LETTIE
Um cheiro forte de queimado preencheu minha cozinha.
Minha torta já era.
Tropeçando na cadeira, levantei-me num pulo e corri até o forno. Ao girar o botão, percebi o quanto as minhas mãos tremiam. Minha garganta estava tão seca que parecia rasgar-se.
Foi então que me dei conta: eu e Piccolo nos beijamos.
Nos… Nos beijamos!!!
E Naíma acabou de perguntar se agora seríamos uma família e se Piccolo seria o seu… papai.
O que. Estava. Acontecendo?
Em um segundo, eu estava sentada ali naquela cadeira, conversando com Piccolo sobre os meus temores, esperando minha torta ficar pronta, e no outro… fazíamos aquilo que eu ansiava há eras.
Como tudo virou de cabeça para baixo num piscar de olhos?
Encarei Piccolo outra vez. Ele estava branco e paralisado, intercalando entre fitar eu e Naíma. Eu quase podia ver fumaça saindo da sua cabeça. Era nítido o quanto estava tão conturbado quanto eu com a repentina situação que nos colocamos.
E agora?! O que faríamos?! Como explicar o nosso beijo para Naíma?? Como explicar o nosso beijo para nós mesmos??
— F-Filha, querida… — Fui até ela e me abaixei na sua altura, tentando soar o mais normal possível, mas falhando. — Vá para o seu quarto brincar… E-Eu e o Piccolo precisamos conversar, tá bom?
— Ah, mamãe… — Naíma me olhou com tristeza. — Eu quelia tanto ficar aqui com vocês… Por favorzinho…
Meu coração apertou-se em angústia. Desesperada, busquei o olhar de Piccolo. Mesmo ainda se mostrando conturbado, ele mudou sua postura e endireitou-se, mostrando a autoridade paterna a qual eu sabia que ele exercia sobre ela.
— Naíma — disse ele, firme —, obedeça à sua mãe. Já pro quarto.
Como uma boa filha, apesar de chateada, ela obedeceu. Entretanto, antes de sumir pelo corredor, ela virou-se para nós e, com um semblante abatido, pediu:
— Mamãe, papai, por favor… Não briguem.
Suas palavras doeram mais do que um golpe violento. Eu e Piccolo enfim ficamos a sós na cozinha, com o eco de sua súplica reverberando ao nosso redor. Lentamente, me virei para ele, o qual mirava o chão. Uma sombra cobria seus olhos. Engoli em seco.
— Hã… — Limpei a garganta. — Podemos conversar na varanda? — Olhei na direção do quarto de Naíma. — Acho mais seguro.
Piccolo apenas assentiu e abriu passagem para que eu fosse na frente. Ao chegarmos à varanda, fechei a porta e sentei numa das poltronas de vime. Ele permaneceu de pé, as mãos esfregando nas laterais do corpo, ainda evitando meu olhar.
— Você… não quer sentar? — Gesticulei para a poltrona ao lado.
Piccolo de repente me encarou e disse:
— O que fizemos foi um erro. É melhor esquecermos o que aconteceu. Os Androides chegam amanhã. Não é hora de discutirmos isso.
Silêncio.
Foi a minha vez de encará-lo, e minha feição não era nada satisfeita.
Nos beijamos, Naíma o chamou de papai e ele tem a coragem de me pedir para ESQUECER o que aconteceu?! Que o que fizemos foi um… ERRO??
Fechei os olhos e respirei fundo.
— Não — respondi, em alto e bom tom.
Piccolo arregalou os olhos. Ele definitivamente não esperava por tal resposta. Não da doce e gentil Lettie, que sempre aceitava tudo para evitar um conflito.
Mas agora, chegou a minha vez de falar.
Devagar, levantei-me da poltrona e caminhei até ele. Piccolo se encolheu diante da minha postura. Parei à sua frente, olhei-o no fundo dos olhos e declarei:
— Eu sei o que está acontecendo com você.
Piccolo empalideceu.
— O-O quê…? — sussurrou ele.
— Eu ouvi o que você disse a Naíma — repliquei com convicção. — Há três anos, no dia em que a levamos para tomar vacina. — Apontei para a poltrona que sentei há pouco. — Você estava bem ali, e se intitulou como pai dela. Eu me lembro muito bem.
