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Caminho de Volta

A carroça onde Ana estava deitada preguiçosamente, abarrotada de equipamentos de todo tipo, movia-se de forma irregular, acompanhando o passo torto da criatura de mana que a puxava. Cada solavanco, embora abrupto, tinha um ritmo peculiar que, de forma inesperada, a envolvia em um estado de relaxamento que não experimentava há semanas. O movimento, quase hipnótico, fazia seus olhos vagarem pelos arredores.

O comboio seguia devagar pela floresta densa. Para os plantíneos, seus companheiros vegetais, esse balanço também parecia longe de ser incômodo. Eles se esticavam languidamente em posturas de falso cansaço, suas expressões demonstrando uma tranquilidade que combinava com o ritmo da viagem. A jornada de volta, no entanto, estava se provando mais longa e exaustiva do que a ida à aldeia. A cada poucas horas, o grupo era forçado a parar, permitindo que os novos fazendeiros pudessem se conectar ao solo, reabastecendo seus nutrientes. Esse ritual se repetia, especialmente durante as noites, quando o Sol não se apresentava como fonte parcial de sustento e força.

Além disso, a mata ao redor constantemente os forçava a abrir caminho, o que dificultava o avanço. As pesadas caçambas de suprimentos avançavam com dificuldade, esmagando a vegetação rasteira, e cada minuto parecia se estender.

Ana, com um raro bocejo, se virou de lado, aninhando-se desconfortavelmente em meio às ferramentas e ferragens que preenchiam a carroça. Seus dedos pousaram em uma pequena estátua de raposa que estava a sua frente, esculpida com precisão. Quem a visse distraidamente poderia confundir a escultura com uma criatura viva, se não fosse pelo fato de que a estátua não possuía uma essência. Ou melhor, parecia mais com uma criatura morta, visto estar desprovida de qualquer sopro de existência passando por seus pulmões.

— Mais uma tentativa... — murmurou, enquanto seus dedos deslizaram levemente sobre a superfície fria da pedra.

Com um suspiro de leve frustração, Ana infundiu um pequeno fio de mana no objeto inerte. Durante alguns segundos, manteve a constância do fluxo com foco absoluto, até que, como se exigindo seu lugar no mundo, a mana reversa começou a se manifestar-se, tingindo a pura energia anterior.

A estátua começou a mudar. Primeiro, o nariz de pedra ficou mais escuro, como se tivesse sido banhado em sombra, seguido logo pelas orelhas, escápulas e, finalmente, a cauda. O cinza apagado da pedra se transformou em um negro belo e intenso, e uma leve vibração percorreu cada músculo esculpido do corpo da pequena criatura. 

Foi então que um leve estalo percorreu a superfície da raposa, quase inaudível, mas para a mercenária, foi o suficiente. Parou imediatamente, sabendo o que viria a seguir. Seria o mesmo de sempre.

Ela esfregou os dedos nas têmporas, sentindo a tensão acumular-se.

— A mesma coisa que com a mana comum…

A memória das tentativas anteriores surgiu em sua mente com clareza. 

A primeira foi uma pequena criança, a qual esculpira com extremo cuidado. Naquele momento, havia se permitido sentir uma esperança real de conseguir dar vida à pedra, repetindo de alguma forma o que ocorreu com os mascarados. Mas ao tentar colocar grande quantidade de mana de uma só vez, percebeu imediatamente o erro. A estátua não suportou o poder, e em um piscar de olhos, explodiu em um pó espesso, engolfando-a em uma nuvem de fracasso.

Depois, foi a vez de uma pequena ave, tão delicadamente moldada que suas asas pareciam prestes a bater voo. Foi mais cautelosa, infundindo um pequeno fluxo de mana, com muito mais cuidado. No entanto, lentamente, rachaduras começaram a aparecer nas extremidades, até que se quebrou em pedaços, incapaz de suportar até mesmo aquele fluxo controlado.

E agora, a raposa. O terceiro fracasso. Mana reversa ou mana comum, o resultado parecia invariavelmente o mesmo. Primeiro estalo, primeira rachadura.

