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Erga-se

Talvez eu morra congelado ao anoitecer, o sol fraco do inverno já está caminhando para o oeste, não deve demorar muito para se esconder. A lã por debaixo da cota de malha e o tabardo não são suficientes para me manter aquecido até a noite. E pensar que há algumas horas eu estava fervendo enquanto atacava aqueles desgraçados. O frio não ajuda a diminuir minha dor, tão pouco da pobre Divina, que ainda respira com dificuldade. Com minha perna e braço direito livre, tento pegar impulso para trás e livrar minha perna mais uma vez. Sou acometido por uma dor terrível, mesmo com a perna dormente, e tudo o que consigo é escorregar e bater meu cotovelo na árvore. O ombro deslocado é inútil para prevenir que eu bata as costas na terra dura. Eu tento colocá-lo de volta no lugar, mas só consigo sentir mais dor, já que a cota de malha dificulta.

Ofegante ao me dar por vencido, eu deito sobre a cama de neve e só então reparo no sangue que escorre debaixo de Divina. Não sei dizer se o sangue é meu ou dela, mas espero muito que seja meu. A última coisa que quero é saber que fui responsável por sua morte por causa de uma maldita olhada para trás. Tiro a luva da mão boa e acaricio seu pelo marrom mais uma vez, então noto que também há sangue sob sua cabeça, se misturando a neve lamacenta. Pobre garota. Deve ter batido a cabeça na queda.

Assim como no orfanato, eu não fiz muitos amigos na cavalaria, praticamente nenhum. Nunca tive alguém com quem contar, exceto Divina. Quando a vi pela primeira vez ela tinha apenas dois anos e ainda não era tão grande quanto hoje. Fiquei fascinado pelos seus olhos, um azul e outro castanho. Apesar do fascínio, a princípio, a égua me dava medo. Nunca tinha visto algo assim e achava que poderia ser algum tipo de maldição. Só alguns anos mais tarde fui encontrar outro animal com olhos de cores diferentes, um gato que se arrastava pelos dormitórios.

Mesmo quando jovem, Divina não era muito gentil com os outros homens, principalmente com aqueles que batiam em seu focinho para puni-la. Eu não aguentava vê-la apanhando toda vez que desobedecia alguém – o que acontecia com frequência – e por isso procurei deixar o medo de lado e me aproximar dela. Durante os oito anos que passamos juntos, Divina nunca demonstrou ter problemas comigo, pelo contrário, eu era o único com quem ela se afeiçoava. Andava sempre junto a mim sem precisar puxá-la, encostava a cabeça em meu braço ou minhas costas para que acariciasse seu pescoço e me lançava um olhar triste toda vez que a deixava no estábulo e ia me deitar. Não é de se surpreender que quando chegou a idade certa para ser montada, nenhum homem conseguia ficar sobre suas costas por muito tempo, exceto o garoto que cuidava dos animais.

Era nítido que o nome da égua não concordava com o afeto que os homens tinham por ela, que teriam a vendido se eu não estivesse lá para impedir e suplicar por sua permanência. O nome era derivado de sua mãe, Preciosa, uma égua dócil e mansa, tão mansa que acharam que seria mais fácil se eu aprendesse a cavalgar nela, e foi o que fiz. Preciosa era muito querida pelos cavaleiros, não só pela sua doçura, mas principalmente por ser rápida e ágil como nenhum outro cavalo. Preciosa parecia se conectar com quem quer que estivesse a montando e precisava de muito pouco para atender aos desejos do cavaleiro. Ela era o sonho de qualquer cavaleiro, um perfeito oposto de sua filha.

Houve grande comoção na manhã em que Preciosa foi encontrada morta no estábulo. A pobre coitada vinha sofrendo de uma doença terrível que a forçava a se deitar com frequência. Me surpreendi ao ver que Divina estava tão abatida quanto os homens, até mais na verdade. Eu via em seus olhos a tristeza, o luto pela sua mãe, olhos tão pesados e sombrios quanto os meus no dia em que fui informado que jamais veria minha família novamente. Curiosamente, Divina e eu tínhamos a mesma idade quando perdemos nossa família. Ela estava solitária, carregava a responsabilidade de se tornar tão excepcional quanto seus genitores. Ela não precisava encostar a cabeça em mim para que eu a abraçasse e alisasse o pelo de seu pescoço, eu sabia que ela precisava de um abraço tanto quanto eu. Não importava o que dissessem ou pensassem sobre nós, estávamos sempre bem quando tínhamos um ao outro. Pela primeira vez, desde que fora arrancado de meus pais, senti novamente o que era ter uma família. Ajeitei o feno e dormi ao lado da égua como se fosse um irmão mais velho a confortá-la naquela noite difícil.

