O chão de terra batida deslizava pelas solas de seus pés descalços. Naomi estava no campo de treino do Ninho, que naquela hora da manhã estava praticamente vazio se não fosse por ela e uma outra Corva que a observava. Sentia o sol contra sua pele, estava se exercitando usando apenas um short muito curto, ou "super curto" como Gabriel gostava de chamar, e um top. Suor escorria por seu corpo enquanto brandia sua katana de um lado ao outro. Não pensava em mais nada, somente deixava seu corpo se acostumar com os movimentos.
Ela sofreu graves ferimentos em sua última missão a um ano e meio, tendo seu braço direito quebrado e uma perfuração de faca logo abaixo do seio esquerdo. Sob o top era possível ver a longa linha branca que a lâmina deixou marcado em sua pele. Uma recordação de um erro que quase lhe custou a vida. Seu braço por outro lado estava perfeito, ainda sentia um pouco de dor em dias que choviam. Com uma estocada desliza os pés pela terra mudando a posição usando o primeiro movimento para emendar um corte em semicírculo à sua direita.
Naomi estava correndo atrás do tempo que ficou parada desesperadamente, precisava voltar a sua antiga forma, por consequência passou boa parte dos últimos seis meses praticamente no pátio de treino, o que foi bom para seu corpo estar em forma mesmo que ainda estivesse um pouco atrás daquilo que era. E também ajudou a esquecer Gabriel que estava desaparecido em uma missão fazia alguns meses. Encostada em um álter com diversos pesos diferentes Susan a outra pessoa no lugar observava Naomi a analisando. A velha Corva era responsável pela saúde de todos os integrantes do Ninho da Cova Trinta e Quatro, e estava analisando a outra ponderando se ela já estava habita a voltar para a ativa. Os altos muros impossibilitam qualquer pessoa ver o pátio de treino, o mesmo acontecendo com que o usava, mas sons de conversas e movimento eram incessantes, a cidade estava acordada.
— Minha querida — falou Susan repentinamente, e vendo que a jovem ia parar com o que estava fazendo emenda. — Não para, somente me escute. — Saiu do lugar que estava apoiada fazia quinze minutos, andando para mais próximo da outra. — Seus movimentos estão firmes e leves, o que é ótimo para alguém que luta usando uma katana, e seu corpo está com vigor novamente.
— E, então? — indagou Naomi que enfiou a ponta de sua arma no chão, apoiando os dois braços cansados no cabo. — Posso voltar à ativa?
Susan caminha até Naomi, e puxa um cantil que levava na cintura o passando para a outra que agradeceu. Deu uma última olhada na jovem que bebia água com longos goles, com um aceno a velha Corva concorda.
— Sim, já está mais do que pronta.
— Obrigada — falou Naomi devolvendo o cantil para sua dona. — Mas não sei Susan, sinto que estou mais fraca que antes.
— Normal, ficou nove meses parada querida, e mesmo com esse treino intensivo não tem como voltar à velha forma que foi adquirida em anos.
— Pois é — concordou Naomi mau humorada. — Chegou alguma notícia de Gabriel?
Susan guardou o cantil, e parou por um momento quando a porta que separava o Ninho da área de treino se abre, entrando seis Corvos que as cumprimentaram animados. Passaram por elas indo treinar musculação e arremesso de facas, mas um sujeito baixo e cheio de cicatrizes parou sorrindo caloroso, o que fez as marcas em sua pele ficarem ainda mais evidentes.
— Vai finalmente voltar da aposentadoria Naomi? — brincou o homem que analisava alguns pesos.
— Sim — respondeu a Corva — Estou de volta finalmente Murilo!
— Já era hora — brincou Murilo enquanto fazia caretas com o peso que escolheu.
Antes de falar qualquer coisa xingamentos estouraram por detrás dos muros, não vindo da rua, mas sim do lado em que ficava a ferraria e botica do Ninho, todos pararam para ouvir as obscenidades de Will, o Corvo responsável pelo armamento.
— Sobre notícias de Gabriel — falou Susan indiferente aos gritos do parceiro. — Ele, Otto e Wesley completaram a missão então acredito que já devem estar a caminho.
— Como sabe?
— Um pombo chegou mais cedo, vim te falar, mas resolvi não te atrapalhar.
— Entendo, vai ser bom ver ele de novo — falou satisfeita, principalmente por poder mostrar estar de volta. — Verdade Susan! — Comentou Naomi de supetão. — Will conseguiu terminar aquele projeto que eu pedi?
— Minha querida, não está ouvindo a gritaria dele? — não esperou resposta. — Ele terminou faz alguns dias, estava trabalhando para deixar tudo em ordem, ele já vai trazer, deve ter perdido em algum canto.
