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Contornos Embriagados

A taverna estava agora silenciosa, e as luzes fracas das lamparinas lançavam sombras oscilantes sobre a mesa central, onde uma bagunça de pergaminhos estava espalhada. Desenhos de grandes estruturas cobriam os papéis, as linhas tortas e traçadas com pressa revelando uma tentativa de capturar ideias que, em algum momento, pareceram brilhantes para os envolvidos. Torres ambiciosas, pontes que desafiavam a física, e até esboços de uma nova muralha para a cidade emergiam do emaranhado de traços.

"Como tudo chegou nesse ponto?", pensou Eva, parada ao lado da mesa, observando a cena com uma expressão de perplexidade.

Parecia que, em um instante, uma conversa trivial havia se transformado em uma explosão de entusiasmo arquitetônico e, logo depois, em uma competição desenfreada de bebidas. Ou talvez os dois ao mesmo tempo. 

Ela passou os olhos pelas folhas três ou quatro vezes, tentando decifrar os planos caóticos. Muitas anotações foram feitas com letras grandes e desalinhadas, misturadas a desenhos de pequenas criaturas enchendo os espaços vazios com detalhes irreverentes.

No canto da sala, Jorge estava largado contra a parede, sua cabeça apoiada de forma desajeitada no ombro. Um leve ronco escapava de seus lábios entreabertos, e um sorriso satisfeito estava fixo em seu rosto, como se até em seu sono ele estivesse revivendo uma piada interna. Seu braço pendia ao lado do corpo, como se uma caneca invisível ainda estivesse em sua posse.

A Sombra, por outro lado, permanecia em sua cadeira, incrivelmente ainda acordada, mas seus olhos estavam distantes, vagando por um ponto fixo do nada, como se observasse uma cena que só ela conseguia ver. Ela se balançava lentamente de um lado para o outro, as pernas pendendo da cadeira, enquanto murmurava para si mesma uma melodia antiga que flutuava sem propósito. A caneca vazia em sua mão girava entre seus dedos, num movimento hipnótico que parecia ser a única coisa que a mantinha conectada àquele mundo.

E no centro de toda aquela desordem, Ana e Cassandra estavam caídas sobre a mesa, desmaiadas. As duas tinham os rostos pressionados contra os pergaminhos, como se as ideias que desenharam pudessem ser absorvidas pelos sonhos alcoólicos que agora as dominavam. O cabelo de Ana estava desarrumado, caindo sobre a mesa e misturando-se aos desenhos, enquanto Cassandra, por sua vez, ressonava suavemente, seus braços musculosos ainda envolvendo o recipiente vazio da bebida como se fosse um troféu conquistado com esforço.

Na noite anterior, quando Eva contou à rainha o que havia acontecido em Carapicuíba, sentiu um frio percorrer sua espinha. Sabia que Ana não era exatamente conhecida por sua paciência, então fechou os olhos, esperando uma bronca severa, palavras frias e talvez até mesmo uma reprimenda pública. Em sua mente, já preparava uma série de justificativas, buscando desesperadamente por uma forma de suavizar a situação. 

No entanto, quando voltou a os abrir, Eva foi surpreendida por uma risada alta e quase explosiva de Ana, que ecoou como um trovão, seguida de um sussurro carregado de um entusiasmo peculiar.

— Ah, criança burra... mais uma oportunidade acaba de surgir.

Antes que pudesse sequer entender o que estava acontecendo, a garota ruiva sentiu mãos firmes em seus ombros, guiando-a para dentro de uma estranha porta. Era uma mistura de urgência e animação, como se a própria Ana tivesse sido tomada por uma ideia irresistível. Em poucos segundos, a jovem já estava em uma cadeira central, e a rainha, com seu sorriso travesso, a apresentou como se fosse um prêmio recém conquistado.

— Quero que conheçam Eva, uma das conselheiras do reino! Seja o que precisarem durante o tempo aqui, podem procurar por ela.

Os olhares de Jorge e Cassandra se voltaram para a menina, enquanto tentavam processar a introdução repentina. O jornalista, que estava encostado em uma das paredes com os braços cruzados, ergueu as sobrancelhas. Já Cassandra apenas lançou um olhar intrigado.