Um lampejo de terror percorreu os olhos de Piccolo diante da minha revelação. Um grande nó se formava em minha garganta ao me recordar daquele dia, mas eu não podia parar. Não agora. Com minha voz embargada, continuei:
— Naíma estava passando mal e você a levou aqui pra fora. Eu fazia cookies com Gohan, mas fiquei preocupada, então vim até a janela apenas me certificar de que estava tudo bem. Foi aí que escutei o que você disse a ela.
Mesmo vendo os olhos de Piccolo marejarem, recitei as palavras que grudaram na minha mente naquela tarde:
— "Preste atenção, Naíma. Nós não podemos ficar juntos. Eu, você e a Lettie, entende? Esta é a coisa mais difícil que estou fazendo. Está me consumindo vivo! Mas saiba que é pelo bem de vocês duas. Tenho os meus motivos. É terrível demais para vocês saberem! Talvez um dia eu possa contar para vocês toda a verdade, mas ainda não estou preparado. Por favor, tenha paciência comigo. Apesar de deixar de fazer aquilo que mais desejo, estarei sempre aqui. Protegerei você e sua mamãe."
Fez-se um silêncio pesado.
Uma lágrima escorreu pelo rosto amedrontado de Piccolo, e precisei conter as minhas ao continuar falando:
— Quer saber como consegui suportar todos estes anos ao seu lado? Porque, todos os dias, eu repetia para mim mesma o que você disse a Naíma. E-Eu… Eu cheguei a me contentar que tudo o que teríamos juntos seria… — Abri os braços e olhei ao redor. — Isso. Nossa rotina diária, na Escola, nos fins de semana, sabe? — Baixei a cabeça. — Mas, eu ainda tinha esperanças de que daríamos um passo adiante no nosso relacionamento e que você me contaria a verdade quando estivesse pronto, só que… este momento nunca chegou… — Ergui meu olhar com cautela. — Até agora.
Com carinho, peguei na mão dele e a apertei. Eu sentia seus batimentos acelerados.
— Piccolo, eu não sei pelo que você está passando, mas, se tem uma coisa que aprendi nos últimos tempos é que nossas angústias precisam ser compartilhadas, senão, é como você disse: elas nos consumirão vivas! — Inspirei fundo. — Escuta, como você mesmo pediu, tive paciência e esperei por muito, muito tempo, mas agora, eu preciso que você me conte a verdade, pois é algo que envolve a minha pessoa e Naíma. Quero ouvir tudo da sua própria boca. — Então, levitei até ficar na sua altura e peguei seu rosto. — Por favor, fale comigo. Conte-me o que te aflige.
Ele emitiu um soluço do fundo da garganta. Acredito que foi sem querer, e aquilo cortou meu coração. Eu podia ver o quanto ele ansiava pelo toque das minhas mãos, mas, ao mesmo tempo, parecia ter medo delas e tentava se desvencilhar.
— Não… — disse ele, sua voz esboçando profunda dor. — Não posso…
— Piccolo, por favor. — Segurei-o com mais força.
— Não! — Ele se desvencilhou de mim e me deu as costas. — Você não pode me ajudar! Ninguém pode me ajudar!
Pousei no chão, assustada com seu comportamento, e assistindo-o caminhar pela varanda até se apoiar no parapeito de madeira a uma distância, agarrando-o até os nós dos seus dedos ficarem brancos. Parecia que ele estava prestes a desmaiar.
Tá. Agora eu estava realmente preocupada com seu estado emocional.
O que estava acontecendo com ele? O que o atormentava tanto? Piccolo suava frio, arquejava, passava as mãos no rosto, sacudia a cabeça… Tive a impressão de que estava tendo um ataque de pânico. Eu conhecia os sintomas muito bem.
Eu estava quase correndo para a cozinha buscar um calmante quando ele de repente parou, respirou fundo diversas vezes e ficou em silêncio. Então, num tom baixo, porém muito claro, confessou:
— Eu tive um sonho.