Divina respira devagar. Sua pele ainda está quente, apesar do frio castigar. Eu rezo para que Deus não a tire de mim, não quero carregar essa culpa comigo. Não, egoísta demais. Sei que não importa o que eu faça, Divina jamais poderá andar novamente, então rezo para que ela não sinta dor em sua partida. Tento abraçá-la, mas o ombro não me deixa virar. Divina dá um coice no nada, ar quente sai pelas narinas, outro coice e desta vez faz o corpo todo se mexer, esmigalhando minha perna e confirmando que está quebrada. Eu grito e Divina relincha baixinho enquanto dá outro coice. Os espasmos dela me deixam apavorados, não só pela dor que sinto, mas principalmente por vê-la sofrer daquela forma. Então, subitamente, aquieta-se. Com os olhos umedecidos, espero ansiosamente pelo movimento de seus pulmões ou mais nuvens de ar quente saindo das narinas, mas nada acontece. Seu olho está vidrado no nada. Meu coração pesa, o ar parece ser pouco para mim, então as lágrimas desabam dos meus olhos.

Acordo com as lágrimas congeladas sobre meu rosto. Não me lembro de ter dormido, só de um mal estar terrível até tudo ficar preto. Divina continua imóvel enquanto tento recuperar meus sentidos. Ouço conversas, olho barranco acima e enxergo uma carroça e duas silhuetas humanas. A claridade é muito baixa para que eu consiga enxergar direito. Não sei dizer quem são, mas tenho quase certeza de que são os homens de lorde Slayton vindo terminar o trabalho. Fecho os olhos e rezo para que não me torturem mais, que me matem de uma vez sem brincar feito abutres.

"Será que está vivo?", pergunta a voz de uma mulher. Abro os olhos vagarosamente e vejo um homem e uma mulher sobre mim. Eles reconhecem o brasão em meu peito e me fazem perguntas que não consigo entender direito por conta do choque ao perceber que aquele não é meu fim, então não respondo. A mulher se agacha e limpa meu rosto, dizendo que tudo ficará bem. Com os pés afundados na neve, o homem tenta erguer o corpo de Divina, mas acaba escorregando e caindo de joelhos. A mulher tira um pouco da neve sob a égua e tentam erguê-la novamente. Não conseguem, mas o corpo é erguido um pouco, o suficiente para que eu veja a flecha quebrada fincada na coxa de Divina. Não foi minha culpa! Não fui eu que a atirei para o barranco. O alívio toma conta de mim de forma que não me importo com o peso do corpo caindo mais uma vez sobre minha perna.

Ainda extasiado pelo alívio, ouço a mulher dizer algo sobre um machado. Volto minha atenção e consigo perguntar o que vão fazer, com certo desespero na voz. O homem vai à carroça e retorna com um machado na mão, limpando o fio com o casaco. A mulher amarra um pedaço de pano em minha coxa. "Se ficar aqui mais um pouco, pode morrer de frio", diz a mulher enquanto protesto e digo para procurarem por mais pessoas para erguer o corpo pesado de Divina. Sei que ela tem razão e que não achariam alguém por perto antes que eu morresse, mas não consigo esconder meu medo por perder a perna. Coloco a mordaça improvisada entre os dentes e aceito que minha perna, com os ossos esmigalhados, não teria salvação de qualquer forma.

O homem se aproxima pedindo para que a mulher lhe dê espaço. "Faça de uma vez para que ele não sofra mais", ela pede. Fecho os olhos e sinto o machado entrando em meu joelho. Se não fosse pelo pano em minha boca, teria arrancado minha língua com os dentes. Abro os olhos e vejo minha perna cortada, espirrando sangue por todos os lados, mas ainda presa a minha coxa. A visão me atordoa, a dor me faz querer vomitar. "Desculpa" diz o homem com pesar, erguendo o machado novamente. Desmaio antes que consiga vê-lo atacar minha perna novamente

Acordo em uma cama ardendo em febre. Ouço galinhas, carneiros e alguém a cortar lenha. Estou numa fazenda, suponho. Uma jovem mulher me cumprimenta e eu a reconheço, é a mulher que me salvou. Olho para minha perna, apenas o que restou dela. A mulher, Anna, ela me diz, se ajoelha ao meu lado, pergunta como estou e analisa o curativo. Ela me ajuda a sentar. Não consigo disfarçar o encanto que vejo em seus olhos castanhos, nem ela aos meus azuis. Ela desvia o olhar, tentando conter um sorriso, molha uma toalha num balde e coloca sobre minha testa.

O restante da família vem me conhecer, um pai, uma mãe e um único irmão, Peter, o homem que me salvou. Tento apertar a mão de Peter, mas sou acometido por uma tosse terrível, um resfriado que ganhei de presente da neve. Peço desculpas e agradeço a eles por me salvarem. Estão felizes por me verem acordado e perguntam se há alguém que poderá vir em minha busca. Respondo que duvido muito disso, mas que assim que eu tiver condições de voltar sozinho o farei. Eles pedem para que eu não me preocupe e alertam que a volta para casa pode demorar, por conta de uma possível tempestade que se aproxima. Peter pede licença e vai para fora, onde continua a cortar lenha para se preparar para o frio rigoroso que teremos que enfrentar.

