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Canecas e Coroas

Ao entrar na sala de trás do balcão, o cheiro adocicado e levemente ácido da fermentação artesanal preencheu o ar, puxando a atenção de Ana para o canto onde um rudimentar equipamento de fabricação de cerveja estava disposto. Suas engrenagens de metal polido gotejavam um líquido azul-claro, quase iridescente, que se acumulava em pequenos barris alinhados logo ao lado. 

Sobre uma mesa central de madeira rústica, grandes canecas de madeira repousavam, com partes translúcidas que deixavam escapar um brilho suave. O contraste entre a rusticidade da madeira e a intrigante bebida dentro delas chamou a atenção de Ana, que arqueou uma sobrancelha, se perguntando o que exatamente estava diante dela. O cheiro era profundamente diferente da bebida comum que havia encontrado do lado de fora, uma diferença que despertou sua curiosidade instantaneamente.

— Algo novo no menu? — comentou em voz alta, com um leve sorriso de curiosidade, chamando a atenção das figuras sentadas ao redor. 

Três pessoas, além da Madame, estavam presentes. A primeira, Nyx, estava observando o conteúdo das canecas com seu habitual ar de curiosidade quase infantil, evidentemente tendo se intrometido na criação da nova bebida. Ana lançou-lhe um olhar compreensivo, e a Sombra retribuiu com um sorriso, enquanto levantava a caneca em direção aos lábios.

Ao lado da barda necromante, havia um homem de aparência familiar, mas cuja identidade escapava à memória de Ana. Ela prolongou o olhar por um momento, afinal, tinha certeza que o reconhecia de algum lugar, mas foi inútil, realmente não conseguia se lembrar. Isso a incomodou brevemente, mas ela deixou de lado.

E então, viu a terceira pessoa, alguém realmente inesperado. A massa de músculos, Cassandra, estava claramente embriagada, suas bochechas coradas pelo álcool enquanto se esforçava para manter a compostura e virar-se para ver o novo visitante. Mesmo bêbada, sua presença impunha respeito, mas havia uma leveza em seu comportamento que trouxe certa nostalgia de suas conversas após as batalhas na arena.

Antes que Ana pudesse sequer organizar suas ideias, Madame girou em seus calcanhares e a encarou com um olhar severo.

— Então é você, sua maldita! Como teve coragem de servir aquela água choca pros clientes? — a leitora gesticulou exageradamente, o dedo apontando para Ana com a autoridade de quem não aceitava desculpas.

A recém chegada ficou confusa por um segundo, mas logo seus pensamentos se direcionaram para as rugas no rosto de sua velha conhecida. Anos se passaram desde a última vez que se encontraram pessoalmente, e mesmo a mana não conseguia evitar que as garras do tempo deixassem suas marcas. Com certa melancolia na voz, a rainha soltou uma gargalhada curta e despreocupada, fechando a porta atrás de si com um aceno para que seus acompanhantes a esperassem por um momento.

— Clientes? Madame, nós nem abrimos oficialmente ainda.

— Isso não importa! — a taverneira respondeu, cruzando os braços dramaticamente. — Devia ter feito algo melhor desde o começo. Principalmente com esses mascarados tão capazes ao seu redor, aprenderam a fazer depois de eu mostrar apenas uma vez! 

Ana balançou a cabeça em uma mistura de diversão e exasperação. Havia um toque de absurdo na situação. Sempre tinha. Ela abriu a boca para responder algo, mas foi interrompida por uma garganta sendo limpa com força.

Jorge, o homem desconhecido, se aproximou, visivelmente desconfortável com a tensão na sala. Com um gesto formal, fez uma breve reverência.

— Saudações, Vossa Majestade — disse ele, com a voz contida, porém respeitosa. — Devo dizer que aprecio sua maravilhosa cidade das máscaras, e fico feliz de ver uma companheira de coroa tendo tão grande ascensão. Me chamo Jorge, e essa é minha companheira, Cassandra.

"Droga", pensou Ana, travando por um instante ao ouvir a frase, não pelo gesto sem necessidade, mas pela designação que foi dada para seu reino. 

"Eu sabia que estava esquecendo de alguma coisa… essa cidade precisa de um novo nome logo."

Antes que pudesse dar continuidade a esse raciocínio, o homem puxou a grande guerreira para mais perto. A sua antiga dona tropeçou levemente, quase caindo de rosto no chão, mas conseguiu manter o equilíbrio por puro instinto. Curvou-se de forma desajeitada, ainda lutando contra os efeitos do álcool, mas com uma tentativa de formalidade, mesmo que falha.

Ana observou a cena, seu humor mudando de imediato. Um lampejo de fúria passou por seus olhos, reacendendo brevemente a raiva que guardava dos acontecimentos relacionados à chefe da arena. O Abismo passou por trás de seus olhos, e era como se, por um segundo, o passado estivesse vivo novamente.

Mas então, ao ver Cassandra tropeçar, bêbada e vulnerável, algo dentro de Ana se quebrou. O peso do ódio que carregava por tanto tempo parecia fora de lugar, desatualizado. Ela respirou fundo, sentindo a fúria dissipar-se em uma única expiração.