Franzi o cenho, confusa. O que foi que ele disse? Que teve… um sonho? De qualquer forma, não precisei pedir para ele repetir, pois Piccolo voltou-se para mim, seus olhos vermelhos, inchados e cansados, e disse:
— Lembra que, no nosso último dia de Treinamento contra os Saiyajins, você me disse para eu procurar o meu novo sonho? Pois bem, eu o tive. Após ter morrido nos seus braços. Sonhei que eu treinava com os nossos filhos. Eram dois meninos. Gêmeos. Nail e Daikon eram seus nomes. — Ele soltou um leve riso com amargura. — Você precisava ver. Nail tinha os traços de um Namekuseijin e Daikon os de um Saiyajin. Eles me derrotaram fácil, fácil. Depois do treino, viemos para cá. — Ele olhou ao redor. — Para esta mesma casa. Naíma me recebeu ali na porta da frente. — Ele esboçou um pequeno sorriso melancólico. — Ela já era uma adolescente. A filha mais linda e carinhosa do mundo… E depois — ele me olhou profundamente —, você me recebeu na cozinha. A família de Goku nos visitaria para um almoço e você preparava a maior quantidade de refeições que já vi na vida. — Ele suspirou. — Então, eles chegaram, almoçamos, passamos uma tarde agradável juntos e depois, à noite, quando todos foram embora, eu e você saímos para treinar, lá perto do nosso antigo Acampamento. No meio da luta, você se transformou em uma Super Saiyajin e me derrotou. — Ele deu um meio sorriso triste. — Na verdade, confesso que uma parte de mim fingiu perder só para ter a sua atenção, porque, depois do treino, nós… — Ele desviou o olhar e enrubesceu, passando a mão atrás do pescoço. — Nós fizemos… Bom, você sabe. — Ele me olhou nos olhos. — Foi nas Águas Termais. — Ele pigarreou. — Enfim, quando voltamos, ajeitamos as crianças na cama e fomos dormir. — Seu olhar se tornou suplicante. — Estava tudo bem, Lettie, eu juro! Tínhamos a vida perfeita! Eu, você… e os nossos filhos.
Cobri a boca em completo choque diante do relato do seu sonho, tão semelhante a inúmeras fantasias que já permiti minha mente imaginar da nossa família. Eu não conseguia ver mais nada, só Piccolo à minha frente.
Quer dizer que, por todos estes anos, ele de fato também sonhava o mesmo que eu? Caramba, ele sonhou que tínhamos gêmeos?! Nail e Daikon… Bem que achei o nome Nail bonito quando ele mencionou… E Naíma?? Se Piccolo teve este sonho quando morreu na luta contra Nappa e Vegeta, quer dizer que ele sonhou com ela antes mesmo dela sequer nascer!
Mas… Por que ele não seguiu adiante? Por que ele abandonou este sonho tão maravilhoso?
O QUE ACONTECEU???
Minha resposta veio logo em seguida, quando Piccolo continuou:
— Tudo estava perfeito, até que ele chegou.
— Q-Quem…? — Minha voz era um sussurro.
— Aquele que me atormenta desde então: meu Inimigo. — Sua entonação era carregada com amargura e dor. — Ele veio até aqui, na nossa casa, e não mostrou nem um pingo de misericórdia.
— O-O que ele fez? — Minha pulsação latejava nos meus ouvidos.
— Ele nos matou, impiedosamente. Primeiro os nossos filhos, inclusive Gohan, depois você e, por último, eu. — Piccolo soltou uma respiração trêmula e baixou a cabeça, deixando cair uma lágrima, então, voltou a me olhar com uma expressão desolada. — Lettie, sabe o que é assistir sua esposa e filhos morrerem bem na sua frente e você não poder fazer NADA? — Seu rosto se contorceu em desgosto. — Meu Inimigo é vil, maligno e cheio de ódio. Mas acima disso, é muito, muito poderoso.
— Quem você acha que é? — indaguei, assombrada. — Será que… é um dos Androides?
— Esse é o problema, eu não sei quem ele é. Não consegui enxergar sua forma definida. — Piccolo soltou um suspiro cansado. — A única coisa que sei é que, desde que ressuscitei em Namekusei, sua voz é uma constante ameaça na minha cabeça. Eu nunca mais tive paz. Todos os dias ele fala comigo, me atormentando e mostrando imagens suas e dos nossos filhos mortos. — Ele me fitou com olhos injetados. — Chega a ser bizarro! E-Eu… Eu não consigo afastá-lo, e é isso o que está me consumindo vivo, Lettie!
