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Além da queda

Era de madrugada. Eu estava na minha escrivaninha, com a lâmpada acesa, tentando encontrar ideias para a minha história. Escrever se revelava mais difícil do que eu pensava. O papel em branco parecia zombar de mim, enquanto eu rabiscava palavras que logo riscava. Meus olhos pesavam, mas eu não podia parar.

Acabei cochilando por alguns minutos, a cabeça caindo sobre o caderno. Quando acordei, o sol começava a nascer, tingindo o céu de tons alaranjados. O cansaço me envolvia como um cobertor pesado, mas me levantei e desci para tomar café.

Na cozinha, minha mãe estava preparando o café da manhã. Quando me viu, notou minhas olheiras imediatamente.

— Você andou ficando acordado até tarde, não é? — ela comentou, uma preocupação suave na voz.

Eu apenas assenti, ainda meio atordoado.

Meu pai estava à mesa, lendo o jornal. Tentei ignorar a presença dele, mas foi difícil. Minha mãe me entregou o almoço, perguntando sobre o festival desportivo que se aproximava.

— Você quer que a gente vá? — perguntou, com Hana parecendo interessada.

Minha irmã Hana parecia ansiosa com a ideia, mas a ideia de ter minha família na plateia me enchia de vergonha por algum motivo.

— Não precisa, mãe. É só um festival escolar — respondi, olhando para o chão.

Meu pai abaixou o jornal e olhou para mim.

— Você anda dormindo até tarde porque está escrevendo, não é? — perguntou, pegando-me de surpresa.

Respondi hesitante:

— Sim...

— Está tudo bem. Eu também costumava escrever — disse ele, com um sorriso nostálgico.

Eu fiquei visivelmente surpreso. Não esperava que meu pai tivesse interesse por escrita no passado. Isso me fez sentir uma conexão inesperada com ele.

Na escola, o festival desportivo já estava para começar, transformando o campo em um turbilhão de cores e sons. O ar estava repleto de gritos e aplausos vindos das bancadas lotadas, onde os pais acenavam com bandeirinhas e os colegas torciam com entusiasmo.

Os corredores masculinos se preparavam, ajustando suas faixas de cabeça e alongando os músculos. Eu estava com Seiji e Rintarou, e outros colegas de classe, todos eles ansiosos e energizados pelo ambiente vibrante. As risadas e conversas animadas ao nosso redor criavam uma atmosfera eletrizante, menos para mim.

— A equipe vermelha vai vencer este ano! — disse Seiji animado, amarrando uma faixa vermelha na cabeça.

Aiko se aproximou, sorrindo.

— Na verdade, o time azul vai ganhar — disse ela.

— Ei, qual é gente, todos sabem que na verdade o time amarelo vai ganhar — disse Akira rindo, se aproximando deles

Seiji deu uma risada e olhou para Akira.

— Está se achando só porque ganhou de mim naquela corrida na piscina, né? — ele provocou. — Mas hoje vou te mostrar o que é velocidade de verdade!

Akira respondeu com um sorriso desafiador.

— Hoje é o dia decisivo. Vamos ver quem realmente manda!

Aiko observava os dois com um sorriso divertido, enquanto o clima de competição crescia entre eles.

— Espero que vocês tenham guardado energia, porque essa disputa vai ser épica! — disse ela, incentivando ainda mais a rivalidade amigável.

Enquanto eles estavam animados, eu estava totalmente sem energia. Acabei por soltar um bocejo, que Rintarou logo notou e perguntou:

— Você ficou jogando até tarde de novo, Shin?

Balancei a cabeça.

— Não, estive escrevendo. Aquela história que vocês leram, sabe?

Rintarou suspirou e colocou uma mão no meu ombro, apertando levemente. Seus olhos refletiam uma preocupação que suas palavras tentavam minimizar.

— Oh, entendo. Mas você não precisa se forçar tanto, Shin. É só a sua primeira história, não precisa ser perfeita — disse Rintarou, claramente preocupado mesmo que sua cara não mostrasse isso.

— Eu sei mas eu quero ganhar o prêmio do concurso — respondi, determinado.

— Concurso? que concurso? — perguntou Rintarou, surpreso.

— Um concurso de escrita para novatos. Minha história é boa, tenho certeza que vou ganhar.

Seiji ouviu o que eu disse e junto com Rintarou, eles ficaram surpresos. Eles pediram para ler novamente a história, mas eu recusei, envergonhado.

— Qual é? Deixa a gente ler — disse Seiji, rindo e fazendo cócegas em mim.

— Ei, para com isso! — respondi, rindo também.

A chamada para as corredoras dos 200 metros foi anunciada. A torcida gritava em apoio. Observei a pista e vi Yuki. Ela parecia tão linda, especialmente com o seu cabelo amarrado. 

— Em suas marcas... preparar... vai!

Elas começaram a correr. Yuki liderava, correndo tão rápido e graciosamente que meu coração bateu mais forte. Ela conseguiu ganhar a corrida com tanta facilidade que não pude deixar de ficar admirado.