Com um suspiro mais profundo, seus olhos vagaram pela carroça até encontrarem Miguel, que conduzia o lobo. Ele estava ali, quieto, imóvel, com a máscara cobrindo o rosto que, por baixo, não trazia expressões visíveis.

"Como ele estava vivo?", refletiu ela por longos segundos.

Não conseguia entender. O sentimento era excitante e perturbador ao mesmo tempo. 

"Eu realmente fiz isso? Ou outra pessoa? Gabriel? Outra Sombra? Deus?"

— Desisto… por enquanto — sussurrou, afastando a raposa de lado e se acomodando novamente e fechando os olhos, entendendo que o segredo do que o mantinha vivo ainda estava fora de seu alcance. — Eventualmente, vou descobrir… 

Em meio a seus pensamentos que flutuavam na névoa do sono, sentiu um familiar puxão em sua mente. Abriu os olhos, confusa, só para se deparar com os milhares de fragmentos que não via a tempos.

— Reparei que você tem vindo pouco aqui ultimamente. — A voz sarcástica que Ana conhecia bem ecoou repentinamente, mas o que realmente chamou a atenção foi um estranho som de impacto. Virando-se rapidamente, avistou Gabriel caído no chão, como se tivesse sido arremessado de um lugar distante. Ele caiu de costas, com seus braços e pernas se espalhando desajeitadamente no chão.

Ana arqueou uma sobrancelha, mas antes que esboçasse reação, o anjo simplesmente se levantou, ajeitando a roupa como se nada tivesse acontecido. Sem mencionar a queda, ele continuou a falar como se fosse a coisa mais natural do mundo.

— Na verdade, nem lembro quando foi a última vez! — ele sacudiu um resto de poeira que restou em um dos ombros, mantendo o tom casual. — Sabe, eu realmente não estava afim de incomodar…

Ana franziu a testa, surpresa, mas decidiu apenas ouvir. Nada nunca era completamente normal no mundo fragmentado. Gabriel, em sua atitude despreocupada, olhou ao redor, gesticulando para o cenário bizarro que agora preenchia o espaço mental que os cercava.

— Só que… as coisas estão ficando estranhas por aqui.

Tal lugar estranho, que uma vez havia sido caótico, mas vazio, havia mudado drasticamente, possuindo agora uma atmosfera inebriante. Raízes volumosas atravessavam os magníficos vitrais multicoloridos, como se uma árvore invisível estivesse costurando aquele espaço com seus ramos. Flores de diferentes formas e tamanhos brotavam em todas as direções, perfumando o ar com um cheiro doce e inquietante, quase enjoativo. Exalava uma atmosfera de sonho, mas algo ao fundo gritava perigo.

— Olha pra essa merda toda — Gabriel abaixou-se no chão e arrancou uma das flores que parecia crescer diretamente de um dos vitrais, com suas pétalas grotescamente perfeitas. Ele a examinou brevemente como se fosse um inseto irritante antes de voltar a olhar para Ana, com o item sendo esmagado em meio a seus dedos. — Que porra tá acontecendo?

— Bem… — começou a mulher, levantando uma das mãos para mostrar as próprias pétalas que se fundiram a seu corpo.. — Mudei algumas coi…

Antes que terminasse a frase. Gabriel tapou seus lábios com um dedo.

— Não, não, não. Foi uma pergunta retórica, eu vi um pouco de toda aquela bizarrice lá fora. Na verdade, até que elas ficaram legais, de certa forma — Gabriel continuou, finalmente jogando a flor de lado. — Mas aquilo ali? Aquilo foi o motivo de eu ter feito um esforço extra pra te trazer durante o sono. Não sei o que é, mas tem que ir embora.

Ana sorriu pela interrupção, e virou a cabeça para o local onde o dedo angelical indicava. Era um canto onde algo parecia profundamente deslocado, com alguns gaveteiros caídos, diferente de todo o resto deste mundo, onde esses simplórios objetos mantinham-se constantes, imóveis e selados. Ela logo entendeu que tratavam-se dos que já foram liberados anteriormente, como se tivessem perdido seu propósito, então ignorou-os, focando no real problema. 

No meio desse pequeno ponto de desordem, havia algo... ou alguém.