"A situação faz a pessoa", refletiu, como se estivesse finalmente enterrando aquela versão de si mesma. Não estavam mais no Abismo, estavam em um novo mundo, um novo contexto, então iria observar. Por enquanto. "Ainda assim, fico feliz que não estou com a espada…"

Dando um passo à frente, Ana estendeu a mão, e Jorge, um tanto hesitantemente, a apertou. Ele parecia incerto, como se não soubesse bem como agir diante da matriarca do reino emergente. Ainda assim, o toque de suas mãos foi firme, e a situação foi aliviada pela risada leve da rainha, que soou mais natural do que ela esperava.

— É um prazer conhecê-los, mas peço que deixem de lado essas formalidades — disse, tentando quebrar o gelo. — Afinal, somos todos mercenários, não nobres! Me chamem apenas de Ana… bele.

Sua voz vacilou levemente ao final da frase, e Cassandra e Jorge se encararam, como se notassem a estranheza.

"Sou uma idiota"

O cumprimento durou mais do que o necessário, e o clima começou a ficar um pouco desconfortável. Ana ajustou a respiração, preparando-se para um possível confronto, mas Jorge, antes que pudesse dizer qualquer coisa coerente, deu um soluço alto enquanto afrouxava os dedos.

— Me… hic… desculpe… — balbuciou repentinamente, ficando cada vez mais vermelho de vergonha, mas mantendo um sorriso cordial. — Acho que bebi mais do que devia... Sendo assim, é um prazer, Anabele.

Madame observou a interação por trás de sua caneca, com um brilho de compreensão em seu rosto. Sem dar chances para que algo ocorresse, interrompeu-os com um sorriso malicioso.

— Ah, a nova nobreza! — disse ela, enquanto colocava sua bebida de volta na mesa. — O mercado de mercenários anda perdendo espaço pras guildas. Mas parecem estar à altura das coroas, não acha? 

Confirmando que não emanavam um sentimento de ameaça, Ana suavizou o olhar, imaginando que nem mesmo se lembrariam da conversa na manhã seguinte.

— São interessantes, não havia visto ninguém desse tipo nas cidades antes.

— As coisas estão mudando, querida! — respondeu Madame entre risos. — Adivinha, eles vieram do Abismo! Mas, bem… não é como se isso fosse uma novidade aqui, né?

Ela gesticulou com as mãos para a sala, como se estivesse apresentando uma variedade de atrações.

— Sombras, corrompidos, mascarados… Isso é puro suco de globalização!

Ana balançou a cabeça, sem jeito, enquanto uma pequena risada escapava de seus lábios. O exagero e a teatralidade de Madame sempre a pegavam de surpresa.

— Sim… — murmurou, seu tom refletindo mais seriedade do que ela pretendia. — As mudanças estão surgindo de todos os lados ultimamente.

Com um suspiro silencioso, puxou uma cadeira e se sentou entre eles. Nyx, que até então estava quieta em seu canto, aproveitou a oportunidade para servir uma caneca de cerveja a Ana, que aceitou com um leve aceno de cabeça. Em meio à movimentação, Madame se inclinou para frente. Seu olhar, antes brincalhão, agora parecia mais atento, quase conspiratório, enquanto ela aproximava os lábios do ouvido de Ana o suficiente para que suas palavras não fossem ouvidas por mais ninguém.

— Falando em mudança, confesso que estou surpresa com você… Por um momento, pensei que você fosse uma mascarada. Afinal, você sabe… — seus olhos brilharam em um tom azul-claro intenso, que rapidamente percorreu o corpo de Ana de cima a baixo, analisando cada detalhe com atenção. Quanto mais se concentrava, mais notava o emaranhado de fios que parecia dançar pelo corpo da rainha, como uma tapeçaria de energias vibrantes. — Mas agora vejo que é muito mais complexo do que isso... tem a ver com aquela jovem ali?

Ela apontou casualmente para a Sombra, que, ao notar, acenou de volta, sem entender muito bem o motivo de estar envolvida na conversa.

— Não, ela é uma conhecida recente — respondeu Ana com um sorriso cheio de nostalgia. — A bagunça que você vê em meu interior é algo de alguns anos atrás...

Ela olhou ao redor, para as pessoas na sala, deixando o silêncio pairar por alguns instantes antes de concluir:

— Mas isso é uma conversa para outro momento.

Madame ergueu uma sobrancelha, evidentemente interessada, mas entendeu o recado. Ela sabia quando não pressionar. Com um aceno de cabeça, permitiu que a mercenária mudasse o curso da conversa.

— Bom, indo pro que interessa, estou surpresa por você ter aceitado me encontrar — Ana começou, um toque de ironia em sua voz, mas seus olhos revelavam uma sinceridade afiada. — Quer dizer, eu não achei que fosse recusar, mas minha reputação não está muito boa em Barueri… de qualquer forma, vejo que estava certa em fazer o convite, você já está até mesmo melhorando a cerveja da cidade. Imagino que já tenha em mente minha proposta.