Uma empolgação tomou conta de Naomi enquanto enxugava os suor em uma toalha velha que havia trazido consigo, pequenas mechas de seus cabelos curtos grudaram insistentemente contra sua testa, ainda que os tenha prendido em um singelo rabo de cavalo em muitos anos não deixava seus cabelos ficaram de tal tamanha, somente em sua época de rua que tinha um longa trança, mas o tempo que passou em recuperação e a falta de missões a fez permitir ficar com um penteado chanel até um pouco abaixo de seus ombros.
Enquanto passava a toalha por sua barriga reconheceu antigas cicatrizes que a acompanhavam a muito tempo, por todo o seu corpo fios brancos, alguns profundos e finos e outros longos e mais grossos tomavam conta, cada um, uma lembrança de momentos dos quais gostaria de esquecer. Mas esses momentos nunca seriam esquecidos pois foram marcados em sua pele. A nova cicatriz mesmo sendo pequena em questão de largura foi a mais profunda, sendo aquela que quase lhe custou a vida. Retirando sua katana do chão a Corva sacude a lâmina para tirar a terra da ponta, analisando a arma que já ceifou tantas vidas, mesmo estando um pouco sem corte, a arma ainda assim transmitia uma delicadeza interessante, sendo longa e fina, com uma ponta e tendo o cume somente de um dos lados, o que a diferenciava da maioria dos Corvos que usava o padrão de uma espada curta e uma faca de combate próximo, seu parceiro Gabriel usava estas armas. Infelizmente não conseguia lidar muito bem com armas de fogo tremendo quando tentava empunhar alguma, um problema de seu passado, não era somente em sua pele que Naomi tinha cicatrizes.
Uma nova remeça de absurdo misturado a obscenidades vieram por detrás dos muros, deixando claro para todos que Will estava sendo infrutífero em sua busca.
— Naomi! — a chamou Murilo que havia deixado um peso de lado para recuperar o fôlego. — Acha que aguenta um desses? — indagou indicando o peso que acabara de abaixar para a colega.
— Sinceramente — respondeu Susan um pouco irritada. — Ela já está bem, para missões simples, não levantar uma casa.
Naomi percebeu o olhar de desafio do outro em direção a si, e passou por Susan que bufou com desdém diante a atitude dela, o que foi meio chocante pois antes jamais cairia em qualquer provocação pequena, mas havia ficado parada por tanto tempo que precisava mostrar que não estava enferrujada.
— Vocês Corvos jovens — censurou enquanto massageava as temporadas com os dedos.
O vento passou fazendo as mechas secas de Naomi dançarem com ele, enquanto as ainda húmidas se mantinham grudadas firmemente em suas testa e queixo, os outros Corvos que também estavam no local deram pouca importância ao que acontecia, continuando com seus exercícios e treino de luta corpo a corpo.
Murilo ficou pasmo quando a desafiada passou direto por ele indo em direção a pequena estante com os pesos, escolhendo assim um quatro vezes mais pesado o levantando com um pouco de esforço. Ela manteve o controle para não demonstrar mais do que devia em sua face quando fazia força, e com a mesma leveza que levantou o peso, o fez descer.
— A verdadeira pergunta aqui é Murilo — constatou Naomi controlando a respiração para não demonstrar o cansaço. — É se você aguenta?
Com um pulo o Corvo ficou em pé, rindo satisfeito, os outros também pararam para ver o que havia, enquanto Murilo ia até Naomi dando tapinhas nos ombros da outra.
— Que bom que voltou! — falou Murilo satisfeito com a Corva. — Agora que está de volta talvez as coisas fiquem um pouco mais fácil para a gente. Perder nossa melhor Ponta de Lança por tanto tempo não foi bom. — Os outros que observavam somente concordavam enquanto voltavam aos seus exercícios.
Com uma careta Naomi se desvencilha do colega, já avia escutado sobre ser a mais habita em combate do Ninho Trinta e Quatro, mas nunca levou aquilo como algo sério. Mesmo que no fundo ficasse contente com isso, o que a motiva ainda mais em seu treino.
— Não venha com gracinhas agora — emendou Naomi de forma quase brusca, tentando mudar de assunto. — Concordo que voltar vai ser bom, não aguento mais ficar parada.
— E eu nunca vi Will tão feliz nos dias que você passou aqui conosco! — brincou Murilo que já estava para voltar a seus exercícios.
— Preciso concordar com ele, querida — pontuou Susan com um sorriso materno. — Aquele velho rabugento chegou a comer lentilha com todos na mesa nos últimos tempos.