Seiji então percebeu meu olhar fixo nela.

— Se continuar olhando assim, ela vai perceber que você gosta dela — disse ele, rindo.

— Tá falando sério? — perguntei, tocando o rosto, tentando mudar minha expressão.

Fiquei envergonhado e saí dali, dizendo que ia cuidar dos equipamentos para a próxima modalidade. Enquanto arrumava a corda para o cabo de guerra, vi Kazuki conversando com Yuki.

— Me compra uma bebida se o time azul ganhar — disse ele.

— Hã? Sem chance — respondeu Yuki, sorrindo.

— Pode ser uma água então.

— Você está bem confiante de que vai ganhar, Kazuki — disse ela, rindo.

— É claro, não tem como eu perder essa corrida — respondeu ele

— Então, se o seu time ganhar, eu compro um suco para você — disse ela, aceitando a aposta com um sorriso.

Eu observei a cena de longe, sentindo uma pontada de inveja e tristeza. Por que eu não conseguia falar com Yuki com a mesma facilidade que Kazuki? Parecia que, para ele, tudo era tão natural. Eles riam juntos, compartilhando momentos que eu só podia imaginar. Cada sorriso de Yuki para Kazuki era como uma agulha perfurando minha autoconfiança.

Meus pensamentos começaram a girar. "O que há de errado comigo?" perguntei-me. "Por que minhas palavras sempre parecem se enrolar e me trair quando tento falar com ela?" Lembrei-me de todas as vezes que tentei iniciar uma conversa e falhei miseravelmente. Minhas mãos suavam, minha garganta secava e tudo o que eu conseguia fazer era gaguejar.

Eu também queria ser parte daquele mundo, compartilhar risadas e conversas despreocupadas. Mas, ao invés disso, me via preso em um ciclo de insegurança e silêncio. A escrita era o único lugar onde eu podia expressar meus pensamentos e sentimentos sem medo de julgamento. Porém, no mundo real, diante de Yuki, eu era apenas alguém tímido e desajeitado.

Eles continuavam conversando, e eu voltei a focar na corda, tentando afastar os pensamentos negativos. A inveja queimava em meu peito, misturada com um sentimento de inadequação que eu não conseguia superar. Sentia-me sozinho, mesmo cercado por amigos, e aquela cena só tornava tudo mais evidente.

Voltei para junto de Seiji, Rintarou e a turma, cabisbaixo

O cabo de guerra começou. Estava acirrado, com gritos de "Vamos, puxem com mais força!" de um lado e "Não vamos perder!" do outro. O time vermelho acabou ganhando. Seiji fez uma careta para Aiko, que ficou nervosa.

Era então chegado a hora dos 200 metros masculinos. Fiquei nervoso. Eu nem queria competir, mas fui meio que forçado a me inscrever, eu tinha que participar em pelo menos uma atividade do festival.

— Sua vez chegou, Shin — disse Rintarou.

— Infelizmente, sim. Vou indo.

— Tente não tropeçar, Shin! — disse Seiji, rindo.

Enquanto caminhava até as posições dos corredores, lembrei-me da vez no fundamental em que tropecei no meu cadarço e caí, na frente de todos, durante a corrida de 100 metros. Foi uma memória vergonhosa que, por algum motivo, nunca consegui esquecer.

Chegando na marca, vi que Kazuki estava ao meu lado. Decidi levar a sério. Queria ganhar na frente dos meus amigos, colegas de classe e principalmente na frente da Yuki. Meu coração batia acelerado, como se quisesse sair do peito. Senti uma mistura de ansiedade e determinação.

— Em suas marcas... preparar... vai!

Todos começaram a correr. O chão tremia sob os meus pés enquanto eu me lançava para frente, tentando acompanhar o ritmo de Kazuki. A torcida vibrava ao nosso redor, mas o som parecia distante. Tudo o que eu conseguia ouvir era o som da minha própria respiração e os batimentos rápidos do meu coração.

Kazuki saiu na frente, suas pernas se movendo com uma precisão quase mecânica. Eu lutava para manter a velocidade, sentindo os músculos das pernas queimarem a cada passo. Olhei rapidamente para o lado e vi Seiji e Rintarou me apoiando com gritos encorajadores, mas a distância entre mim e Kazuki só aumentava.

Enquanto corria, fui ultrapassado por um corredor do time amarelo. Um nó de frustração se formou no meu estômago. Estava tão focado em tentar alcançar Kazuki que nem reparei que meu cadarço estava desamarrado. Pisei nele e, em um instante, meu corpo foi projetado para frente. O mundo parecia andar lentamente enquanto eu caía, o chão se aproximando cada vez mais.

"De novo não, essa vergonha outra vez não..." pensei. O impacto foi duro, mas a adrenalina não me deixou desistir. Levantei-me rapidamente, ignorando a dor que se espalhava pelo corpo, e continuei a correr. A torcida ao longe parecia em câmera lenta, mas os gritos de Seiji e Rintarou me puxavam de volta à realidade. Suas vozes eram um farol de apoio em meio à minha confusão.

