Por que a vida procura se servir da vida, sacrificando-a para que possa dela se beneficiar ainda mais? Por que a vida não reconhece a divindade da outra vida e passa a cuidar dela?
Um sacerdote mais velho avançou e se postou de costas para Escuridão, os olhos vidrados e loucos para a multidão, seus movimentos lembrando um boneco de cordas.
- Os deuses chegaram e vão cuidar de nós - anunciou numa voz poderosa e sem vida. - Cabe a nós conseguirmos mais seres para eles, porque nossa submissão e adoração os deixam felizes. Quanto mais felizes estiverem mais deles poderão passar, e a força da Porta do Sol, construída pelos inimigos dos deuses, se enfraquecerá, até estar novamente, e totalmente, aberta para o ir e vir, para servir aos verdadeiros deuses e aos seus adoradores. Não devem se deixar enganar por aqueles que não adoram os deuses; eles estão dominados pelos inimigos do submundo. São os deuses que nos protegem dos demônios do submundo, e devemos obediência e nossa vida a eles.
Um pouco de luz voltou aos olhos antes mortiços, que se acenderam suavemente.
> Então façamos a nossa parte, ordenada pelos deuses. Um sacrifício nos é exigido fazer, para demonstrar toda a nossa gratidão. Tragam todos os prisioneiros - finalizou com o olhar dominado pela excitação.
Durante dias os sacrifícios ocorreram, enchendo de sangue as pedras e suas frestas, deixando os sombras e mantas cada vez mais eufóricos e alucinados. Quando o último prisioneiro foi sacrificado as pessoas passaram a escolher dentre si outras pessoas e homens em oferta, e tudo novamente recomeçou.
Assim que os demônios se deram por satisfeitos afrouxaram o controle, e muitos conseguiram um pouco de despertar. Olhando em volta deram com as carcaças amontoadas, com os amigos e conhecidos sacrificados, com os escravos perdidos, com as pedras tintas do mesmo sangue que cobria seus próprios corpos, e perceberam o horror em que estavam lançados. Muitos se desesperaram e enlouqueceram ou tiraram suas próprias vidas, e muitos outros desses conseguiram fugir para o interior.
Ao saberem o que havia acontecido na cidade, e tendo conhecimento de que o número de voadores ainda era pequeno, enraivecidos os revoltosos se armaram novamente. Clamando pelo auxílio dos anjos, dos quais se acreditavam representantes, escolhidos para fazer frente aos demônios, avançaram com determinação e atacaram o portal. No entanto, apesar de toda sua ferocidade e de lutarem bravamente, foram facilmente derrotados. Somente alguns poucos conseguiram escapar e, após muito esforço, retornar para seus esconderijos.
Porém, muitos ficaram para trás e foram aprisionados. Foi através desses que os voadores souberam dos esconderijos dos revoltosos e mandaram caçadores atrás deles. Mas nada acharam, porque os revoltosos nunca ficavam muito tempo em um mesmo lugar. Os caçadores, temendo a ira dos seus deuses, vasculharam cada pedra, até mesmo das montanhas mais altas; e cada caverna, por mais profunda que fosse, e se embrenharam nos rincões mais inóspitos e ocultos de terras esquecidas.
Mas nada encontraram.
Então, temendo serem punidos por uma missão vazia, invadiram vilarejos e tomaram seus habitantes como prisioneiros, e os levaram para a presença dos seus deuses.
Bêbados demais com a vitória tão sonhada por milênios, mais confiantes os poderosos voadores berraram de alegria e se refestelaram no sangue dos novos prisioneiros.
Na euforia da vitória tão estrondosa Trevas e Escuridão levantaram seus olhos para os horizontes e ambicionaram toda a energia dos vivos para destruir de vez a força de resistência da porta e tornar definitiva sua vitória sobre o novo mundo.
Ávidos por mais energia, puseram novamente seus olhos sobre a cidade.
Em pouco tempo a maravilhosa Thiahuanaco nem mesmo sombra do que fora se mostrava. Muitas casas estavam sem moradores e o sangue encharcava o solo. O cheiro nauseabundo do sangue e dos corpos que apodreciam às centenas, tão adorado pelos voadores, enchia e empesteava o ar como uma neblina mortal.
A cidade, a bela, a magnífica, criada pelos anjos para ser eterna, morria.
Durante dias os demônios se serviram das pessoas, e tal era a sanha e o desvario dos demônios que a população começou a diminuir em grande velocidade, bem como a energia que forneciam.
Trevas foi o primeiro a ver isso.
Urrando de frustração Trevas deu o alarme, impedindo que os restantes fossem sacrificados; a energia que sentia à toda sua volta estava perigosamente baixa, sendo que até mesmo o halo em torno do portal estava bastante esmaecido. Trevas examinou o céu e as distâncias, temeroso que os anjos estivessem por perto, pronto a se aproveitarem de seu descuido, pois sabia que eles estavam sempre por perto, influenciando as pessoas e libertando várias delas da dominação. Escuridão entendeu a preocupação de Trevas, vendo que não podiam continuar se enfraquecendo.
Escuridão se ergueu e enviou mantas em todas as direções, mandando que refreassem os desejos sobre a cidade, porque ela estava muito enfraquecida.
Trevas e Escuridão confabularam, buscando formas de aumentar o suprimento de energia. Foi então que estenderam seus olhos para além do horizonte, porque a vida não existia apenas na cidade e arredores.
Mas, antes...
Trevas e Escuridão escolheram os mantas e sombras mais fortes e os enviaram para procurar e limpar aquelas terras dos anjos criados, porque agora eles ainda tinham poder para isso. Por longo tempo caçaram, e dezenas deles foram encontrados, torturados e mortos.
Como nenhum mais foi encontrado por mais que avançassem sobre aquelas terras altas, os demônios se sentiram mais poderosos e confiantes, e armaram os poucos habitantes que haviam restado e os enviaram sobre as terras na companhia dos mantas, para subjugar todos os seres que encontrassem sobre elas. Em sucessivas expedições em pouco tempo já haviam avançado pelas montanhas e destruído muitos povos e civilizações, e capturado milhares de prisioneiros e escravos.
Mas a fome que sentiam persistia, por mais oferendas que recebessem. Incomodados viram que, cada vez mais precisavam de mais daqueles seres fracos, porque suas energias estavam diminuindo e cada vez menos conseguiam afetar a energia da porta, por mais energia que usassem. Se perguntando o motivo de mais daqueles seres oferecerem cada vez menos energia descobriram que a energia que precisavam vinha do sentimento de adoração, da satisfação daqueles seres desprezíveis, da entrega espontânea, e não do terror ou da dominação da alma.
Foi assim que Trevas e Escuridão se decidiram a se tornarem deuses maiores, e fazer dos outros sombras e mantas uma casta de deuses menores, algo parecido com a hierarquia dos anjos.
Por um bom tempo o recém-formado império estacou sua expansão e a guerra de conquista de escravos, e houve paz.
Se sumia algum thiahu de quando em quando, induzido a se sacrificar de bom grado, ou a sacrificar algum parente com mensagens aos deuses, tal fato não diminuía a felicidade que incutiam, e nem passavam carestia, pois que, agora, com poucos conseguiam se satisfazer plenamente.
Mas havia o portal e havia a energia que o bloqueava; a energia de que dispunham, apesar da maior qualidade, ainda era insuficiente.
Então olharam para baixo e viram terras cobertas de matas, e sentiram o aroma de milhões de seres aos pés das montanhas, e ficaram felizes.