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Capítulo 1: Kyara Klein

Como vim parar neste lugar? O que é que estou fazendo aqui? Que lugar é este? Estas eram as perguntas que pairavam sob a mente da jovem garota. O lugar era completamente branco, mas era o branco mais branco que ela já tinha visto em toda a sua vida. Havia duas cadeiras, cada uma de um lado de uma pequena mesa, nas quais em uma delas a garota se viu sentada.

Não fazia ideia de como tinha chegado ali, mas pelo menos tinha alguma noção de tempo. Fazia cerca de dez minutos que estava sentada naquela cadeira e tinha a impressão de que estava esperando por alguém, mas quem? Ela não sabia.

De repente, uma porta se abriu. A garota se assustou, pois as paredes eram tão brancas que não havia como notar a porta de mesma cor. Agora havia mais alguém além dela naquele espaço, o que de certa forma a confortou, mas ao mesmo tempo a fez mais preocupada. A pessoa entrou na sala e se sentou na cadeira do outro lado da mesa. Parecia apressada.

A jovem não era capaz de identificar quem era. Por algum motivo, sua visão estava um tanto embaçada e, por isso, não soube definir se aquela pessoa lhe era familiar ou não. Todavia, forçando os olhos e analisando atentamente, percebeu um homem de estatura média, de cabelos negros e lambidos para trás. Suas vestes eram mais difíceis de identificar, mas era perceptível que ele usava um sobretudo de cor bege. Seu rosto, no entanto, não havia como descrever. Estava embaçado demais.

- Kyara, sei que está confusa, mas preste bastante atenção. Nós não temos muito tempo.

O homem logo começou a falar. Iniciou-se uma conversa que duraria por cerca de quinze minutos. A garota participou avidamente do diálogo e, por razões que ela mesma desconhecia, se sentiu acalorada falando com aquele indivíduo misterioso. Nunca havia ouvido a voz daquela pessoa, mas tinha plena convicção de que a conhecia. Por mais que o homem se dirigisse a ela em um tom apressado e sério, era impossível não achar sua voz um tanto acolhedora.

Contudo, conforme o diálogo prosseguia, a audição da jovem parecia atrofiar e as falas do indivíduo de sobretudo se tornavam cada vez mais ecos indecifráveis. Além disso, sua visão se tornou mais e mais embaçada.

A garota se desesperou, interrompendo a conversa. Perguntou a si mesma incessantemente o que estava acontecendo. Queria continuar a conversar com aquele estranho por horas, mas sentiu que o tempo de ambos havia acabado. Um pouco a contragosto, finalmente iria embora daquele lugar.

- Quero tanto te falar tudo que sei, mas nosso tempo se esgotou. Procure por Yahiko Yamazaki, ele vai te ajudar. Por favor, tome cuidado, Kyara...

Apesar de não ouvir claramente, a jovem ainda era capaz de entender certas falas.

- E lembre-se...

Àquele ponto, ela começou a sentir a sala inteira tremer, como se fosse um terremoto. Ao mesmo tempo, não enxergava mais nada, apenas um enorme borrão. Sentia que a qualquer momento tudo iria desabar em sua cabeça. Sua aflição aumentou e seu coração batia forte e rapidamente.

- Eu te amo.

Estas foram as últimas palavras que a garota ouviu antes de ir embora.

Kyara Klein acordou sentindo algo cutucando sua bochecha esquerda.

- Vamos, Kyara, acorde... Tá todo mundo olhando... – Sussurrou uma voz feminina em seu ouvido.

A garota abriu os olhos lentamente e piscou algumas vezes, com sua cabeça deitada sob a carteira e um pouco de baba escorrendo pelo canto de sua boca. Após processar a situação, de repente ela se deu conta e se levantou no maior susto. Seus olhos azuis cintilantes estavam arregalados, seus cabelos lisos e castanho-claros que iam até o pescoço esvoaçados, e sua grande touca preta ao redor da cabeça entortada.

Todos na sala de aula caíram aos risos com a reação espantosa de Kyara despertando de seu sono profundo, o que a fez corar fortemente. Ela então olhou para seu lado esquerdo e se deparou com quem estava cutucando sua bochecha. Sua melhor amiga, Mônica Amorim, com seus vívidos olhos cor de âmbar, olhava diretamente para Kyara em expressão de preocupação.

