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Prólogo: Chuva Anômala

Mesmo com incontáveis palavras, não haveria como descrever o que havia acontecido. Ele desejava, de todo o coração, esquecer o que tinha se passado, para que sua alma pudesse encontrar algum descanso. Mas, mesmo se batesse sua cabeça com toda a força contra um muro espinhento, as memórias, restariam lá, afinal, isso deixaria uma cicatriz para relembrar.

O tempo passava com a violência de fortes chuvas e vendavais regulares, que pareciam querer varrer a cidade do mapa — esse clima já se arrastava por meses e, em dias e horários totalmente aleatórios.

Curiosamente, as pessoas da cidade não se preocupavam com a situação em que se encontravam. Nenhum acidente grave havia acontecido até o momento; ainda assim, era uma situação alarmante. Por sorte a cidade estava em um morro levemente elevado em relação ao mar, evitando alagamentos e deslizamentos.

Em um ônibus comum de características, transportava pessoas por essa chuva; certamente um motorista corajoso para dirigir sobre uma noite chuvosa. Um homem de aparência deprimente passava grande parte de seu tempo olhando pela janela, encarando as gotas atravessando vidro a baixo, o rosto completamente carregado de cansaço. Os pingos que escorriam pelo vidro refletiam a monotonia de sua existência.

"Mais uma vez, o ciclo se repetiu... O clima mais uma vez não vai me ajudar," pensou o homem, enquanto observava exausto as gotas que desciam lentamente.

— Mamãe, tá chuvendu di novu — dizia uma criança em pé apoiada na cadeira, ela ficava no assento do outro lado do homem.

— Cuidado, você vai se machucar! — informava a mãe preocupada com seu filho, agarrando sobre sua cintura.

— Oia mamãe, tamus pertu da vila! — exclamava a criança, alegando conseguir ver a vila sobre a chuva e a escuridão.

— Xi! Não chame a cidade de vila filho, eu já te falei, perto dos outros você chama a vila de cidade — alegava a mamãe, parecia haver uma razão para sua alegação.

Vendilhão Grande — assim se chamava sua vila. Uma vila que o prefeito, insistente forçava todos a chamarem de cidade, prometendo que um dia seria um grande centro urbano. Um tanto irônico, já que faz décadas que vinha dizendo isso.

Ricardo Gomes era o nome do homem cansado e deprimente. Aos 22 anos ainda solteiro e sem grandes perspectivas sobre o futuro, ele olhava para o mundo com olheiras que se estendiam além dos limites de seus pequenos olhos, evidenciando seu estado deplorável.

Tudo o que ele queria era que a chuva cessasse por um momento, acreditando que seu esgotamento emocional estivesse ligado àquele clima interminável, apenas por um instante, ele queria ver se isso era verdade. Ricardo tinha uma imaginação fértil, sempre criando cenários hipotéticos em sua mente, mas era uma triste ironia ver o quanto sua vida se distanciava dos sonhos que um dia havia cultivado.

Fisicamente, ele era magricelo, quase sem músculos — uma figura cansada e desprovida de ânimo. Não era o tipo de pessoa que se olhava no espelho com frequência, e talvez por isso se detestasse tanto. Afinal, tudo o que ele buscara na vida havia dado errado. Carreira, estudos, esportes, doutorados... Todos os seus esforços culminaram em um simples emprego como caixa de supermercado. (Sem desmerecer, é claro, o trabalho de caixa que é valioso e importante para a sociedade. Admiro quem se dedica a isso.)

Para Ricardo, era uma amarga constatação de que todo o seu empenho parecia não ter valido nada. Pondo que criaria o próprio negócio e afundaria aquele supermercado sobre a chuva, mas novamente seus sonhos eram muito distantes da realidade, embora tivesse condição de arcar com um negócio próprio, a sua sensação de inferioridade já bateria em sua porta dizendo para voltar de onde veio.

Apoiando-se mais firmemente na barra de ferro do ônibus em que estava, Ricardo implorava mentalmente para qualquer Deus que pudesse ouvi-lo: "Faça essa chuva ir embora... E me traga um copo de café com leite." Talvez, assim, sua mente pudesse finalmente se acalmar.

"Shiss!!!". O som do ônibus freando subitamente ecoou por entre todos. O impacto foi forte o suficiente para desestabilizar vários dos passageiros, é claro que Ricardo não ficaria de fora, todos gritaram e foram sacudidos para trás. Ele se viu forçado a fechar seus olhos por receio e medo, mas por instinto agarrou com mais firmeza a barra que já segurava. Era como se ele subitamente soubesse que algo estava prestes a acontecer.

Quando o ônibus finalmente parou, a chuva, que antes estava apenas turbulenta, agora parecia pedras caindo sobre o teto, amplificando o caos. O motorista segurava a própria cabeça com as mãos, claramente em dor e frustração.

— Mas que droga! Por que essa merda tinha que acontecer logo comigo?! — gritou o motorista, levantando-se e caminhando em direção à porta do ônibus.

— O que aconteceu? Um animal na estrada? — perguntou um passageiro em dúvida.

— Espero que não tenha furado os pneus! — outro passageiro resmungou indignado.

— Será que ele bebeu de novo? — alguém murmurou, insinuando que conhecia os hábitos do motorista.