Antes que Naomi conseguisse responder qualquer coisa alguém gritou por detrás dos muros que aviam novos tecidos verdes e azuis à venda, o comércio da Cova Trinta e Quatro estava prestes a começar, e o preço estava bem tentador pensou a jovem, talvez compraria algum mais tarde. Junto ao som fervilhante de pessoas uma nova saraivada de obscenidades explodia na direção que Will estava, mas desta vez era claro que ele tinha conseguido achar o que procurava.
— Então ele finalmente achou — constatou Susan. — Se prepare Naomi, você vai gostar.
Contendo a empolgação a jovem somente concorda com a cabeça, enquanto ouvia os passos apressados de Will vindo em direção ao campo de treinamento. A porta de madeira se abre violentamente dando espaço para o Corvo passar com algo nos braços.
Will era baixo e calvo, com uma barba bem cuidada, seus braços e peito eram extremamente musculosos pelo tipo de trabalho que fazia no Ninho, mas conseguiu ainda assim criar uma barriga de destilado. Um sorriso de satisfação cortava a face dele, atravessou a distância entre a porta e a Corva em poucas passadas de suas pernas curtas.
— Desculpe a demora — falou sem um pingo de arrependimento na voz. — Passei até altas horas fazendo alguns retoques que julguei serem necessários. Mas enfim está pronta.
Sem perder mais tempo Will estende para Naomi o embrulho, um pacote feito de papel marrom que fora enrolado para proteger seu conteúdo, a excitação no rosto do homem era contagiante fazendo com que todas as atenções do local estivessem no pacote.
— Cuidado — sussurrou Will antes que a outra pegou o embrulho em seus braços. — É pesado.
Concordando com um aceno a jovem pega o que o outro levava consigo, e sentiu no mesmo momento o peso, devia ter facilmente dez quilos, o que era impressionante para algo tão pequeno. Aninhando em um dos braços, Naomi rasga o papel revelando a todos o que era.
Algo semelhante a escamas de cobra se amontoava em um pequeno bolo, diante daquilo Naomi não conseguiu esconder o sorriso de satisfação, com movimentos ágeis revelou pôr fim do que se tratava, uma camiseta de mangas compridas completamente revestida por fora com as escamasse abriu diante dela que segurou a gola com ambos os braços esticados para ver melhor. Na ponta de cada manga algo semelhante a uma luva feita de couro tingido de preto se encontrava, a única diferença para uma luva convencional, além de ser costurada diretamente na camisa era o fato de deixar os dedos desprotegidos.
— Incrível — falou Naomi sem tirar os olhos da camiseta.
— Nem me fale — comentou Will com orgulho de seu trabalho. — Sei que você me pediu uma cota de malha, então usei um raciocínio igual ao daquela que me trouxeram.
— Da Irmãzinha — falou Naomi, que teve uma lembrança desagradável dos acontecimentos de um ano e meio atrás, mas a armadura e roupas dela eram incríveis pois foram construídas para ela, e foi o que pediu para Will.
— Exatamente — concordou Will. — Mas o peso daquela que essa tal de Irmãzinha usava era insano, por isso diminui bastante o da sua, infelizmente não consegui deixar mais leve que isto — resmungou demonstrando pela primeira vez insatisfação com algo de seu trabalho. — Mas como está bem dividido creio que não vai ter problemas quando se acostumar.
— Por que escamas? — indagou Murilo se metendo na conversa.
— Além de diminuir o peso, faz muito menos barulho, e cada escama foi costurada na camisa de couro.
Ignorando o corpo ainda úmido de suor, Naomi colocou a camiseta, sentindo um pouco de dificuldades por causa do peso inicialmente, mas assim que passou a cabeça, colocar seus braços não foi um problema. Era um pouco quente, e sentia seu corpo mais pesado, se mexeu um pouco e realmente não escutou nenhum som, o que fez um sorriso nascer em seu rosto. Passou a mão por dentro das luvas, que se adaptaram perfeitamente, se mexeu novamente sentindo um estranho peso atrás do pescoço, a fazendo levantar a mão na mesma hora para saber o que era, seus dedos encontraram um pequeno emaranhado de escamas.
— Isso foi algo que coloquei de última hora — confessou Will. — Um gorro.
Meio confusa, Naomi coloca o gorro que descia até quase o fim de seu nariz, sendo possível ver por causa de buracos feitos com couro à volta de seus olhos. Roçou o dedo em algo áspero perto da sua bochecha direita, ligando os pontos por fim. Um pedaço de couro balançava na sua fase esquerda onde um pedaço de velcro fora colocado na ponta, passou o tecido por debaixo do queixo o grudando, fazendo assim a toca ficar igual a uma máscara.
— Incrível Will — elogiou Naomi diante da engenhosidade do Corvo — Assim vou estar protegida de eventuais ataques surpresas — e novas cicatrizes, mas resolveu não comentar isso.