A tempestade chega e estou preso no lugar há alguns dias, não que isso me incomode. Sou tratado com muito carinho e respeito, eles estão curiosos com a chegada de um estranho cavaleiro em suas vidas pacatas. Anna conversa comigo o tempo todo, corta os legumes sobre uma caixa ao lado da cama para que não precise interromper a conversa enquanto prepara o jantar. Ela não quer saber apenas como eu estou, quer saber sobre o meu passado e falar sobre o seu. Ela não para de falar, parece que sempre tem algo muito interessante para dizer, mesmo quando não tem. Suas conversas me distraem da dor e da febre, e quando não estamos conversando, penso sobre as conversas anteriores.

Peter e seu pai se sentam ao me lado após o jantar para ouvir histórias sobre guerras enquanto eles me contam sobre suas caçadas. O assunto não me interessa tão profundamente quanto as conversas de Anna, mas fico feliz em tê-los por perto antes de dormir. Peter é mais novo que Anna, mas às vezes parece ser muito mais sábio que eu mesmo, coisas que aprendeu muito bem com a mãe, percebo. A mãe está sempre checando como estou e me trazendo chás, sopas e soluções poderosas que me reanimam rapidamente.

Anna está sempre atenta aos trabalhos da mãe, que explica pacientemente sobre as propriedades de cada ingrediente. Ouvindo suas conversas, entendo que Anna está confiante sobre meu caso por já ter tratado a perna de um carneiro anteriormente. Ela é quem cuida dos animais e conversa muito comigo sobre os cavalos que eu costumava cuidar. Tenho falado da cavalaria como algo do passado constantemente, embora ainda esteja a esperar por um resgate.

Os ventos estão mais tranquilos e a neve é retirada do caminho com mais facilidade. Parece que ninguém deu falta de mim, o pai se oferece para alertar os homens sobre minha situação, acreditando que em outro lugar eu teria um tratamento mais adequado para minha perna. Duvido um pouco disso, já que nunca me recuperei tão bem de um resfriado e vejo belos avanços em minha perna. Com certo receio, peço a ele que me deixe ficar com sua família, sou sincero e conto meus motivos para não querer voltar. Nunca me senti tão bem ao lado de estranhos e começo a me sentir parte da família. Não menciono nada sobre Anna, mas ele, que não nasceu ontem, observa a filha pela fresta da janela tirando a neve de onde se plantava cenouras antes do inverno. Ele acena para mim com a cabeça.

Com a ajuda de uma bengala muito bem talhada por Peter, dou meus primeiros passos cambaleantes. Precisa de ajustes, mas a mãe sabe bem como ajudá-lo com isso. Ao menos consigo me sentar à mesa pela primeira vez, onde rezamos e agradecemos pela comida farta preparada pelas mãos habilidosas de Anna. Agradeço a ela pelo jantar ao deitar na cama. Ela fala algo que não consigo prestar muita atenção, estou hipnotizado pelas suas covinhas, pela forma como ela está sempre jogando o cabelo para trás, pelos seus olhos grandes e escuros que me olham como se esperassem uma resposta. Não sei o que dizer, gaguejo algo e me calo subitamente, deixando evidente que tenho nada a dizer. Sinto minhas bochechas quentes de vergonha, Anna acha graça e exibe seu lindo sorriso. Ela toca meu queixo com delicadeza, ergue meu rosto avermelhado e me beija.

Já é nossa segunda primavera juntos. Sinto o vento fresco batendo em meus cabelos pretos e longos, com os quais nossa filha se diverte. Minha alegria ao vê-la pela primeira vez foi imensurável. Ela é perfeita! Tem os olhos da mãe e o mesmo olhar do pai, que aprendi a apreciar ao ouvir Anna elogiar minha aparência tantas vezes. Anna e eu conversamos muito a respeito do nome da criança. Tive vergonha de sugerir o que realmente queria, mas toda minha história para ir parar naquela família era inacreditável para mim, todo meu infortúnio tinha sido recompensado por eles. Um ótimo exemplo de como Deus sempre escreve certo por linhas tortas. Ainda havia um vazio no meu peito, eu queria que ela pudesse ficar comigo até sua velhice e pudesse conhecer minha família, meus novos amigos. Tomei coragem e disse que precisava homenagear minha única amiga. Anna concordou e, quando o padre veio nos visitar, batizamos nossa filha Divina.

Aprendi a cuidar dos animais e das plantações com facilidade. Apesar da perna pela metade, meu rosto continua intimidador o suficiente para que os negociantes não tentem gracinhas conosco, não que seja preciso fazer algo, já que Peter sabe barganhar melhor do que ninguém. Diferente da cavalaria, aqui não sou apenas útil, mas principalmente querido. Espero que meu pai não esteja incomodado em me ver onde ele sempre quis que eu o tirasse. No entanto, eu sei que mamãe o lembra que eu mereço estar onde estou feliz. Todos aqueles anos batalhando, a glória e a honra nunca estiveram na servidão a homens perversos, sempre esteve naquilo que me arrancaram.

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