Acordei naquela manhã com uma leveza desconcertante, como se o cansaço acumulado tivesse se diluído nos primeiros raios de sol. Meu corpo, antes acostumado à tensão, estranhava a ausência de pressão, como se esperasse que o peso voltasse a qualquer momento. O ar parecia mais leve, e a luz do sol que entrava pela janela trazia consigo um conforto que eu não sentia há tempos.
Quando meu olhar se voltou para a foto na cabeceira, onde eu, Seiji e Rintarou sorríamos despreocupados no festival da escola, aquele sorriso que antes parecia tão distante agora estava mais próximo, quase palpável.
Depois de me levantar, notei que até minha mãe percebeu algo diferente em mim enquanto tomávamos café da manhã.
— Você parece diferente hoje, Shin — comentou ela, com um sorriso caloroso que só mães sabem dar.
— Acha mesmo? — respondi, meio distraído, enquanto pensava no que o dia me reservava.
Na verdade, não era apenas um "acha mesmo?". Era uma confirmação interna de que, sim, eu estava mais leve, mais feliz. A mudança, que antes parecia inevitável e assustadora, havia sido adiada, mas em vez de sentir apenas alívio, uma nova incerteza se instalou. O que esse tempo extra realmente significava? Era uma chance de fazer algo diferente ou apenas uma prorrogação do inevitável? E se, ao invés de aproveitar cada momento, eu simplesmente me perdesse neles, sem saber como preencher esse vazio inesperado?
No caminho para a escola, tudo parecia mais vivo. O céu estava limpo, sem sinal das nuvens que pareciam ter me acompanhado nas últimas semanas. As ruas estavam mais movimentadas, não porque havia mais pessoas, mas porque eu finalmente estava prestando atenção nelas. As árvores ao longo da calçada balançavam suavemente com o vento, e o som das risadas e conversas que vinham de longe se misturava com o som rítmico dos meus passos.
Ao virar a esquina, avistei Seiji e Rintarou, já engajados em uma conversa animada sobre um novo jogo que Seiji havia comprado. A cena era tão familiar e, ao mesmo tempo, tão nova, que não pude evitar de sorrir ao me aproximar deles.
— Bom dia! — cumprimentei, colocando os braços ao redor de ambos, ficando no meio deles, quase como se quisesse capturar a energia boa daquele momento.
Os dois me olharam surpresos.
— Uau, Shin, parece que você tomou café com açúcar hoje! — Seiji brincou, dando um leve soco no meu braço.
Rintarou riu, concordando.
— O que aconteceu? Até ontem você parecia um zumbi.
Senti uma onda de felicidade ao ver a preocupação nos olhos deles, uma preocupação que vinha de verdadeiros amigos. Dei de ombros, ainda sorrindo.
— A mudança foi adiada — falei, tentando disfarçar a confusão que isso trazia. — Então, parece que vou ficar por aqui mais um tempo... não faço ideia de quanto. Mas, sei lá, talvez seja uma boa chance pra gente aproveitar enquanto dá.
Seiji e Rintarou trocaram um olhar cúmplice antes de Seiji responder:
— Isso é ótimo! A gente precisa comemorar. Que tal jogarmos mais tarde então?
— Fechado! — respondi prontamente, sentindo-me grato pela simplicidade daqueles momentos.
Enquanto caminhávamos, meus olhos captavam cada detalhe: o som das folhas secas sendo esmagadas sob nossos pés, o cheiro do pão fresco que vinha de uma padaria próxima, e o calor suave do sol sobre nossa pele. Tudo parecia mais presente, mais intenso, como se eu estivesse redescobrindo o mundo ao meu redor.
Ao chegar na escola, percebi que meu foco estava aguçado de uma forma que não sentia há muito tempo. As palavras do professor, que antes pareciam um emaranhado confuso, agora faziam sentido. Tomei notas com atenção, e pela primeira vez em dias, senti que estava de volta, não apenas fisicamente, mas mentalmente.
Durante uma das aulas, enquanto revisava algumas anotações, senti uma presença ao meu lado. Era Yuki, que se aproximava com um sorriso tímido.
— Shin, posso aproximar minha mesa da sua? Estou tendo dificuldades para enxergar o quadro — ela pediu, apontando para o caderno em minhas mãos.