— E para finalizar — falou Will quase explodindo de tanto orgulho. — O outro lado bom das escamas é o seguinte.
Pegando uma faca presa na cintura, Will desferiu um golpe de cima para baixo fazendo a ponta afiada da lâmina escorregar inofensiva pelas escamas.
— Um ataque para ser realmente letal precisa ser feito com força, muita força ou uma arma bem maior que uma faca, e se for ao contrário.
Fez novamente o ataque fazendo sua lâmina subir em vez de descer, a fazendo ficar presa por um momento nas escamas. Novamente um sorriso de satisfação.
— Muitos ataques vão ficar presos por alguns instantes, o que dá tempo o suficiente para você dar um jeito no inimigo.
— Poderia ter me avisado antes — disse Naomi um pouco pálida pelo golpe repentino.
— Foi para você ver que mesmo assim, a sua proteção está garantida. E então o que achou?
Naomi se mexe mais algumas vezes se acostumando com o peso extra agora carregado por si, conseguia ver tudo perfeitamente pelas aberturas estratégicas no capuz, e sem perder tempo impunha novamente sua arma, voltando para o local onde mais cedo treinava sobre o olhar de Susan. Segurando o punho de sua katana com ambas as mãos, sentindo a aderência do material contra seus dedos desnudos, começa a traçar movimentos e fintas que aprendeu com seu mestre. O peso extra a fazia gastar suas forças mais rápido, quando fez um semicírculo usando a força de uma estocada emendo o movimento foi que entendeu uma vantagem, o peso a mais fez seu golpe ser mais rápido e forte, ela só precisava aprender a usar isso em sua vantagem. Fez mais alguns movimentos, que usavam rodar o corpo e deslizar pelo chão arrastando os pés, sentia que pingava de suor, mesmo assim continuou até chegar em seu limite. Parou respirando fundo enquanto sentia alguns músculos tremendo, de canto de olhos viu Will a olhando com expectativas.
— Acredito que vai servir perfeitamente — falou a Corva indo pegar a bainha de sua arma, que deixou mais cedo encostada contra o muro em direção à rua. Colocou sua arma de volta na proteção. — Quando me acostumar vou poder usar isto a meu favor, muito obrigada Will.
Murilo fica ao lado da colega, e aperta o braço da cota de malha perdido em pensamentos.
— O que foi?
— Tem certeza? — perguntou o rapaz.
— Depois das coisas que eu vi e passei em minha última missão, posso te garantir, eu tenho — e com um sorriso astuto emenda. — Por quê? Você acha que não aguenta?
— Naomi — falou Murilo com um olhar cansado. — Não, desta vez você venceu.
O sol começava a aparecer por cima do muro, fazendo alguns feixes de luz iluminarem alguns dos aparelhos de ginástica, e todos no Ninho sabiam que nas próximas horas tais aparelhos ficariam impossíveis de se usar por causa da temperatura que eles teriam, novamente a porta se escancara para o salão principal do Ninho, e vários Corvos entram no lugar para aproveitar o momento antes de ser impossível de se usar qualquer um deles. Mas todos paravam o olhar em Naomi por um momento, afinal ela estava de cota de malha e um minishort.
— Melhor eu ir — anunciou Naomi sentindo os olhares curiosos. — Obrigada novamente Will, vou usar até me acostumar, e preciso urgentemente de um banho, a, mais tarde deixo minha arma com você, ela precisa de fio.
O velho somente concordou satisfeito com o trabalho bem-feito, vendo a jovem adentrar o Ninho deixando um bando de curiosos para trás, Susan se aproxima do velho lentamente cochichando baixo o suficiente para somente ele escutar.
— Não precisava de todo esse escarcéu por causa de uma cota de malha.
— Precisava explicar tudo para ela, das vantagens de usá-la.
— Will querido — falou Susan contendo o riso, mas um pensamento veio em sua mente. — Ela estava parecendo uma serpente.
— Uma serpente não — corrigiu Will um pouco indignado. — Víbora. Uma víbora negra.
— Víbora negra — murmurou Murilo que escutou por estar perto o bastante.
Se distanciou da dupla de Corvos velhos indo em direção aos outros que estavam no jardim de treino, queria perguntar o que eles achavam do nome que pensou para a Corva.
Sabendo do alvoroço que estava causando Naomi, passa o mais rápido possível pelo salão do Ninho, um local onde diversas mesas redondas estavam espalhadas e alguns Corvos conversavam ou voltavam de alguma missão ou ronda. Uma grande porta à frente de Naomi dava diretamente para a rua da Cova, e à direita de onde estava um pequeno quarto onde Vicente, o responsável pela comida, estava procurando algo pelo som de panelas e talheres.
— Onde eu enfiei a farinha!! — urrou o cozinheiro.