- Tenho certeza de que fiquei quase meia hora tentando de acordar! Você realmente tem sono pesado, viu. Não pode perder essa aula, matemática é sua pior matéria! – repreendeu Mônica.

- Ah... F-foi mal... – disse Kyara envergonhada, endireitando sua touca.

- Bem, agora que acordou de seu sono de princesa, quem sabe não presta atenção na aula? Além disso, acho que já falei mais de quinhentas vezes que bonés, toucas e capuzes não são permitidos dentro da sala de aula. – disse o professor de matemática em frente a um quadro cheio de números e cálculos, de braços cruzados e uma expressão séria no rosto.

- M-mas... Tá bem...

Kyara, acompanhada de mais risinhos de seus colegas, retirou sua touca e a guardou na mochila. Ninguém fazia ideia disso, mas ela tinha extrema dificuldade em ficar sem sua touca, pois o cocuruto de sua cabeça ficava exposto, o que por alguma razão a deixava em enorme desconforto. Todavia, Kyara pensou que tentar explicar isso a seu professor soaria estúpido demais, então se manteve quieta.

A garota sentou-se em sua carteira e estava decidida a prestar o máximo de atenção possível à aula (pelo menos aos últimos quinze minutos dela). O que não deu muito certo. Kyara tentava se concentrar, mas não conseguia de jeito nenhum parar de pensar no sonho estranho que havia tido. Aliás, não podia deixar de se sentir um tanto frustrada ao perceber que não lembrava de maior parte da conversa com o homem de sobretudo bege.

Sua mente era pura inquietação e a falta da touca em sua cabeça não ajudava nem um pouco. Batia seu pé direito no chão freneticamente, passava o polegar sob os lábios e constantemente olhava para os lados, com uma expressão tensa no rosto, tentando se lembrar do sonho. Kyara não entendia o porquê, mas aquilo que sonhou a intrigou profundamente.

Havia tantas perguntas. Quem era aquele homem? Do que eles conversaram o sonho inteiro? Tomar cuidado com o quê? E principalmente: quem é Yahiko sei lá o quê?

Kyara se tornou tão absorta em seus pensamentos que, quando percebeu, todos já saíam para o intervalo. A aula de matemática havia acabado e ela não prestou atenção em absolutamente nada. A garota se apressou, pegou sua touca da mochila e andou até Mônica que estava acenando e a esperando na porta da sala. As duas foram em direção aos corredores da escola.

- Às vezes acho que o professor Edgar me detesta... – Disse Kyara se lamuriando ao mesmo tempo em que colocava sua touca novamente.

- Talvez seja porque você nunca presta atenção nas aulas dele. Ou você dorme, ou puxa conversa com alguém, ou simplesmente viaja na maionese. Na verdade, pensando bem, você faz isso em todas as disciplinas.

- Não é de propósito!

Mônica deixou escapar uma breve risada.

- Eu sei, eu sei... Mas você precisa se esforçar! Estamos no último ano do ensino médio! Nos anos anteriores você passou de raspão, mas dessa vez não creio que vai ser fácil. É muita matéria!

- Ugh, sim...

- Só estou preocupada com você. Sabe que sempre pode me pedir ajuda nos estudos, né?

- Claro... Obrigada! – Disse Kyara se animando e abrindo um largo sorriso para sua amiga, que retribuiu sorrindo também.

Mônica era a aluna com as melhores notas da turma, talvez até de toda a escola. Uma pessoa inteligente, dedicada, calma, gentil e simpática com todos. Uma garota excepcionalmente bonita, com seus longos cabelos ruivos, olhos cor de âmbar e um sorriso capaz de aquecer o coração de qualquer um. Obviamente, bastante popular. Ela e Kyara se conheceram no quarto ano do ensino fundamental e, desde então, vivem andando juntas para lá e para cá. Até hoje, Kyara não faz ideia do porquê Mônica ter se tornado sua amiga. Para ela, as duas são completamente opostas uma da outra.

- Ah, e mais uma coisa – disse Mônica agora em um tom mais sério – Ultimamente você tem dormido muito mais do que de costume nas aulas... Está tudo bem?

- O quê? Óbvio que tá tudo bem! Que pergunta é essa? – Perguntou Kyara ainda mais sorridente que antes.