Senti meu coração acelerar e uma pequena onda de nervosismo tomou conta de mim. Eu sabia que minha resposta seria simples, mas não conseguia evitar o calor que subia pelo meu rosto.
— Claro, sem problemas — respondi, tentando parecer casual, mesmo com meu coração batendo um pouco mais rápido do que deveria.
Enquanto ela se sentava ao meu lado, o cheiro suave do shampoo dela me envolveu. Senti meu coração disparar de leve, e por um segundo, quase derrubei meu lápis. Aproximei-me um pouco mais do caderno, tentando focar nas minhas anotações, mas era difícil ignorar a sensação da perna dela tocando de leve na minha.
A proximidade entre nós era quase surreal; eu podia ver cada detalhe do seu rosto — desde a concentração nos olhos, enquanto tentava decifrar minha caligrafia, até o movimento sutil de seus lábios, que desenhavam palavras quase inaudíveis.
— O que está escrito aqui? — Yuki perguntou, rindo suavemente. — Sua letra é um pouco difícil de entender.
Eu ri nervosamente, tentando disfarçar o quanto estava encantado por ela estar tão próxima.
— Nem é tão feia assim... — murmurei, enquanto explicava o que estava escrito.
Engoli em seco e passei a mão pelo cabelo, num gesto nervoso. "Será que estou ficando estranho por pensar tanto nisso?" — me perguntei, desviando o olhar para evitar que ela percebesse meu rosto levemente corado. Apesar disso, não pude deixar de sorrir internamente. Sentia uma felicidade genuína por ela estar ao meu lado. Mas, por mais que eu tentasse me concentrar nas anotações, minha mente insistia em vagar, capturando cada movimento e expressão dela, como se estivesse absorvendo um momento que não queria deixar escapar.
Mais tarde, durante a aula de matemática, percebi que Seiji estava tendo dificuldades para entender um dos problemas que o professor passou. Ele olhava para o caderno, franzindo a testa, claramente frustrado. Seiji sempre foi bom em várias coisas, mas matemática não era exatamente o forte dele.
— Precisa de ajuda? — perguntei, me inclinando na direção dele.
Ele suspirou, irritado consigo mesmo.
— Não sei, Shin... Esse problema não faz sentido algum.
Passei alguns minutos explicando a questão para ele, desmembrando o problema em partes menores e mais simples. Aos poucos, vi a compreensão surgindo no rosto dele, como uma luz que se acendia. Quando ele finalmente entendeu, deu um sorriso de alívio.
— Valeu, Shin. Eu teria ficado preso nisso o dia todo!
Aquele pequeno gesto me fez perceber como era bom poder ajudar meus amigos, assim como eles sempre estiveram lá para mim.
No final do dia, fui ao clube de literatura. A sala era acolhedora, com estantes repletas de livros, suas capas coloridas formando uma espécie de arco-íris literário. Algumas janelas deixavam entrar a luz dourada do fim da tarde, criando um ambiente quase mágico. O som suave das canetas arranhando o papel era reconfortante, como uma música de fundo que inspirava a criatividade.
O presidente do clube, Takumi, estava sentado em uma cadeira próxima à janela, com um livro grosso entre as mãos, e uma expressão de concentração no rosto. Sua paixão pela literatura era evidente em cada gesto.
Ao lado dele, estava Taro, um rapaz que parecia sempre estar à beira do sono, encostado na parede, os olhos quase fechados como se estivesse prestes a cair no sono a qualquer momento.
Ele sempre tinha essa aparência desleixada, mas eu sabia que era apenas uma fachada.
Lembrei-me de uma conversa que tivemos há alguns meses, quando ele me contou sobre sua avó, uma contadora de histórias em sua aldeia natal. 'Ela me ensinou a escutar o que não é dito', ele me dissera, com uma expressão quase solene. Por isso, suas observações, embora raras, eram sempre surpreendentemente profundas, como se ele estivesse revelando um segredo antigo
Kaori, a extrovertida e energética, estava sentada em uma mesa, rabiscando algo no caderno, enquanto Mai, uma garota tímida e reservada da minha classe, olhava atentamente pela janela, como se estivesse absorvendo cada detalhe do mundo exterior. Desde o começo do ano, ela raramente participava das conversas do grupo, mas sempre tinha um olhar perspicaz quando se tratava de analisar personagens literários.
