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Transmigração confusa

O céu poente tingia de laranja as vastas planícies que cercavam a cidade de Wujin. Outrora aclamada como a "Cidade do Amanhã", um símbolo de progresso e tecnologia, Wujin agora carregava o estigma de ser uma cidade de baixo nível na escala planetária. Seu brilho futurista havia sido substituído por uma melancolia cinza, resultado direto das devastadoras tempestades dimensionais.

Essas tempestades não eram fenômenos naturais. Eram rasgos no espaço-tempo, portais que conectavam a Terra a dimensões insondáveis. O que antes era considerado mito ou lenda agora caminhava livremente pelo mundo, como se a própria realidade tivesse se rendido ao absurdo. Criaturas de tamanhos colossais, algumas com formas que desafiavam a lógica humana, cruzavam esses portais, tornando-se uma ameaça constante.

Xun Deyou soltou um suspiro pesado. Sentado em um canto esquecido da escola, ele processava mentalmente essas informações, que haviam se tornado parte de sua rotina desde sua chegada. Ele era um transmigrado, um estranho neste mundo. Vinha da antiga Terra, um lugar que, embora longe de ser perfeito, ainda era um bom lugar para viver — e, acima de tudo, livre de monstros com centenas de metros saindo de portais no céu.

"Que ironia," murmurou ele para si mesmo, olhando para o horizonte tingido de cores quentes. "De um mundo onde o caos era causado por nós mesmos, para outro onde o caos literalmente cai do céu."

Quanto mais pensava nisso, mais a irritação corroía Xun Deyou. Ele cerrou os punhos, sentindo a frustração borbulhar como um vulcão prestes a entrar em erupção.

"Os outros transmigradores," murmurou entre dentes, "vão parar em mundos onde se tornam heróis, onde recebem sistemas milagrosos ou artefatos divinos. Formam seus próprios haréns, acumulam poder e vivem cercados de riquezas... Mas e eu?"

O vento frio das planícies soprou contra seu rosto, como se zombasse de sua frustração. Ele chutou uma pedra no chão com raiva, apenas para vê-la rolar por alguns metros antes de parar, inerte. Era uma representação perfeita de como ele se sentia: pequeno, insignificante, e, acima de tudo, preso.

"Eu sou só um desgraçado sem sorte," continuou ele, agora mais alto, como se quisesse que o próprio céu o ouvisse. "Transmigrado para um mundo onde a morte é tão comum quanto respirar. Aqui, ser esquecido ou morrer como um nada é a norma, e aqueles que governam sequer reconhecem nossa existência!"

O pior de tudo era a ausência de qualquer vantagem. Os chamados "dedos de ouro", aquelas bênçãos divinas que faziam dos outros transmigradores lendas vivas, estavam conspicuamente ausentes de sua vida. Sem sistema milagroso, sem artefato ancestral, sem linhagem divina. Apenas ele e sua força de vontade cada vez mais desgastada.

"Se eu tivesse pelo menos um sistemazinho..." Ele suspirou, esfregando o rosto como se pudesse apagar a frustração junto com a sujeira acumulada. "Qualquer coisa. Algo que me desse uma chance real de lutar. Com certeza eu encararia tudo isso de forma diferente."

Mas a realidade era implacável. Não havia sinais de um sistema ou de qualquer ajuda divina vindo em seu socorro. Ele estava sozinho em um mundo onde monstros e cultivadores não apenas ditavam as regras, mas eram a própria regra.

Neste mundo, ao completar 15 anos, todos passam por um marco inevitável: o despertar de seu próprio Mar Divino. O Mar Divino é o núcleo da existência de um cultivador, a fonte de sua energia interna e o lugar onde ele pode armazenar suas companheiras, conhecidas como Feras Dimensionais.

O despertar é absoluto, uma certeza. Independente de status ou origem, toda criança ao atingir os 15 anos experimenta a abertura de seu Mar Divino. Mas esse fenômeno, embora universal, não é isento de problemas.

A ligação do Mar Divino está diretamente conectada à alma e ao corpo do indivíduo. E aí estava o maior obstáculo para Xun Deyou. Este corpo não era originalmente seu, mas sim habitado por outra alma antes de sua transmigração. Quando ele chegou, sua alma foi forçada a se adaptar ao novo receptáculo, criando um caos interno.

Agora, seu Mar Divino era uma confusão completa: fragmentos da antiga alma entrelaçados com os de sua própria essência, resultando em um núcleo instável e perigoso. Para qualquer outro, esse desequilíbrio seria um desastre garantido.