- Novamente, apenas me preocupo com você. Se estiver com dificuldade pra dormir, tente tomar um chá de camomila ou pingar óleo essencial de lavanda no seu travesseiro. Ajuda bastante.

- Uau... Obrigada pelas dicas, mas não é nada demais! Eu passo a madrugada inteira navegando pelo celular e quando vejo já é hora de acordar! A culpa é minha! E não se preocupe, já estou trabalhando para eliminar este hábito horrível de minha vida! – Exclamou Kyara em tom de determinação.

- Fico feliz em ouvir isso! – disse Mônica retornando a seu sorriso caloroso.

As garotas caminharam até o refeitório e se sentaram em uma das mesas juntamente com outros alunos.

- Eu vou lá na fila pegar alguma coisa pra comer. Vai querer também? – Perguntou Mônica.

- Ah, hoje não. Não estou com fome, te espero aqui. – Respondeu Kyara sorrindo novamente.

A jovem de cabelos ruivos seguiu em direção a fila da cantina.

- Fiquei sabendo que uma certa baixinha dormiu na aula de novo... – Uma voz masculina falou.

Kyara bruscamente se virou para seu lado direito e se deparou com um garoto loiro, de cabelos curtos e encaracolados, olhos castanho-escuros, usando um moletom cinza, luvas vermelhas e um cachecol azul-anil enrolado em seu pescoço. Ele estava sentado a seu lado e sorria debochadamente para a garota.

- Ah, é você, João Vitor!

- Já te disse para me chamar de JV!

- ... JV?

- Sim! É muito mais legal.

João Vitor Muniz (ou JV, porque é mais legal) está no mesmo ano que Kyara, porém, em uma turma diferente. Estudaram juntos no primeiro ano do ensino médio e, desde então, ele vive pegando no seu pé, mesmo que agora estejam separados.

- ... Por que você sempre vem com tanta roupa? – Indagou Kyara.

- Hoje tá frio, ué.

- Pra você sempre está frio então! Todo o dia vem para a escola agasalhado! Hoje está um dia quente!

Kyara estava falando a verdade. Aquele era um dia de calor e todos os alunos usavam camisas de manga curta brancas e bermudas ou saias azul-escuras, assim como manda o regulamento da escola. Todavia, além do moletom, das luvas e do cachecol, JV vestia calças pretas e ainda, se duvidar, uma ceroula por baixo delas.

- Ora, você usa essa touca preta o tempo todo e eu não falo nada! Por que você a usa?

- Bem, ahn... É difícil de explicar... Você me acharia estranha se eu te dissesse...

- Eu já te acho estranha naturalmente.

- Ei! Olha quem fala!

- Okay, então é como eu imaginava. Você usa essa touca pela mesma razão que uso tudo isso de roupa...

- ... E qual razão seria essa? – Perguntou Kyara agora genuinamente curiosa.

- Rebeldia.

- O quê?!

- Claro! Somos dois rebeldes lutando contra o sistema! Nunca fui fã da ideia de a escola querer ditar o que podemos vestir ou não. Devemos nos juntar e liderar uma revolução!

- N-não é isso!!

JV caiu nas gargalhadas ao observar Kyara embaraçada, tentando negar a todo custo que era uma rebelde.

- Ai, ai... Brincadeiras a parte, pensei já ter falado a você que minha imunidade é bem frágil. Tenho muita facilidade pra ficar doente, sou assim desde criança. Por causa disso, também sinto frio dez vezes mais que pessoas comuns! – disse JV, como se isso fosse algo para se vangloriar.

- Então não é por rebeldia?

- Claro que também é por rebeldia! Morte ao sistema!

- Ugh... Enfim, como ficou sabendo que dormi na aula?

- Boatos se espalham rápido.

- Que ótimo... – disse Kyara sarcasticamente.

- Relaxa, pelo menos não inventam boatos de que você finge estar doente o tempo todo só para faltar as aulas.

- Sinto muito por você.

- Às vezes eu finjo mesmo.

- Do que vocês estão conversando? – Perguntou Mônica, que havia acabado de voltar da fila com um pastel assado em mãos e se sentou ao lado esquerdo de Kyara.

- Ah, Mônica! Nada demais, apenas arquitetando uma revolução. – disse JV aos cochichos.

- Não estamos arquitetando nada! – exclamou Kyara.

Mônica não pode deixar de rir da interação dos dois.

