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Solitários espadachins

Ilha de Kder, 15 de dezembro.

Hiroshi acorda de um cochilo em sua antiga cama. Seu corpo parece ainda não ter se acostumado com sua antiga rotina de sono.

Antes de se levantar, ele passa a mão no seu rosto esperando sujá-la de sangue, mas sua mão continua seca, indicando que não há mais ferida alguma.

"Já estou curado...? Eu não acho que conseguiria isso por conta própria tão rápido, muito menos na minha condição atual. Será que Lorde Vak está sendo caridoso comigo?"

Ele passa mais alguns segundos deitado olhando para o teto, deitar numa cama é um privilégio que ele não tem mais como garantir.

Após finalmente se levantar, ele lentamente caminha até o espelho para ver de perto sua frágil e decaída aparência atual.

Ao levantar sua camiseta, ele enxerga suas costelas facilmente visíveis debaixo da pele, o resultado de passar um mês sem se alimentar, recebendo os nutrientes necessários para sua sobrevivência através de um tubo. Seu corpo esteve em coma, mas ele não esteve em um hospital, obviamente ele não receberia o tratamento adequado.

Como toda vez em que esteve naquele lugar, naquela prisão, sua sobrevivência era a única garantia que ele tinha. Qualquer coisa além disso era um luxo que não estavam dispostos a provê-lo.

Ao olhar para seus pulsos, avermelhados pelas marcas deixadas pelas algemas, que forçavam seu corpo a se manter levantado, ele questiona suas memórias:

"Eu tinha isso quando eu vim pra cá pela primeira vez...?"

Por último, ele simplesmente encara o reflexo de seu próprio rosto. Eles não fizeram nada com sua cabeça, então não há nenhuma diferença muito drástica. Porém, seu rosto agora carrega uma expressão diferente de qualquer outra que ele lembra de ter feito. Seus olhos nunca pareceram tão mortos.

"Este olhar... é bem parecido com o dele..."

O homem que matou seu irmão mais velho. No dia em que esse homem foi morto por Hiroshi, seu rosto parecia vazio de certa forma, como se não carregasse significado nenhum em sua batalha final.

Na raiva do momento, o garoto não estava se importando em nada com o que se passava na mente do homem, porém suas últimas palavras de alguma forma nunca saíram de sua memória:

"Me desculpa, moleque... Eu só estava cansado."

Quando ele ouviu isso, ele não fazia ideia do que isso deveria significar. Ele nunca se daria o esforço de tentar compreender as palavras de um assassino, por mais hipócrita que seja essa lógica. Além disso, do que ele estaria cansado? Que cansaço levaria alguém a se tornar um instrumento de assassinato?

Ainda assim, várias semanas depois, por algum motivo essa memória se tornou muito mais recorrente em sua mente, e a cada repetição começou a fazer cada vez mais sentido.

Ele continua a se olhar no espelho, evitando se afundar demais em seus pensamentos. Seu cabelo continua praticamente o mesmo de antes, senão um pouco mais bagunçado. Desde que Vektor Drenn o cortou, ele nunca mais foi capaz de sentir a mesma imponência que sua aparência carregava antes. Pelo contrário, ele parece cada dia mais patético.

A ferida em sua cabeça que ainda não estaria curada se não fosse a interferência de seu lorde é a marca definitiva de sua lealdade, a provação necessária para participar desta atual missão. A lembrança dessa provação foi guardada na gaveta do quarto de Katsuo.

No pior dos casos, essa gaveta será o túmulo de suas memórias. No melhor dos casos, alguém abrirá essa gaveta e encontrará o que foi guardado dentro da mesma. De qualquer forma, esse item não significa mais muita coisa pra ele, por ser algo que o conecta a uma vida que ele não planeja mais voltar.

Antes de sair, ele decide comer qualquer coisa que encontra na geladeira. Talvez seja falta de educação pegar a comida de alguém sem autorização, mas tecnicamente essa continua sendo sua casa.

O gosto e a sensação de engolir alimento são coisas que ele não experimentava a um bom tempo, pois sua alma estava presa no Mundo dos Pesadelos desde sua última derrota. Se não tivessem imediatamente levado seu corpo embora após isso, muito dificilmente ele sequer seria capaz de retornar.

Caso seu corpo morresse, a situação mais provável de acontecer seria sua alma se prender no Mundo dos Pesadelos, eternamente tendo que conviver com irracionais monstros sombrios, assombrado pela fome insaciável e dor interminável sem sequer ter a chance de buscar a morte.

Pode-se dizer que seria o mais próximo possível de estar preso no Inferno.

Seguindo por essa lógica, pode ser considerado um milagre o fato de que não apenas seu corpo conseguiu sobreviver como também ele foi designado como parte desta missão. No entanto, a realidade é que agora ele está preso em um loop de servidão, e qualquer tentativa de fugir deste loop só o levaria à ruína.

"Realmente, isso deixaria qualquer um exausto..."

Imediatamente após se alimentar, ele usa um Cristal de Sombra para se teletransportar até o Planalto do Amanhecer, seu ponto de atuação na missão.

De acordo com o plano, Hiroshi deveria esperar no Planalto do Amanhecer por um determinado período de tempo para dar a oportunidade de invocar Vektor todo fim de tarde. Porém, Katsuo consegue o esplêndido feito de obter todos os Cristais de Netern em apenas um dia.

Não é necessária muita espera até que Katsuo chegue ao Planalto do Amanhecer carregando os cristais. Até mesmo Hiroshi demonstra uma momentânea surpresa, porém logo se recompõe:

"Vejo que cumpriu sua parte do acordo. Excelente trabalho."