Outro aspecto crucial do despertar é a habilidade inicial que ele concede. Cada despertado ganha uma habilidade única, moldada por sua personalidade mais profunda. Alguém com uma mentalidade voltada para a força física, por exemplo, poderia despertar habilidades relacionadas a puro poder, como a famosa Angel's Line, uma técnica lendária de rank SSS, pertencente ao transcendente Ming Haori.

A habilidade inicial é uma manifestação direta da alma de quem desperta, um reflexo de seus desejos, crenças e motivações mais íntimas. Mas o caso de Xun Deyou era um completo mistério. Com um corpo que não era originalmente dele e uma alma forçada a se fundir, o que exatamente se manifestaria no momento de seu despertar?

Essa incerteza o preocupava profundamente. Para ele, o despertar não era apenas um momento de empolgação, mas também uma potencial sentença de morte. Se o Mar Divino fosse incapaz de estabilizar a conexão entre corpo e alma, ele correria o risco de um colapso espiritual, algo que nenhum cultivador conseguiria sobreviver.

E, ainda assim, ele não podia evitar uma ponta de curiosidade. "O que minha alma... ou melhor, nossa alma, será capaz de criar?"

Enquanto Xun Deyou divagava, um sorriso involuntário brotou em seu rosto ao imaginar as inúmeras habilidades que poderia despertar, a porta da sala foi aberta de forma abrupta. O professor entrou com passos rápidos, seu olhar ansioso e carregado de preocupação varrendo a turma.

— O despertar vai começar. Por favor, me sigam em silêncio e em ordem. Quem não seguir as regras será o último a entrar no processo de despertar — anunciou o professor, sua voz firme tentando conter a excitação crescente na sala.

Apesar do aviso, o murmúrio dos alunos era inevitável. Para eles, este momento era decisivo. O despertar definiria seus futuros, abrindo portas para universidades especializadas em cultivadores e carreiras como grandes dominadores desse mundo perigoso e imprevisível.

— Tomara que eu desperte pelo menos uma habilidade de rank A — sussurrou um garoto na fileira da frente, mal conseguindo conter sua empolgação.

— Rank A? Pare de sonhar, idiota. Você deveria agradecer se despertar algo de rank C — retrucou outro colega, rindo de forma contida.

— Rank A? Não me faça rir — interveio uma terceira voz, cheia de desdém. — Já faz anos que nossa cidade não vê sequer um rank B, quem dirá um rank A. Nosso melhor caso nos últimos tres anos foi o idiota do Wang Qiang, com sua habilidade de rank C, e ele esta quase sendo expulso daquela pequena universidade.

A sala explodiu em risadinhas abafadas. Xun Deyou permaneceu em silêncio, observando as trocas de farpas. Ele sabia que, para muitos ali, a ideia de despertar algo extraordinário era um sonho distante. E para ele? Bem, ele sequer tinha certeza se poderia despertar algo.

Seu olhar vagou até o professor, que agora verificava uma prancheta e fazia um gesto para que os alunos se alinhassem. O despertar não era apenas um rito, mas uma transição para um futuro glorioso. Xun Deyou sabia disso melhor do que ninguém.

Enquanto os outros se preocupavam com ranks, ele só queria sobreviver àquele processo. Afinal, em um corpo que não era originalmente seu, e com um Mar Divino desestabilizado, quem poderia prever o que aconteceria quando ele fosse finalmente exposto ao despertar?

Quando já havia se passado mais de uma hora, metade dos alunos havia subido ao altar de despertar. Os rostos inchados de muitos, ainda marcados por lágrimas, já denunciavam seus resultados: habilidades de rank E ou F. Não era surpresa. A maioria ali era descendente de cultivadores de baixo nível, e, mesmo que os genes não fossem tudo, pesavam bastante nesse processo.

Embora houvesse uma chance ínfima de alguém superar as expectativas, isso era quase um mito em Wujin. Nos últimos anos, o maior orgulho da cidade fora um único Rank C, um talento que conseguiu um posto mediano em uma escola menor da capital.

— Ling Ming! — chamou o professor, sua voz ecoando pela sala e instantaneamente silenciando os murmúrios.

Todos os olhos se voltaram para um ponto central na sala. Ling Ming, um garoto alto de postura confiante, se levantou lentamente. Ele estava cercado por colegas que o olhavam com reverência, quase como se ele já fosse um cultivador consagrado. Com um sorriso zombeteiro, ele caminhou em direção ao altar, saboreando cada momento da atenção.