- Ainda bem que está aqui, minha cara. Estou precisando de ajuda com alguns exercícios de biologia. Eu recorreria a Kyara, mas creio que ela deve ter dormido nessa matéria também.

- Não precisa humilhar, né?!

- Claro, eu te ajudo depois!

Kyara, Mônica e JV passaram alguns minutos jogando conversa fora, quando repentinamente o refeitório inteiro ficou em silêncio. Os três estranharam, era como se estivessem sozinhos ali. Querendo compreender o que havia acontecido, olharam para todos os lados tentando achar a causa de toda aquela quietude.

Eis que se depararam com dois alunos em pé. Um parecia extremamente assustado, estava trêmulo e boquiaberto, parecendo tentar falar alguma coisa, mas seu medo era tão grande que suas cordas vocais travaram. O outro era o oposto. Parecia abominavelmente sério.

Era um garoto moreno, magro, de cabelos negros e horrivelmente despenteados. Seus olhos eram verdes e penetrantes, e havia uma pequena pinta em sua bochecha esquerda. Ele vestia uma camisa branca amassada e abotoada da forma mais desleixada possível, calças azul-escuras e sapatos desamarrados. Suas costas eram curvadas e sua altura, se Kyara tivesse que chutar, seria de quase dois metros. Ela, que já se sentia pequena com seus 1,50 de altura, se sentiu uma anã ao se comparar com aquele rapaz.

Os dois garotos se olhavam. O assustado parecia prestes a explodir de nervosismo, enquanto o sério tinha um olhar ameaçador. Ao observar atentamente, Kyara entendeu o que aconteceu. As calças do rapaz assustador estavam molhadas e o garoto trêmulo tinha em mãos o que parecia ser uma garrafa de suco pela metade.

- D-d-desculpe! – Exclamou o garoto que finalmente conseguiu falar. Ele havia derrubado seu suco nas calças do outro e agora temia por sua vida.

O rapaz de olhos verdes continuou sério, sem falar nada, mas com uma expressão ainda mais ameaçadora. Parecia que ia avançar a qualquer momento. Contudo, antes que pudesse fazer qualquer coisa, o garoto assustado saiu correndo. O grandalhão apenas olhou para suas calças molhadas pingando e se retirou do refeitório por uma direção oposta.

Após mais alguns segundos de silêncio, aos poucos, as pessoas foram voltando a conversar.

- Caramba, aquele cara é um novato, não é? Assustador, só a aparência dele me deu frio na espinha... – disse JV de braços cruzados como se estivesse tentando se aquecer.

- Estranho, creio já ter visto ele em algum lugar... – disse Kyara pensativa.

- Ele é da nossa turma, Kyara. – afirmou Mônica após engolir o último pedaço de seu pastel.

- O quê?! Bem, parando pra pensar agora, realmente me lembro dele estando em nossa sala, mas nunca o ouvi abrir a boca! Sem falar que ele senta bem no fundão, é como se fosse invisível!

- Ele falou quando foi se apresentar para a turma, mas óbvio que você não prestou atenção. Apenas disse que seu nome era Dan Ockerman e imediatamente se sentou. Sinceramente, não deixou uma boa impressão...

- Que cara esquisito...

E então, o sinal tocou. O horário de intervalo havia terminado e os três se despediram, retornando às suas salas. Foram mais três aulas. História, Física e Química respectivamente. Kyara, como de costume, não parou quieta em nenhuma delas. Os professores constantemente chamavam sua atenção, porém, não adiantava de nada.

Após o fim de mais um dia de escola, Kyara se despediu alegremente de Mônica e JV, que iam almoçar e continuar na escola para estudar biologia juntos. Ela foi convidada, mas preferiu recusar, pois não tinha dinheiro para almoçar lá hoje.

No caminho para casa, a garota sentia muita fome e começou a correr para chegar o mais rápido possível. Kyara era uma exímia corredora. Nas corridas de educação física, raramente não alcançava primeiro lugar. Era a única coisa em que se considerava boa de fato. Enquanto corria, pessoas que a avistavam a olhavam impressionadas.

Ao finalmente chegar no prédio onde morava, estava bastante suada. Precisava urgentemente de um banho, mas sua fome era ainda mais urgente. Era um prédio branco de doze andares e com uma pintura meio acabada. Kyara cumprimentou sorridente o porteiro logo na entrada, seguiu em direção ao elevador e o utilizou até chegar ao quarto andar, onde se localizava seu lar, o apartamento número 13. Tirou suas chaves da mochila, destrancou a porta, girou a maçaneta e entrou.