A passos largos Naomi atravessa o centro do corredor indo em direção a uma escada de madeira em formato espiral, diferente da construção que era uma antiga mansão da época dos Antigos, os remendos eram feitos com madeira ou argila, às vezes barro dependendo da situação. Rangendo sobre seus pés ágeis, a escada aguentou o peso da jovem, que adentrou no corredor dos quartos, onde tinha como primeiro aposento o local em que ficava Jonas, o líder do Ninho. Em geral esta porta sempre ficava entreaberta, somente se fechando quando ou ele estava dormindo, ou estava em alguma reunião. E Naomi se lembra da cara do líder dos Corvos na noite anterior quando recebeu uma estranha mensagem repentinamente. Alguma coisa estava errada. Quando não estava.
Entrou em seu quarto, que ficava entre dois outros sem dono, pois nunca voltaram de uma missão, e tratou de tirar a camisa, fazendo algum esforço conseguiu tirar o pano que caiu pesadamente no chão, por pura sorte não acertou o pé de Naomi. Ela se sentou no colchão duro rindo, quase quebrou o pé com sua própria cota de malha, nunca mais iria conseguir encarar ninguém se isso acontece-se. Com cuidado pega seu novo pertence no chão o depositando sobre sua cama, junto da katana. Reunindo coragem se despe para tomar banho, quando se dá conta que esqueceu sua toalha na sala de treinamento. Irritada pega a de Gabriel, que, Naomi acreditou que não iria se importar, afinal já fizeram de tudo juntos, usar uma toalha seria o de menos.
O cubículo que ficava o chuveiro tinha espaço para somente uma única pessoa, tendo somente o chuveiro e ao lado da porta um gancho que prende a toalha. Enquanto a água quente caía sobre sua cabeça, Naomi lembrou dos acontecimentos, na morte dos amigos no corredor para Irmãzinha, para o túnel cheio de aranhas, e sua luta desesperada para escapar do mesmo e lidar com a emboscada no meio do deserto pelos Nômades.
E mesmo após tanto tempo dos ocorridos, a pessoa por detrás da S.L nunca foi pega ou descoberta, e pela reação de Jonas estava claro que era alguém poderoso, mas o porquê de alguém fazer uma droga tão maligna ainda era um mistério para Naomi. E claro ela não podia esquecer de Livya, uma novata dos Corvos que fez parte do incidente S.L que era como estava sendo chamada. O trauma da jovem foi realmente alto, e foi preciso ela ser mandada para o Bunker, onde estava sendo tratada a mais de um ano.
Encheu a boca de água fazendo bolhas por alguns instantes, Naomi desliga o chuveiro cuspindo a água na parede logo em seguida. Ela constatou que o lado ruim de ter o cabelo um pouco maior era que para enxugá-lo precisava um pouco mais de esforço, nua com a toalha envolta dos cabelos, a jovem pega suas roupas no guarda-roupa, que tirando a cama era o único móvel do quarto. Calças cumpridas, mas flexíveis, uma camisa, e uma camiseta de manga cumprida, mas fina para não esquentar muito.
Sem esforço, colocou a calça e se sentou na cama enquanto prendia seu top, não queria nem imaginar a sensação ruim que seria seus seios raspando no tecido de couro, enfim colocou sua cota. Não era necessário, mas precisava se acostumar com ela o quanto antes, na sequência a camiseta comprida para esconder as escamas, e a outra por cima para tentar disfarçar as pontas em alguns lugares.
— Acho que não ficou ruim — comentou consigo mesma.
Com uma das mãos pegou seu coturno que estava escondido debaixo da cama, e com a outra colocou sua katana no canto entre a parede e o pé do móvel. Vestiu rapidamente o sapato, e precisou abaixar mais uma vez para pegar uma faca que prendeu em sua cintura.
Retirando a toalha dos cabelos ainda um pouco húmidos a colocando no gancho no banheiro para deixar a mesma secando, a Corva adentra o corredor sentindo os ombros um pouco pesados. Tinha em mente dois objetivos, o primeiro era comprar o tecido que ouviu falar mais cedo, mesmo não podendo usar nada diferente de preto, pelo menos daria um lençol bom para a cama, o que usava já estava muito surrado, e ir ver Aldrey para dar as boas novas que ela estava livre para uma nova missão.
Desceu as escadas a passos largos percebendo que o salão estava mais cheio do que antes.
— Ei! — exclamou alguém.
Naomi inicialmente deu pouca importância, afinal tinha vários membros dos Corvos esparramados pelas mesas comendo ou tomando algum destilado. Mas novamente a pessoa gritou.
— Ei! Víbora Negra!
Estancando na escada Naomi se virou e levantou sua mão ao cabo da arma quase que instintivamente, afinal tal cobra peçonhenta era um perigo considerável.