— Um rosto tão jovem para uma posição tão importante... — o homem comentou, tentando manter a cortesia, embora a surpresa fosse visível em sua expressão. — Mascarados sempre me deixam confuso.

Foi então que Ana, como se não quisesse nada, fez um gesto dramático, levando a mão à testa como se estivesse refletindo sobre algo de extrema complexidade. Seus olhos semicerrados e o suspiro profundo criaram um momento de suspense, fazendo os outros na sala a observarem com atenção redobrada.

— Algo te preocupa, Anabele? — perguntou o homem, tentando ser educado.

Ana soltou um suspiro teatral e lançou um olhar significativo para Eva, como se dividisse com ela uma preocupação grave e compartilhada.

— Ah, nada demais... — disse, arrastando as palavras. — É que a Eva acabou de retornar de uma viagem importante, e... bem, parece que alguns habitantes de um reino vizinho estarão chegando à cidade em breve — fez uma pausa calculada, seus olhos brilhando com um toque de malícia. — Não é exatamente um ataque, mas... digamos que têm um certo gosto por brigas.

Os olhos de Jorge se estreitaram enquanto ele tentava absorver a informação com sua mente nublada, e, paralelamente a isso, Ana lançou um leve beliscão em Eva, que estava prestes a tentar esclarecer a situação. A jovem se esforçou para esconder a dor e frustração, mas por fim ficou quieta, apenas lançando um olhar levemente irritado para a mercenária enquanto tentava decifrar suas intenções. 

Foi então que Cassandra, que vinha escutando tudo com os cotovelos apoiados na mesa, de repente, se ergueu com um salto, derrubando a cadeira com um estrondo. Seu rosto estava corado pela bebida, mas havia um entusiasmo inconfundível em sua postura.

— Você não pode os culpar! As pessoas precisam extravasar de alguma forma! — gritou, acentuando a explosão repentina de energia. — Aqui em cima todo mundo finge que não quer dar uns bons murros em alguém, mas algum dia a população se cansa! Se quer evitar que acabem destruindo metade da cidade... então faça uma arena!

A sugestão pairou no ar por um momento, e a expressão de Ana se suavizou, transformando-se em um sorriso sorrateiro, como se já pudesse ver as engrenagens girando em sua mente. O silêncio que se seguiu foi quase palpável, como se todos estivessem considerando a ideia, cada um à sua maneira.

— Uma arena? — repetiu finalmente a rainha, inocentemente. Ela se inclinou para frente, cruzando os braços sobre a mesa e fixando o olhar em Cassandra, que ainda parecia tomada por sua súbita epifania. 

— Sim, sim, uma arena! É claro que isso funcionaria! A brutalidade na medida certa é o melhor dos calmantes. E... quem sabe, até rende uma boa quantidade de… bem, apostas!

— A ideia é boa, mas temo que leve muito tempo para se organizar isso, eu não conheço tanto desse tipo de lugar…

— Deixe com a gente — o rei mercenário ao seu lado comentou. — Cassandra parece bruta, mas se tratando de espetáculos, é realmente confiável.

Eva notou que Ana mantinha uma expressão controlada, mas conhecendo a rainha como conhecia, era fácil perceber o pequeno tremor em seus lábios por baixo da máscara, como se estivesse segurando uma risada alta. Felizmente, apenas soltou um suspiro e continuou com sua encenação, assumindo um semblante de dar pena a cada frase. 

A garota ruiva ainda não entendia completamente a situação, mas suas sobrancelhas estavam quase se colando enquanto percebia que sua líder tentava se aproveitar da gentileza dos dois bêbados.

— Tem certeza disso? Não quero dar trabalho para pessoas que acabei de conhecer — fingindo surpresa, Ana perguntou novamente enquanto levava a mão pro peito como se estivesse emocionada.

Cassandra, cada vez mais animada pela oportunidade, soltou uma gargalhada profunda que ecoou pela sala.

— Claro que sim! Dê-me alguns construtores e um bom lugar para dormir, e logo transformarei um simples campo em um anfiteatro digno de gladiadores! — Seus olhos brilhavam com entusiasmo, e o jeito dela falar fazia parecer que já estava visualizando cada detalhe em sua mente.