Sem querer, agarrei minhas roupas na região do peito, tamanha angústia me invadiu ao ver o quanto o homem que eu amo estava sofrendo. Nesse meio tempo, Piccolo outra vez me deu as costas e se apoiou no parapeito, parecendo assustadoramente exausto.
Após um longo minuto em silêncio, ele prosseguiu:
— Acredito que agora você entende o porquê de eu ter dito aquilo a Naíma. Se eu… — Ele soluçou. — S-Se eu ficar com vocês, corremos o risco do meu sonho se cumprir. Meu Inimigo vencerá, e a culpa será toda minha.
Meu coração se apertou de tal maneira que senti dor física, e a única coisa que senti por Piccolo foi a mais pura compaixão. Uma lágrima escorreu pela minha bochecha ao contemplá-lo ali. Mesmo sendo tão alto, ele parecia tão pequeno, tão frágil…
Foi então que aconteceu. Meu coração, que antes doía, de repente se expandiu com o alerta que recebi. Uma Voz, a mesma que me impeliu para sair de casa no dia que encontrei Naíma e que me disse que ela era minha, disse com clareza para mim: "Piccolo está sendo enganado."
Arregalei os olhos. Um calafrio percorreu minha espinha.
Tudo ficou claro.
O observei outra vez, ainda debruçado sobre o parapeito, numa postura arqueada e sofrida. Então, devagar, fui até ele. Com carinho, passei a mão pelas suas costas e o abracei de lado. Piccolo estremeceu com o meu toque, mas eu não o soltei. Fixei o meu olhar nele, o qual estava cabisbaixo, esboçando um semblante de dor, e eu disse:
— Por favor, me deixe te ajudar.
Piccolo cerrou os dentes e sacudiu a cabeça com força. Suas têmporas pulsavam. O que quer que o atormentava, estava ali, e atingia o seu ápice.
— EU JÁ DISSE QUE NINGUÉM PODE ME AJUDAR! — explodiu ele, desvencilhando-se de mim e se afastando pela varanda. Então, subitamente ele virou-se e me encarou, o rosto lívido. — Lettie, eu te imploro, entenda! EU. NÃO. POSSO! Não posso permitir que este futuro aconteça! Ora essa! De uma maneira ou de outra, ele já aconteceu!
— O que quer dizer? — Aproximei-me dele com meu corpo inteiro tremendo.
— Quer saber o que houve com Naíma no futuro de Trunks?!?! — Suas narinas inflaram. — ELA FICOU ÓRFÃ!!!
Suas palavras ecoaram pela varanda, e arquejei em estupefação.
— Pelos últimos três anos, escondi isso de você — continuou ele, seu rosto devastado. — Porque não queria que você soubesse o futuro terrível que a aguarda caso não derrotarmos estes malditos Androides. Só que agora, como você quer saber de tudo pela minha própria boca, irei te dizer: no futuro de Trunks, nós dois ficamos juntos, por um breve período, mas morremos logo em seguida pelas mãos dos Androides, e nossa filha ficou sozinha. — Ele soltou um choro pela garganta e sua voz se tornou fraca, quase um sussurro. — Ela seria uma bailarina, Lettie, uma bailarina… Mas desistiu de tudo para construir a máquina do tempo com a Bulma.
Lágrimas, fervilhantes e pesadas, escorriam pelo meu rosto até caírem pelo meu pescoço enquanto ouvi a descrição daquele terrível futuro; meu futuro, o futuro de Piccolo, e o futuro da nossa filha.
Nossa filha. Ele próprio admitiu isso.
Então, devagar e com os olhos inchados, Piccolo me olhou com pesado desgosto e disse:
— Não existe salvação para nós, Lettie. Nem aqui e nem em qualquer outra linha do tempo.