— Ah! A Naomi que é essa tal de Víbora Negra! — falou Vicente com somente um pedaço da cabeça para fora da cozinha.
— Sim — respondeu o que falou antes, um dos que estavam com Murilo mais cedo no pátio de treino.
— Naomi! — falou um terceiro que estava sentado em uma das mesas. — De onde veio esse apelido?
Perdida no meio das perguntas que começaram a bombardear por todos os lados a jovem somente teve tempo de fazer uma careta confusa.
— Que?
— Sua alcunha! — falou novamente o mesmo que conversava com Vicente.
— Alcunha? — indagou uma voz no sopé da escada.
Todos se viraram para a origem da pergunta, um Corvo com grandes olheiras e claramente que não dormia fazia muitos dias, descia os degraus, Jonas o líder dos Corvos da Cova Trinta e Quatro. Novamente ele perguntou.
— Como assim alcunha?
— Isso é normal, senhor! — respondeu Will que apareceu repentinamente no salão. — Os Corvos que se destacam recebem um nome, e acredito realmente que Naomi merece uma alcunha após o incidente S.L.
— Entendo, só não sei o porquê da Víbora Negra?
Conseguindo recobrar o controle, Naomi se esgueira até a porta de saída, descendo para a rua movimentada ignorando a conversa que acontecia logo atrás de si. Um pouco perturbada com que acabou de acontecer a jovem coloca os pensamentos no lugar, não conseguia entender o porquê de uma alcunha do nada, para um Corvo uma alcunha era um status que os diferenciava dos demais, desde por habilidades únicas, ou ter feito algo realmente grande na organização, como a história do Senhor do Fogo, um Corvo que viveu a duzentos anos que usou bombas, incêndios controlados e coquetéis molotov para controlar um grupo de bandidos que pretendiam invadir a Cova que ele vivia, matando assim boa parte dos criminosos queimados. Mas ela não se via como alguém que havia feito algo grande, claro participou do incidente S.L, mas mesmo assim não estava sozinha durante o ocorrido. Ficou com um pouco de raiva de Will quando percebeu que ele fez aquela cota de malha já pensando nisso, ia ter uma conversa séria com o velho depois.
Espantando isso de sua cabeça, ela adentra as nas ruas de terra batida, seguindo o fluxo das pessoas, que por sua vez já cuidavam de seus afazeres diários, o fluxo de corpos seguia em todas as direções, mas era claro que deles era o maior e mais constante, aquele que ia para o centro comercial da cidade.
Naomi passa por casas e vestimentas de todas as cores, exceto preto uma cor voltada para os Corvos, e por isso era fácil os identificar. Uma carroça levando um carregamento de batatas avia quebrado a poucos metros à frente, fazendo um de seus condutores ficar em cima junto a carga segurando um pedaço de madeira, esperto com mãos bobas.
Um Corvo estava perto da carroça taciturno em um canto observando a multidão, e todos sabiam que se fossem pegos roubando por um Corvo teria sua mão quebrada. Naomi em sua época de rua nunca foi pega, mas em compensação já teve um nariz quebrado e algumas costelas trincadas.
Passou ao lado da carroça fazendo um leve aceno para o companheiro, que a respondeu com uma piscadela. Os populares não gostavam nenhum pouco do grupo armado, o que era completamente compreensível pensava Naomi, além de serem pessoas com treinamento para matar, não faziam prisioneiros como os Antigos, que tinham grandes áreas para manter tais pessoas, não tinha como isso acontecer ponderou Naomi, tudo era muito escasso.
Gritos de produtos e vendedores pechinchando arduamente com algum cliente se chocaram contra Naomi que por fim estava onde desejava. O mercado principal da Cova não passava de uma grande feira a campo aberto, onde barracas colocadas de formas desorganizadas tentavam ocupar o máximo de lugar possível, e fazendo de tudo para chamar a atenção para seus produtos: de pessoas aos berros até mesmo alguém fazendo malabarismos com frutas, alguns chegavam a usar o mínimo de roupa possível para chamar a atenção a aquilo que pretendia vender.
Naomi passou por alguns pedintes que esticavam as mãos esqueléticas e olhos esbugalhados em direção às pessoas que iam comprar algo, atrás de alguma moeda, mas eram ignorados com veemência pelo fluxo, que simplesmente passava por cima destas pessoas como se não passassem de vento ou no máximo algum toco do qual precisava desviar.
— Como assim!? — brandou um senhor diante uma mulher que dava facilmente três dele. — Esta carne de lagarto custa duas moedas?
— Este é o preço! — as veias chegavam a estufar no pescoço roliço da vendedora. — Se não quiser pode ir embora!
— Vi esta mesma carne por uma moeda! Vocês estão tentando nos roubar!