"Espero que também cumpra com sua promessa."

"Não se preocupe quanto a isso. Desde que todas as condições sejam atendidas, toda esta situação se concluirá muito em breve."

"A propósito, tem algo que estive me perguntando desde nossa última reunião. Quais são as outras condições para libertar seus reféns?"

"A segunda condição é exatamente o que você esteve fazendo: reunir os Cristais de Netern para invocar Vektor Drenn de volta a nosso mundo. Por esta razão sua contribuição era essencial para o sucesso do plano."

"E o que eu preciso fazer agora para cumprir com minha parte?"

"Só coloque os cristais no chão e imagine Vektor Drenn retornando. Os cristais então irão responder criando um portal que o puxará de volta."

Katsuo obedece as instruções, reunindo os cristais em um lugar um pouco distante dos dois. Ao concluir o processo, os Cristais de Netern brilham intensamente, se reúnem em uma esfera de luz brilhante...

...e nada acontece além disso.

"O que houve? Era isso que deveria acontecer? A invocação... falhou?!"

Sem acreditar no que acabou de acontecer, Katsuo caminha lentamente de volta até Hiroshi, sem saber como descrever a situação:

"Eu terminei..."

"E então, onde está Vektor?"

"Não sei como, mas... a invocação não foi completa."

"Hmm... Entendo. Que estranho, os Cristais de Netern nunca deveriam falhar. Será que tem algo impedindo seu retorno...? Bem, é mesmo uma pena."

"O que faremos agora?"

"Não importa o que esteja impedindo, Vektor Drenn com certeza voltará a qualquer momento. Por isso, tudo que precisamos fazer é esperar seu retorno."

"Entendo..."

"Bem, considere seu trabalho concluído. Você já fez sua parte no nosso plano. Tudo que resta é a terceira condição, que Vektor deverá cumprir assim que retornar."

"Ainda bem..."

De acordo com o plano original, assim que Katsuo concluísse seu função, ele seria dispensado. No entanto, Hiroshi tinha um segundo plano em mente guardado para este momento...

"Obrigado pela ajuda. Eu sabia que você iria colaborar comigo, mas você foi ainda melhor do que todos nós antecipamos. Infelizmente, alguém tão extraordinário quanto você pode se tornar um obstáculo futuro..."

"Hã? Do que está falando?"

"Sinto muito em dizer, mas nossa trégua acaba agora. Com sua função realizada, não tenho mais razões para te deixar viver."

"Como é que é?! Mas e a sua palavra?!"

"Como prometido, o plano seguirá e todos serão libertos. Sua vida, no entanto, não fazia parte do acordo."

"Você... realmente vai me matar?"

"...Sim. Tudo para garantir a vontade de Lorde Vak."

A verdade é que Katsuo ainda não representa ameaça a Vak-Oh. A falsidade em suas palavras é tão óbvia que nem seu suposto alvo consegue se sentir ameaçado:

"Você teve várias chances de me matar quando eu tentei te impedir no passado. Na Ilha de Kder, nada te impediu te cortar minha cabeça. Nesta ilha, você foi capaz de apunhalar meu coração sem que eu pudesse reagir. Ainda assim, você nunca, nunca tomou a iniciativa de concluir seu trabalho. Mesmo que fosse em nome do seu lorde."

"Eu admito, eu tenho certos problemas quanto a hesitação. Eu sempre tento ao máximo fugir da opção de tirar a vida dos outros. Porém, eu percebi que não tenho mais o luxo de repetir esse erro para sempre."

"Você fala isso, mas eu sei que você também não quer fazer isso! Você é meu irmão de juramento, eu sei que você está mentindo!"

"Me desculpa, mas essa história de fraternidade não vai mais funcionar comigo. Isso porque... eu já deixei tudo pra trás."

Após uma repentina rajada de vento soprar sobre os dois, Hiroshi revela seu ouvido esquerdo:

"Este é o símbolo de minha lealdade a Lorde Vak."

"...!!"

O lóbulo de seu ouvido está horrivelmente rasgado, indicando que seu brinco dourado foi arrancado a força. Se não fosse pelo fator de cura de Vak-Oh, seu ouvido continuaria sangrando durante meses seguidos.

"Isto é prova o bastante pra você?"

"N- Não pode ser... Você...!"

"Bem, não temos muito tempo. Preciso acabar com você antes que Vektor Drenn retorne."

Hiroshi finalmente percebe a ironia de sua atual situação. Ele está na mesma posição que a primeira pessoa de quem tirou a vida esteve. Ele está prestes a lutar até a morte contra o espadachim Kder. Talvez os dois realmente tenham tido as mesmas motivações antes de suas batalhas.

No pior dos casos, os dois talvez possam se reencontrar algum dia em qualquer que seja o lugar para onde suas almas irão após a morte. No melhor dos casos, ele morrerá ali, possivelmente no único momento em que seu ciclo pode ser quebrado.

Hiroshi levanta sua mão. Para abandonar completamente sua hesitação, ele decide largar a estabilidade de sua mente rendendo sua alma para receber o poder de seu lorde. Diferente de uma maldição, sua alma continuará dentro de seu corpo.

Ele está prestes a se tornar um monstro, um descontrolado animal agindo puramente por seus instintos e desejos guardados no fundo de sua mente. Porém, ele confia que o espadachim lendário seja capaz de acabar com esse monstro e libertar sua alma. Ele decide fugir uma última vez, deixando tudo nas mãos de seu irmão de juramento.

"Me desculpa, Katsuo. Eu só... estou muito cansado."