Ricardo, ainda desorientado, abriu os olhos depois dos gritos e olhou ao redor. Os passageiros estavam todos inteiros, alguns jogados no chão, outros tortos nas poltronas. Por sorte, o ônibus estava quase vazio. Ricardo pensou que, com aquela chuva, quem em sã consciência sairia de casa? Mas ele sabia que o trabalho o chamava, e mesmo nas piores condições, a empresa insistia que seus funcionários cumprissem seu papel. "Irresponsáveis," pensou ele, irritado.

Com todos aparentemente bem, embora revoltados com o acidente, Ricardo começou a se perguntar o que exatamente tinha acontecido. Diversas hipóteses passavam por sua mente enquanto caminhava até a frente do ônibus. Talvez tivesse sido um acidente com outro veículo? Carro, moto... Ou, pior ainda, com uma pessoa. Ele temia o pior — não queria ver alguém atropelado no primeiro dia da semana de trabalho.

"O que não me mata, me fortalece." A famosa frase de Nietzsche ecoou em sua mente. Embora ele a tivesse visto em um meme no celular, sabia que a mensagem era verdadeira. Se ele fugisse agora, estaria condenado a fraquejar sempre que enfrentasse algo parecido.

Chegando à frente do ônibus, respirou profundamente. Através do vidro molhado, ele conseguiu ver algo, embora ainda embaçado. Levantou sua maleta preta instintivamente, bloqueando a visão, como se tentasse se proteger do que quer que estivesse lá fora.

"Não sou um herói da vida nem um homem muito vivido! Isso já é demais para mim!" pensou Ricardo, tentando provar sua coragem, mas falhando imediatamente.

Seu medo era difícil de enfrentar, e ele carregava um complexo de inferioridade muito profundo. Em sua mente, imaginava o corpo de uma pessoa quebrado de formas brutais, e isso o aterrorizava; não havia como parar sua imaginação. Ele realmente queria ser forte, forte como seu irmão, mas tudo o que aconteceu mostrou o contrário: ele parecia ser apenas fraco, e apenas fraco ele seria.

— Se eu não acreditar em mim... quem vai acreditar? — sussurrou Ricardo para si mesmo.

Um grande orgulho e convicção transbordaram de seu coração, fazendo-o transpirar coragem. Hoje, algo diferente estava acontecendo, e Ricardo não podia perder a oportunidade de presenciar algo novo, mesmo que fosse um acidente.

No entanto, ainda tremia, mas não recuou, ele abaixou a sua maleta aos poucos, suando frio, e finalmente viu. Através do vidro, duas figuras escuras que se destacavam na tempestade. Uma delas, o motorista, gritava, pisando em uma substância negra no chão. E ao lado do ônibus, algo gigantesco e estranho estava preso ao motor. Uma forma circular, com espinhos longos e finos que desapareciam na escuridão.

— O quê...? — Ricardo murmurou, incrédulo.

Antes que pudesse reagir ao que quer que fosse aquela coisa, uma criança curiosa atrás dele o chamou.

— Senhor, o que aconteceu? — perguntou uma criança, ela agarravava a alça do terno de Ricardo.

Ricardo olhou para o menino e respondeu de maneira seca:

— E-Eh... Desculpa, mas não sei dizer.

Encarando o garoto após sua resposta, Ricardo viu que ele tremia, claramente por medo.

— O q-que foi, garoto? — indagou Ricardo um tanto nervoso com a situação.

— S-senhor...! — gritou o menino em pânico, dando passos para trás, começando a chorar. — O-o quê... A coisa? — perguntou o garoto, com o semblante nervoso, suando frio e respirando cada vez mais rápido.

Ricardo não entendeu muito bem a que o garoto se referia. Confuso e com a mente cansada de pensar, ele permaneceu em silêncio, tentando relaxar. Mas, ao seguir o olhar do menino, ele viu. Uma forma preta e avermelhada refletia nos olhos do garoto, cobrindo toda a parte frontal do ônibus. Aquela presença se aproximava silenciosamente para dentro do veículo, e qualquer movimento a essa altura já parecia inútil. Dependendo de sua intenção, a morte de todos era inevitável, clara como o dia.

A coisa transpirava uma energia tão intensa que um calafrio percorreu a espinha de Ricardo. O garoto havia perdido completamente a fala, enquanto os outros passageiros pareciam conter a respiração, incapazes de entender o que estava diante deles. Os pensamentos de todos estavam cheios de dúvidas.

Mesmo em meio ao medo generalizado, Ricardo ousou agir. Respirou fundo e se lembrou de algo: "Eu não fiz grande realizações ou grandes conquistas, não pude encontrar uma mulher amada ou a riqueza para me alegrar. Por isso...Eu não posso morrer aqui!".

Sem excitação, Ricardo olhou rapidamente para trás, apenas desejando que fosse uma brincadeira de todos. Seu corpo inteiro tremia de forma descontrolada.

E então, ele viu... aquilo. E aquilo poderia causar uma destruição muito maior do que qualquer um imaginava. O ônibus ficou imerso em sons agudos e gritos desesperados. O que aconteceu naquele momento, naquela manhã, permaneceria para sempre na mente daqueles que sobreviveram a essa terrível experiência. Ou seja... Não haverá quaisquer resquícios daquele momento.