Eu me lembrei de uma vez em que ela fez uma análise, durante uma aula, tão profunda de um poema de Akiko Yosano que até o professor ficou impressionado. Era como se ela visse além das palavras, captando nuances que o resto de nós perdia.
Apesar de estar sempre à vontade no clube, naquele dia senti uma hesitação incomum. Eu segurava minha história nas mãos, sabendo que, para ter uma chance de ganhar o concurso, eu precisaria que ela fosse perfeita. Mas o medo de ser criticado me segurava.
Porém, logo percebi que se havia um lugar onde eu poderia receber críticas honestas e construtivas, era ali, entre pessoas que compartilhavam da mesma paixão.
— Ei, pessoal, preciso da ajuda de vocês com uma história que estou escrevendo — anunciei, sentindo uma mistura de ansiedade e empolgação.
Takumi ergueu os olhos do livro e assentiu, me dando a permissão silenciosa para começar. Kaori parou de rabiscar e se inclinou na direção da mesa, curiosa, enquanto Taro apenas deu de ombros, como se dissesse "por que não?". Mai, embora quieta, me lançou um olhar encorajador.
Li a primeira parte da história em voz alta, minhas palavras ecoando na sala silenciosa. Quando terminei, houve um momento de silêncio, e senti meu coração batendo mais rápido enquanto esperava que dissessem algo.
— A ambientação é boa, mas acho que os diálogos precisam ser mais naturais — disse Takumi, direto ao ponto como sempre. — Tente capturar a essência dos personagens em pequenos gestos ou silêncios. Às vezes, o que eles não dizem pode revelar mais do que as palavras.
Mai, que havia escutado atentamente, concordou com um aceno discreto.
— Talvez você possa explorar mais os sentimentos internos do protagonista. Eu sinto que ele está passando por algo importante, mas não consigo me conectar totalmente com ele ainda.
Taro, que parecia à beira de cair no sono, surpreendeu ao fazer um comentário perspicaz:
— Sabe, Shin, às vezes é mais sobre o que você não diz. Deixa o leitor imaginar um pouco. Isso pode tornar a história mais envolvente.
Kaori, que até então estava quieta, de repente ergueu a cabeça e me olhou de forma quase divertida.
— Ei, Shin, eu notei que você usou algumas das anotações que eu te dei. Boa escolha, mas... — ela deu um sorriso brincalhão — ...não seria melhor se você deixasse de lado os clichês? E aquele diálogo do capítulo dois, sério, você pode fazer melhor!
Eu ri, sentindo o peso da tensão se dissipar com a brincadeira de Kaori. Sua leveza me ajudou a relaxar, e percebi que estava entre amigos que, além de críticos, eram também meu apoio.
— Vou trabalhar nisso — respondi, rindo junto com ela.
Aquela troca, por mais simples que fosse, me deu um novo ânimo para continuar escrevendo e aprimorando minha história. Estava claro que havia muito a melhorar, mas, ao mesmo tempo, sentia o calor familiar de estar entre amigos, de estar em um lugar onde minhas paixões eram compreendidas e valorizadas.
Quando o clube terminou, voltei para casa com uma mistura de emoções. Pensando em tudo o que aconteceu ao longo do dia, percebi como aqueles momentos, por mais simples e rotineiros que fossem, tinham um significado profundo.
As ruas estavam agora iluminadas pelas luzes suaves do entardecer, e o ar tinha uma brisa fresca que acariciava meu rosto, como um lembrete sutil de que eu estava vivo, presente.
Ao chegar em casa, entrei direto no meu quarto e me deitei na cama, deixando que os pensamentos do dia passassem por minha mente como um filme. A imagem da foto na cabeceira voltou à minha mente. O sorriso no meu rosto não era só um reflexo de um tempo feliz; era uma promessa de que ainda havia muito por viver.
A nostalgia estava ali, mas agora, ela trazia consigo uma gratidão tranquila, por tudo que ainda estava ao alcance. Gratidão por ainda ter a chance de viver momentos como aqueles, por poder estar ao lado dos meus amigos e criar novas memórias.
Com um sorriso suave no rosto, fechei os olhos, decidido a aproveitar cada segundo que me restava na cidade que eu amava. Porque, no fim das contas, é isso que realmente importa: viver cada momento intensamente, sem arrependimentos.