, constantemente me perguntam se estou bem só por estar parado em um canto com um olhar sombrio. Não faço de propósito, meu pai tinha o mesmo olhar. Minha cara feia também deve ajudar a passar essa má impressão, o que nem sempre foi um problema, já que ouvi de muitos homens que não queriam se meter em confusão comigo por achar que eu estava sempre prestes a socar quem se metesse comigo.

Não sei se terei mais chances de realizar o sonho que mamãe tinha para mim. Se eu tivesse conseguido voltar para o acampamento com a garota, certamente teria chamado atenção de alguma mulher que eu amasse, e não só a mão de uma jovem que um pai tenta me vender. No entanto, pode ser que absolutamente nada mudasse, eu seria amado pelo povo por alguns dias e esquecido logo depois, como sempre. Não importava o que eu fizesse, sempre acabava sendo deixado de lado por ser tão fechado em mim mesmo. Nunca andei ao lado de alguém que não estivesse trabalhando comigo, tão pouco conversando algo que não estivesse relacionado a cavalaria. Deve ser por isso que nunca me tornei o herói que meu pai queria que eu fosse. Isso fica bem claro agora que a neve já parou de cair há tempos, mas continuo sem sinal de resgate.

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