— Uau, aquele é o Ling Ming! — comentou uma aluna, com os olhos brilhando.

— Ouvi dizer que a irmã dele despertou uma habilidade rank B e foi pessoalmente recrutada por um Élder da Dragon Academy!

— Ele é tão lindo. Aposto que vai despertar algo incrível.

O burburinho cresceu conforme ele subia os degraus do altar. Seu olhar era sereno, quase desinteressado. Era como se ele já soubesse o que o esperava. Ling Ming parou diante do cristal de despertar, um artefato místico que reagia diretamente à alma e ao Mar Divino. Ele ergueu as mãos, pousando-as suavemente sobre a superfície brilhante.

O silêncio na sala tornou-se absoluto. Todos observavam com ansiedade enquanto o cristal emitia um leve brilho. Então, subitamente, a luz começou a pulsar, ganhando força e intensidade. Uma onda de energia percorreu o ambiente, fazendo os cabelos de alguns alunos se arrepiar.

O cristal iluminou-se com um azul profundo, mas logo foi tomado por uma luz dourada que parecia irradiar calor. A combinação de cores era rara, tão rara que o professor ficou boquiaberto, incapaz de esconder sua surpresa.

De repente, uma explosão de luz emergiu do cristal, formando uma silhueta no ar acima de Ling Ming. Era um dragão de fogo, com escamas reluzentes e olhos brilhantes como brasas. A imagem flutuou por alguns instantes antes de desaparecer, deixando para trás apenas o brilho intenso do cristal.

— Rank A! — anunciou o professor, sua voz tremendo de excitação.

A sala explodiu em exclamações. Alunos se levantaram de suas cadeiras, incapazes de conter o choque e a admiração.

— Eu sabia! Ele é incrível!

— Um Rank A em Wujin? Isso não acontece há décadas!

Ling Ming virou-se lentamente, o sorriso zombeteiro agora completamente triunfante. Ele olhou para os outros, como se dissesse sem palavras: "Vocês nunca chegarão ao meu nível."

— Parabéns, Ling Ming. Sua habilidade é... "armadura do Dragão Infernal". — disse o professor, consultando o monitor ao lado do altar. — Uma habilidade de ataque e defesa, com um potencial devastador. Você está destinado a grandes coisas.

Os murmúrios se intensificaram, com a maioria dos alunos já considerando Ling Ming como o futuro orgulho da cidade.

Xun Deyou, por outro lado, permaneceu em silêncio. Ele não podia se dar ao luxo de invejar o garoto. O despertar de Ling Ming apenas aumentava sua apreensão.

Se até o Ling Ming conseguiu algo tão grandioso, o que será que me aguarda?

Xun Deyou mal teve tempo para pensar, pois logo o professor chamou seu nome:

— Xun Deyou!

A sala ficou em silêncio por um momento, e os olhares inevitavelmente se voltaram para ele. Ele sentiu o peso das expectativas — não que fossem altas, mas sim porque ele havia sido chamado logo após Ling Ming.

Enquanto caminhava em direção ao altar, seu coração estava pesado. Ele não estava preocupado com o rank ou a grandiosidade da habilidade que poderia despertar. Sua única preocupação era se conseguiria despertar algo. Com um Mar Divino em caos, um corpo que não era originalmente dele e uma alma fundida de forma instável, a chance de falha parecia esmagadora.

Seus pensamentos o consumiam, fazendo com que sua expressão franzida parecesse ainda mais carregada. Nos murmúrios ao redor, as suposições corriam soltas:

— Coitado, ter que ir logo depois de Ling Ming... Que vergonha.

— Depois de um Rank A? Ele vai parecer ainda mais patético.

— Com aquela cara, já deve estar se preparando para um Rank E, no máximo.

Xun ignorou os comentários. Sua preocupação estava em um nível muito além das pequenas intrigas adolescentes. Ele chegou ao altar e olhou para o cristal brilhante à sua frente. Seu reflexo parecia zombar de sua ansiedade.

— Qualquer coisa... Por favor, qualquer coisa serve, mesmo que seja um Rank E, pensou, sentindo as palmas das mãos suadas.

Com um suspiro pesado, ele estendeu as mãos, tocando o cristal com dedos trêmulos. Um frio estranho percorreu seu corpo, como se uma corrente de energia se espalhasse por ele. Por um momento, o silêncio que tomou conta da sala parecia eterno.