— Impossível achar esta carne por menos — a mulher estava prestes a socar o senhor, pelo menos era aquilo que parecia.
— Se continuarem com este absurdo vou chamar os Corvos para darem um jeito nesse absurdo!
— Agora não consegue mais resolver os problemas sozinho?
O senhor acabou levando a carne por uma moeda, a dona da banca não parecia nenhum pouco abalada pois claramente aquela era sua intenção, lagartos eram mais comuns que galinhas naquelas terras áridas. E Naomi sabia muito bem que nenhum Corvo iria se envolver em algo tão trivial quanto aquilo, foi somente uma ameaça do velho.
Infelizmente a jovem parte em direção ao bar de Aldrey após uma procura inútil atrás da vendedora de tecidos, e pelo preço que estava cobrando não duvidava que ela já estava em casa contando seu lucro.
O bar ficava na posição afastada do centro, obrigando assim Naomi a pegar novamente um fluxo de pessoas, mas logo estava longe o suficiente para não reconhecer os sons e cheiros habituais do lugar. O carrinho com batatas que antes estava quebrado já havia sumido, junto a sua preciosa carga e seu guardião com seu terrível pedaço de pau.
Vez ou outra via algum Corvo fazendo alguma ronda, o que era normal para os novatos, seguiu pela rua lateral que estava menos cheia, e conseguindo andar melhor, sem estar se sentindo achatada, mesmo que ela sendo um Corvo e as pessoas quisessem manter alguma distância. E ficar sempre atenta com sua bolsa de moedas era cansativa. Chegando aonde desejava não muito depois. Entrou no modesto estabelecimento de sua amiga, onde dois homens jogavam cartas em umas das poucas mesas. O lugar não passava de um longo balcão onde as bebidas ficavam dispostas, e duas mesas uma de cada lado da pequena sala. Aldrey estava sentada logo atrás do balcão, apoiando o rosto em uma das mãos enquanto observava a dupla jogar.
— Eu sei o porquê dessa cara! — comentou Naomi ficando logo à frente de sua amiga.
— Duvido que saiba! — instigou Aldrey somente virando os olhos em direção à recém-chegada.
— Deixe-me pensar — fingiu Naomi. O tempo que passou em descanso mudou um pouco, para uma pessoa mais social, pelo menos era o que diziam. — Está precisando de uma parceira de copo!
— Acertou em cheio! — disse Aldrey já pegando dois copos passando uma para a outra. — O que vai ser hoje?
— Algo forte! Estou comemorando!
— O que? — indagou Aldrey com uma cara engraçada, enquanto procurava algo entre as garrafas.
— O Gabriel finalmente vai voltar, e posso voltar a fazer missões, enfim!
— Então aquela "coisa" vai enfim dar o ar da graça! — disse a dona do estabelecimento enquanto puxava uma garrafa amarela. — E ter você de volta às ruas é um alívio, aqui deixa eu encher seu copo.
— Que bebida é esta?
— Destilado de laranja com um pouco de pimenta — vendo a cara de horror da cliente complementa. — Beba antes de falar qualquer coisa.
De má vontade, Naomi segue o conselho da colega, e então compreende. O álcool é tão forte que tem gosto somente dele, fazendo todos os outros sabores sumirem, quase riu vendo a cara de Aldrey.
— Isso — entoou Aldrey — É basicamente álcool amarelo! Quer mais?
Respirando fundo Naomi virá de uma única vez o conteúdo do copo sentindo a bebida queimar em sua gengiva e consequentemente garganta, estava com a boca praticamente desinfetada. Fazendo caretas pelo gosto forte do destilado, ela estica a mão em direção a colega que segurava a garrafa amarela um pouco curvada. Novamente virou de uma única vez, e novamente seu copo foi enchido. Os homens que jogavam na mesa ao lado subitamente gritaram um com o outro, deixando Naomi que ainda se recuperava da bebida em alerta, mas notou que Aldrey pouco se importou com o ocorrido. Percebendo que um deles havia vencido no que, quer, que estivessem jogando.
— Então finalmente Gabriel vai voltar — comentou Aldrey enquanto observava um dos seus clientes embaralhar novamente as cartas. — Faz quantos meses que ele saiu?
— Dois meses — mentiu, não ia falar que já fazia quatro meses, iria parecer uma donzela apaixonada. Podia estar começando a ficar alterada por causa do álcool, mas não cometeria uma gafe dessa.
— Nossa! — exclamou Aldrey bebendo logo em seguida metade do conteúdo de seu sem fazer nenhuma careta. — Foi mandado para algo tão perigoso assim?
— Quando, não é? — indagou Naomi vendo a colega concordar com a cabeça, e então continuou. — Infiltração, é normal demorar. Aconteceu de ele passar seis meses em uma destas a alguns anos.