- Boa tarde a todos!! – exclamou a jovem em excitação.

- Só tem eu aqui, Kyara... – disse Mirela Klein, sua tia, erguendo um leve sorriso no rosto.

Tia Mirela era a responsável por Kyara. Uma mulher de aparência relativamente jovem para sua idade. Seus cabelos eram mais compridos e menos lisos do que os de sua sobrinha, mas eram do mesmo castanho-claro, tirando alguns fios grisalhos. Seus olhos eram da mesma cor de seus cabelos e pareciam estar sempre cansados, ao contrário dos de Kyara, que eram azuis, brilhantes e cheios de energia. Ainda estava vestindo seu pijama rosa, pois trabalhava em casa e, por isso, não via necessidade de mudar de roupa. Trabalhava na área de suporte ao cliente de uma empresa. Ela estava na sala, sentada em uma escrivaninha com o notebook de seu trabalho ligado.

- Heh, eu sei... – disse Kyara enquanto trancafiava a porta.

- Boa tarde pra você também. A mesa já está arrumada, vamos almoçar. – disse a tia se levantando, dando um abraço em sua sobrinha e se direcionando para a cozinha.

- Caramba, eu estou com fome! – a garota exclamou tirando sua mochila das costas e a deixando no sofá.

O almoço daquela tarde era uma bela macarronada com molho de tomate, carne moída, pedaços de calabresa, milho e ervilha. Estava dentro de uma enorme panela e se servia com um pegador de massa metálico. Kyara se serviu e comeu como se não houvesse amanhã.

- Coma devagar... – advertiu tia Mirela com um sorriso simpático.

- M-mesgulme – se desculpou Kyara com a boca cheia.

- Então, como foi a escola hoje?

Kyara mastigou bem a comida, engoliu e respondeu:

- O mesmo de sempre! Foi legal!

- Dormiu na aula de novo?

Kyara engoliu seco.

- Ahn...

- Sim, você dormiu. Está estampado na sua cara. – disse Tia Mirela que, em seguida, deu um longo suspiro e continuou – Sei que muitas vezes a escola é chata e é difícil de prestar atenção, mas não consigo deixar de me preocupar com você. Suas notas têm despencado cada vez mais, e se você repetir de ano, não sei se serei capaz de continuar pagando a escola. Infelizmente, dinheiro não dá em árvore. Por favor, não encare isso como uma bronca. Sou sua tia e quero o seu melhor. Apenas peço para que pense mais sobre seu futuro.

A fala de Tia Mirela foi seguida de um silêncio pesado. Kyara estampou uma expressão triste em seu rosto e desviou seu olhar de sua tia, direcionando-o para a comida que ainda havia em seu prato.

- Sim... Eu entendo...

O resto do almoço foi seguido de um enorme silêncio, com uma Kyara melancólica e uma Tia Mirela se sentindo culpada por ter estragado o clima alegre e descontraído de antes. A garota terminou seu prato mais rápido que sua tia, lavou sua louça, guardou a panela da macarronada na geladeira, pegou sua mochila no sofá da sala e foi para seu quarto.

- Só deixe seu prato na pia que eu lavo depois. – disse Kyara em voz alta para Tia Mirela escutar, forçando um sorriso antes de fechar a porta.

Seu quarto tinha paredes brancas, um armário preto aberto e com roupas bagunçadas no canto superior esquerdo, uma mesa e cadeira marrons com notebook, canetas, lápis, borrachas, folhas, cadernos e livros espalhados no canto inferior direito, uma cama de solteiro desarrumada, uma mesa de cabeceira branca com um abajur vermelho acima próxima do canto inferior esquerdo, bem ao lado da cama, e uma pequena estante rosa de livros organizados de forma aleatória no canto superior direito. Havia uma janela com cortinas roxas que dava vista a muitas outras casas e prédios.

Kyara, ainda desolada, lançou sua mochila no chão e se jogou em sua cama, permanecendo nela por alguns minutos, reflexiva.

- Pensar mais sobre meu futuro...