Madame hesitou, seus olhos buscando algo dentro de si. Por um momento, ela parecia vulnerável, uma expressão rara para alguém tão enérgico e confiante.

— Eu… realmente posso?

— É claro que pode. Não conheço absolutamente ninguém mais adequado.

Os olhos envelhecidos da taverneira brilharam com uma intensidade renovada, sua postura firme se tornando ainda mais imponente. O sorriso dela se alargou, feroz, enquanto seus olhos encaravam os de Ana com uma intensidade elétrica. Embora Madame não pudesse ver o rosto de Ana por trás da máscara, sabia, sem sombra de dúvidas, que sua antiga rainha mercenária também estava sorrindo.

— Então… devo dizer que é uma honra estar sob seus cuidados, minha rainha.

Se espreguiçando, ela se levantou da cadeira e começou a caminhar ao redor. Seus dedos passavam por cada entalhe da madeira das paredes, como se absorvesse os detalhes do local, e um rubor suave surgiu em seu rosto, denotando a excitação que ela tentava, sem muito sucesso, esconder. Pela janela da porta, viu os poucos habitantes da cidade que aproveitavam seu descanso. Sentia como se estivesse em um sonho realizado.

— Sim… isso é a pura fantasia… — sussurrou para si mesma, perdida em seu próprio mundo.

De repente, como se tomada por uma súbita epifania, chutou a porta, fazendo-a abrir com um estalo, e subiu no balcão com uma energia teatral. A atenção de todos no salão foi imediatamente capturada, e ela abriu os braços, como se estivesse prestes a fazer uma grande proclamação.

— A partir de hoje, o Madame Eclipse abrirá suas majestosas portas para todos que desejarem uma romântica vida mercenária! 

Ela jogou as mãos para o alto, como se estivesse demonstrando uma grande vitória. Seus olhos brilhavam de antecipação, como se já pudesse ver o salão cheio de figuras de todas as partes do mundo, uma mistura de corrompidos, todos com belas armaduras, afiadas espadas ou infames armas de fogo, prontos para se lançarem em novas aventuras.

— Que espalhem as minhas palavras e que espantem as amarguras desta porcaria de mundo! E, claro, que bebam até cair nesse estranhamente belo entardecer!

Seu entusiasmo e suas gargalhadas eram contagiantes, e todos os que estavam presentes começaram a levantar suas canecas em um brinde animado. As risadas e os aplausos encheram o salão, enquanto Madame, em cima do balcão, observava tudo com um sorriso triunfante.

Ana, por sua vez, tinha um misto de diversão e satisfação ao encarar a cena. Sabia que havia tomado a decisão certa ao convidá-la para aquele posto. Por mais caótica e imprevisível que fosse, Madame tinha um magnetismo natural que parecia transformar qualquer lugar em um palco grandioso, um refúgio para os aventureiros e desajustados.

Aquela intrigante taverneira era a única pessoa capaz de envolvê-la em uma real atmosfera fantasiosa, onde tudo parecia mais leve, onde tudo parecia possível.

Em seu devaneio, quase não notou um estranho objeto brilhante voando em sua direção. Ele piscava sob a luz suave do ambiente enquanto rodopiava de forma elegante, quase como uma moeda. Por reflexo, ela o pegou no ar com facilidade, mas quando seus dedos se fecharam em torno do item, não pôde deixar de dar um leve bufar de descrença.

— Quase me esqueci de te entregar isso! — comentou de longe Madame, notando que o item foi recepcionado com sucesso e voltando a se engajar em uma animada conversa com alguns bestiais, gesticulando como de costume, completamente alheia ao que acabara de fazer.

Curiosa, Ana abriu a mão, apenas para notar que entre seus dedos repousava um broche em formato de uma coroa dourada e preta, meticulosamente trabalhado, mas claramente envelhecido. Diferente de qualquer coroa nova e resplandecente que ela já havia usado, este estava marcado com sinais do tempo. Arranhões profundos atravessavam a superfície brilhante, e o ouro, outrora reluzente, agora carregava um brilho mais opaco, cansado, mas ainda forte em sua presença.

Ela franziu o cenho, passando os dedos pelos detalhes finos e desgastados. E então, a lembrança veio à tona, finalmente compreendendo o que aquilo significava.

— Não precisava ter se preocupado tanto com isso, Madame…

Era o emblema de sua mãe, a antiga rainha mercenária. O gesto de Madame foi novamente exagerado, mas ainda assim, Ana não pôde evitar um pequeno sorriso, guardando-o no bolso como sempre fez. 

— Realmente demorou para eu virar uma rainha de ouro aficionado… — murmurou, com certa ironia na voz.

Antes que pudesse mergulhar mais nas memórias, o leve tilintar do sino da porta da taverna chamou sua atenção. O som era parte comum do ambiente, assim como as vozes e risadas, contudo, Ana olhou por curiosidade, sua cabeça girando ligeiramente em direção à entrada.

Ali, envolta em seus cabelos de um vermelho profundo, uma figura cabisbaixa escondia seu semblante por trás de uma máscara de raposa.