Ana balançou a cabeça levemente, ainda mantendo a expressão de quem ponderava a oferta.

— Ah, eu não posso aceitar algo assim de graça. Seria me aproveitar demais de sua generosidade... — Ela fez uma pausa e inclinou-se ainda mais para frente. — O que acha de trabalhar para mim?

Cassandra ergueu uma sobrancelha, considerando a oferta por um momento, antes de abrir um sorriso de orelha a orelha.

— Isso é ainda melhor! Sabe como é difícil conseguir dinheiro na superfície? 

Sem perder um segundo, a guerreira já estava puxando alguns materiais que encontrou em um canto da sala. Com movimentos largos, começou a rabiscar rapidamente utilizando pequenos pedaços de carvão. O esboço de sua mente começou a se mostrar enquanto falava com a voz acelerada, pulando entre mil possibilidades.

— Ah, e não ia dizer nada, mas tenho que aproveitar a oportunidade... sua cidade está muito crua! — ela gesticulava com a mão enquanto desenhava, sem desviar os olhos do trabalho. — Todo bom reino precisa de uma casa termal, sabe? Algo como em Roma! Quem não gostaria de um banho quente depois de um dia de trabalho?

A sugestão fez Ana soltar uma risada aberta e sincera. Ela arrastou sua cadeira para mais perto, posicionando-se ao lado da mulher robusta. A jovem conselheira permaneceu perdida, questionando-se de onde aquela pessoa havia vindo e qual era o vínculo que as unia, pois, olhando de fora, a proximidade entre elas era evidente.

As horas passaram em um piscar de olhos. Caneca após caneca era esvaziada, e, contraditoriamente ao que se esperaria de uma noite de bebedeira insana, mais e mais rascunhos e desenhos surgiam na mesa, cada um mais elaborado e ousado que o anterior, como se o álcool despertasse suas genialidades. As risadas e provocações se misturavam ao carvão até que, por fim, ambas caíram em um desmaio quase sincronizado, o cansaço e o álcool finalmente vencendo as duas.

Foi então que se ouviu um som leve e metálico, um tintilar que ecoou pela sala, despertando a conselheira de sua recapitulação interna. Buscando a origem do som, ela virou a cabeça rapidamente, vendo um canudo de ferro, o qual a rainha usou para beber mantendo sua identidade escondida ao longo da noite, rolando pelo chão até parar ao lado de sua bota.

O som pareceu ter um efeito imediato em Ana, que despertou de um salto, piscando os olhos várias vezes enquanto se reorientava. Ainda meio sonolenta, olhou ao redor, deu uma risada baixa e se espreguiçou, girando o corpo para esticar os músculos enquanto seus ossos estalavam com o movimento.

— Essa cerveja com mana é boa demais, tenho que agradecer a Madame mais tarde — murmurou a mulher, vendo Eva a encarando. — Não sinto nem um pouco de ressaca.

A menina apenas assentiu em silêncio, sem saber muito bem como responder. Ana então a estudou por um momento, seus olhos deslizando de maneira crítica sobre a figura da conselheira.

— Você cresceu um pouco? Parece maior… Ah, a juventude... 

Com o comentário vindo do nada, se deitou novamente na mesa, fechando os olhos como se um punhado de areia os cobrisse.

Eva respirou fundo, e, com cuidado, recolheu os pergaminhos mais importantes, deixando de lado alguns que eram claramente apenas rabiscos embriagados. Em um deles, notou uma caricatura de Ana com uma coroa desproporcional na cabeça e uma expressão carrancuda que alguém, provavelmente Nyx, desenhara com uma nota ao lado: "Rainha do Drama". Não pôde evitar um sorriso, dobrando o papel junto com os outros.

Dando uma última olhada em todos, decidiu que, como sempre, o melhor seria focar nas suas tarefas. Levantou-se, com o peso das responsabilidades voltando a pairar em seus ombros, e se preparou para mais um dia de trabalho na cidade que, cada vez mais, parecia tomar um rumo inesperado e grandioso.