Kazuki cruzou a linha de chegada em primeiro lugar, seguido pelo corredor do time amarelo. Mesmo assim, ainda consegui o terceiro lugar. Meu corpo estava exausto, mas uma pequena vitória interna me fez continuar de pé.

Kazuki apontou para Yuki e sorriu. As pessoas ao redor dela começaram a especular se eles estavam namorando. Fiquei com uma tristeza enorme ao ver a cena, e com uma tristeza ainda maior pela minha queda na frente dela e dos meus colegas. Caminhei até a enfermaria, olhando para baixo, evitando o olhar de todos. Cada passo parecia um peso adicional em meu coração.

Rintarou e Seiji vieram atrás de mim. Rintarou se aproximou, com uma expressão séria que logo se suavizou num pequeno sorriso encorajador. Ele deu um leve soco no meu ombro.

— Ei, Shin, não esquenta com isso. Você foi incrível lá fora.

Seiji, ao lado dele, soltou uma risada e deu um tapinha nas minhas costas, quase me fazendo perder o equilíbrio.

— É, todo mundo tropeça de vez em quando. Você ainda conseguiu o terceiro lugar! — disse ele, piscando um olho para mim.

Agradeci o apoio deles com um sorriso fraco e continuei meu caminho. Dirigi-me à enfermaria para desinfetar o joelho e colocar um curativo. Quando cheguei lá, para minha surpresa, encontrei Aiko.

Ela olhou para mim por um momento, pensativa, e então seu rosto se iluminou.

— Oh! Shin, certo? — perguntou ela, confirmando o meu nome.

— Ah, isso — respondi, meio surpreso que ela lembrasse.

— O que você veio fazer aqui? — perguntou ela

— Vim desinfetar e colocar um curativo — expliquei, mostrando o machucado.

Aiko sorriu gentilmente.

— Deixe-me ajudar com isso.

Sentei-me e deixei que ela cuidasse do meu ferimento. Enquanto ela me tratava, um silêncio confortável se instalou. Aiko era habilidosa e cuidadosa, o que me fez sentir um pouco menos constrangido com a situação.

No meio do silêncio, ela finalmente quebrou o gelo.

— Vi o que aconteceu na pista de corrida — disse ela, suavemente.

Fiquei com vergonha e virei a cabeça, tentando evitar seu olhar.

— Não se preocupe. Eu mesma já caí muitas vezes. Cair não é motivo de vergonha, mas não levantar e desistir é que é. 

Aquelas palavras me pegaram de surpresa. Aiko continuou, enquanto terminava de desinfetar o ferimento e aplicava o curativo.

— O que eu vi foi alguém que, mesmo após cair, teve a coragem de se levantar e continuar. Isso é algo para se orgulhar, Shin.

Ela terminou de tratar o meu joelho e sorriu para mim.

— Não pense que foi uma vergonha. Pelo contrário, foi uma demonstração de força. — disse ela, enquanto mostrava um grande sorriso no rosto.

Fiquei em silêncio por um momento, absorvendo suas palavras. Elas eram mais profundas do que eu esperava, e me fizeram sentir um pouco melhor sobre o que aconteceu.

— Obrigado, Aiko — disse, finalmente, levantando-me.

— De nada. E lembre-se, sempre que precisar, estou por aqui.

Nos despedimos e saí da enfermaria, ainda pensando no que ela disse. Suas palavras ecoaram na minha mente, oferecendo um consolo inesperado.

Na hora do almoço, quase todos estavam com suas famílias comendo. Eu estava sozinho porque pedi para a minha família não vir, então fui comer a marmita que a minha mãe preparou para mim. O cheiro da comida de minha mãe misturava-se com a gritaria e a agitação do festival, mas nada disso parecia me animar, mesmo com as palavras de consolo da Aiko e dos meus amigos.

Enquanto procurava um lugar para sentar, avistei Yuki à distância. Ela estava parada, olhando ao redor com uma expressão nervosa, segurando algo na mão. Não consegui ver o que era, e ela o apertava contra o peito, como se contivesse algo importante. O que poderia ser tão importante para deixá-la assim?

Quase instintivamente, dei alguns passos em sua direção, mas hesitei. A curiosidade lutava contra minha timidez. "Devo perguntar o que está acontecendo? Não, e se ela me achar intrometido?" pensei.

Ela olhou em minha direção por um breve momento, e senti um frio na barriga. Yuki parecia querer algo, mas estava tão perdida em seus pensamentos que não me viu. O mistério do objeto, que ela segurava, e seu comportamento inquieto me corroeram por dentro, enchendo minha mente de perguntas sem resposta.

"O que será que a está preocupando tanto?" pensei, sentindo a curiosidade me corroer ainda mais. Esse mistério, combinado com a tensão do festival, me acompanhou pelo resto do dia, criando uma expectativa inquieta para o que viria a seguir. Mal sabia eu que aquela pergunta me levaria a descobertas inesperadas.