— Amiga — começou Aldrey fazendo um olhar solidário, enchendo o copo da outra. — Esta dose é por conta da casa, afinal de contas você deve estar precisando. — Um olhar lascivo substituiu o de antes.
Naomi sentiu as orelhas ficarem vermelhas, e não foi por causa do álcool. Novamente a mesa a seu lado rompe em gritos que se misturam com as risadas exageradas de Aldrey que quase derruba a garrafa em suas mãos. Os dois pararam de jogar para ver a estranha cena de alguém caçoando um Corvo, não era uma imagem comum, provavelmente quando contassem para ninguém iria acreditar falando que estavam bêbados.
— Sabe de uma coisa, Naomi. — Afirmou Aldrey que avia conseguido se recuperar da crise de riso escandalosa. — Você está diferente.
— Oi?
— Como posso dizer isto? — enchendo ambos os copos enquanto pensava a mulher fórmula o que pretendia dizer, o álcool realmente estava começando a bater. — Mais feliz, muito menos carrancuda e séria, esse tempo fora da ativa te fez bem.
A Corva se sentiu chocada por um momento diante do comentário da colega, percebeu que as pessoas estavam agindo diferente com ela, ficar um pouco longe da podridão do mundo teve um ótimo preço.
— Quem está diferente? — perguntou uma voz conhecida vindo de trás de Naomi.
Antes mesmo que conseguisse se virar, a pessoa ficou do seu lado no balcão. Naomi teve que conter um riso que nem mesmo ela sabia o porquê brotou em seus lábios. Gabriel estava ali com a cara de quem não dormia fazia pelo menos alguns dias, estava mais magra, mas tirando esse detalhe não havia mudado em nada nos últimos meses. Naomi num rompante agarra o parceiro dando nele um longo abraço, estava um pouco azedo de suor, e empoeirado pela viagem, mas não se importou. Novamente os homens que estavam jogando pararam o que estavam fazendo para observar a bizarra cena de afeto entre os Corvos. se contassem iriam falar que beberam em excesso.
— O que eu perdi? — indagou Gabriel assim que sua parceira se distanciou dele.
— Essa senhorita aqui! — comentou Aldrey gesticulando com o copo para Naomi. — Está parecendo uma donzela apaixonada.
— Não estou! — exclamou Naomi ficando com as pontas das orelhas ainda mais vermelhas do que antes.
— Realmente. — Foi a vez do Gabriel fazer seu comentário. — Você está diferente.
Se sentindo constrangida pela situação, e sendo o alvo das atenções dos outros clientes que pareciam ter esquecido totalmente do que jogavam para prestar atenção no que ocorria, Naomi virou o copo em um único gole, não sentindo nada desta vez.
— Como você me achou? — questionou Naomi abaixando o copo de uma única vez, tentando mudar de assunto.
— Você não é uma pessoa muito difícil de se encontrar. — Pontuou Gabriel, que teve um aceno de Aldrey concordando. — Ou está no salão de treino, ou na feira, ou bebendo aqui.
Aquela informação certeira deixou Naomi um pouco perturbada, saber que você é uma pessoa previsível a deixou magoada.
— Aqui foi sua primeira opção? — brincou Aldrey com um sorriso travesso.
— Segunda.
— Campo de treino. — Afirmou Aldrey, sabendo a resposta.
— Campo de treino — Afirmou Gabriel.
— Os outros dois estão bem? — quis saber Naomi tentando mudar de assunto.
— Sim, tanto Otto quanto Wesley estão sim. Não precisa — recusou um copo da bebida.
— Vai querer sim — insistiu Aldrey.
— Adoro ser uma pessoa com muitas opções — brincou Gabriel pegando o copo que lhe fora oferecido. — Voltando ao assunto, ambos estão, devem estar relatando ao Jonas como foi.
Virando o líquido amarelo como se fosse água, abaixou o copo pedindo mais uma dose, e rapidamente foi servido, desta vez mais generosa do que antes. Naomi conhecia aquele olhar no rosto de seu companheiro, era o mesmo que ela tinha após fazer uma missão.
— Vou precisar dessa garrafa inteira — disse Gabriel a pegando de Aldrey. — Após cometer uma atrocidade, nada como beber sem parar.
— Pode levar — respondeu Aldrey, seria, segundo a afirmação de seu cliente. — E está com cara de quem precisa descansar.
— Você não faz ideia — disse Gabriel se levantando de má vontade.
— Mesmo que não ache que você vá descansar tão cedo assim — comentou Aldrey dando uma piscadela sugestiva para Naomi.
E pela terceira vez no mesmo dia as orelhas da Corva ficaram vermelhas.