Não senti mais as extremidades do meu corpo. Entrei num estado de torpor dormente diante de tudo o que ouvi nos últimos minutos: o sonho de Piccolo com nossos gêmeos, com Naíma, nosso almoço em família, nosso treinamento, minha transformação em Super Saiyajin, nosso momento íntimo e romântico nas Águas Termais, e então, a morte dos nossos filhos, a minha morte, a morte de Piccolo…
E agora, o futuro de Trunks… o futuro de Naíma… Saber que ela é uma órfã naquela linha do tempo, que desistiu de seguir a carreira que sonhávamos desde já para ela… Saber que eu e Piccolo ficamos juntos, mesmo que por pouco tempo, mas que fomos mortos pelos Androides…
Nem percebi que Piccolo havia dado as costas para mim e se apoiado no parapeito outra vez numa postura cansada, e também nem percebi quando eu mesma me sentei na poltrona de vime para procurar apoio para as minhas pernas bambas.
Coloquei minha cabeça entre minhas mãos, passando meus dedos pelos meus cabelos, tentando recuperar o fôlego. Olhei de relance para Piccolo a uma certa distância. Ele parecia muito, muito pior do que eu, mergulhado numa grande aflição.
Ao vê-lo naquele estado, me lembrei do causador de tudo aquilo: o seu Inimigo.
As dúvidas começaram a rondar minha mente: Será que… Piccolo tinha razão? Será que não havia salvação para nós? Nossa família estava destinada a não se formar? Nosso único futuro envolvia apenas morte, tristeza e destruição?
Por um instante, o pânico e a ansiedade quiseram me dominar, e então, ela veio: uma voz estranha, sibilante como uma serpente maligna, querendo soprar algo macabro em meus ouvidos. Era uma sensação horrível e apavorante! Como Piccolo suportou tamanho tormento durante tantos anos?
Mas logo em seguida, aquela outra Voz, tão familiar, suave e meiga, sobressaiu àquela voz estranha: "Ainda há esperança. Em toda e em qualquer linha do tempo."
Uma grande paz invadiu minha alma. Fechei meus olhos, respirei fundo e me acalmei. Quando olhei para Piccolo de novo, ele ainda estava encurvado e em agonia, e o mais profundo amor preencheu meu coração.
Devagar, me levantei e fui até o seu lado, mas não o toquei.
— Volte para o Templo e descanse — eu disse, no tom mais calmo que consegui. — Não precisamos resolver isso agora. Amanhã cedo, venha até aqui. Deixaremos Naíma com Chi-chi e iremos juntos ao local de encontro combinado com Goku, Gohan e os outros guerreiros. Tudo bem assim pra você?
Piccolo virou-se para mim com uma expressão confusa e olhou-me por longos segundos. A essa altura, ele já não escondia mais suas lágrimas. Contudo, era nítido o quanto ele estranhou o meu comportamento diante de tudo o que acabamos de conversar. Provavelmente pensou que eu não permitiria que deixássemos este assunto pendente para outro dia. Eu mesma disse aquilo.
Mas agora, tudo havia mudado. Naíma tinha razão, eu não brigaria com Piccolo. Tudo o que ele precisava naquele momento era acolhimento, não repreensão.
— S-Sim, tudo bem pra mim — respondeu ele por fim, de cenho franzido e piscando várias vezes ao ainda esboçar confusão com meu repentino pacifismo. — Obrigado.
Acompanhei-o até as escadas da varanda e o assisti descê-las numa postura acanhada. Antes de levantar voo, Piccolo olhou para mim com o rosto em uma mistura de conturbação, vergonha e medo. Em resposta, eu lhe dei um pequeno sorriso gentil com um leve aceno de cabeça. Por fim, ele sumiu por entre as nuvens e fiquei sozinha.
Soltei um longo suspiro. Agora, meu desafio seria conversar com Naíma. Ela tinha apenas quatro anos — a mesma idade que Gohan tinha quando conhecemos Piccolo e iniciamos nosso Treinamento contra os Saiyajins —, e eu precisaria explicá-la de que ainda não era a hora de chamá-lo de papai. Seu coraçãozinho doce certamente entenderia que o homem que cuidou dela desde que era uma bebê não estava bem e precisava muito de ajuda.
Mas não seríamos nós quem iriam ajudá-lo.