Por mais que doesse admitir, Kyara sabia que sua tia estava certa. Ela não podia continuar daquele jeito. Por mais que tivesse dificuldade em se concentrar, isso não a evitaria de repetir de ano. Realmente, estava na hora de começar a pensar mais não apenas nos estudos, mas também no que iria fazer de sua vida após o ensino médio.

- ... Merda... Eu preciso parar de ser tão inútil...!

Ela então se ergueu, com seus olhos lacrimejando, pegou seus livros e cadernos da escola e decretou a si própria:

- Vou estudar até não poder mais!

E assim fez. Passou horas estudando diferentes matérias, principalmente para as provas de semana que vem. Diversas vezes desviava sua atenção ou quase caía no sono, mas persistiu. Depois, fez vários e vários exercícios. Kyara sentiu que nunca havia se focado tanto para algo em toda sua vida.

O tempo foi passando e, quando viu, era quase oito horas da noite. Ao ver o horário em seu celular, ela se surpreendeu consigo mesma. Saiu do quarto para comer alguma coisa, pois estava faminta novamente.

Kyara encontrou sua tia deitada no sofá e assistindo televisão na sala, o expediente dela já havia terminado. Elas cruzaram olhares e acenaram com a cabeça uma para a outra simpaticamente, como se nada tivesse acontecido. As duas tiveram uma conversa descontraída sobre a escola e clientes engraçados que ligavam no trabalho, enquanto sentadas no sofá e com a televisão agora passando o jornal. Viram que estava na hora de jantar e Tia Mirela desligou a TV quando estava prestes a começar uma reportagem sobre pessoas que morreram por causas desconhecidas na cidade. Não era o conteúdo ideal para se acompanhar enquanto come.

Depois de jantar a mesma macarronada do almoço, Kyara lavou a louça, deu boa noite a sua tia e se recolheu em seu quarto. Finalmente havia chegado a hora de dormir. Por ter gastado horas de seu dia estudando feito louca, estava exausta. Nem havia tomado banho ainda e optou por tomar amanhã de manhã. Retirou suas roupas da escola, pôs um pijama amarelo com listras lilás, continuou com a touca preta em sua cabeça, desligou as luzes, deitou-se na cama desarrumada, encarou o teto por alguns segundos, esboçou um sorriso de tranquilidade e lentamente fechou seus olhos.

Tudo estava bem. Havia um silêncio pacífico no ar. Kyara, com seus olhos fechados, sentiu estar começando a afundar em sua própria mente. Ela estava prestes a cair no sono.

- ... Ssssssaaaaangue...

Imediatamente Kyara abriu seus olhos, levantou-se e olhou para todos os cantos. Estava assustada. Seu coração palpitava como nunca. Tinha a impressão de ter ouvido alguém. A voz pareceu estar em seu quarto e não era nem um pouco semelhante à de sua tia. Não era doce e acalorada, mas sim gélida e estridente.

Após checar tudo em seu quarto, suspirou de alívio, deitou-se novamente e encarou o teto.

Havia manchas negras por toda a parte. Manchas que não haviam como estar ali antes. Kyara fez uma expressão horrorizada.

- Não... – Sussurrou a garota.

Aos poucos, as manchas se intensificaram e começaram a tomar forma. Braços começaram a aparecer no teto. Eles eram imundos, mutilados, com unhas grandes e afiadas, e a pele deles parecia carne podre. Os braços queriam alcançar Kyara a todo custo, mas não conseguiam chegar perto o suficiente.

- Não... De novo não... Não... – disse ela petrificada de horror.

Em seguida, faces começaram a surgir também. Rostos desfigurados, cheios de cicatrizes, com expressões agressivas e desesperadas. Bocas enormes com dentes sujos, olhos completamente brancos e o que parecia ser sangue escorrendo deles. E então, várias vozes começaram a falar, acompanhadas de gritos e choros.

- ... Me ajude... Me ajude...

- ... Socorro...

- ... Sssssssaaaaanngue... Ssssssaaaaaanngueeee... SSSSAAAAANNNGUEEE!!!

Kyara lentamente se levantou de sua cama, em choque, vendo aquelas aberrações no teto de seu próprio quarto e ouvindo todas aquelas vozes, sem saber o que fazer. Pelo menos lidou com isso melhor do que da primeira vez, pensou.

Ela saiu de seu quarto e caminhou até a sala, o que não adiantava de nada, pois as criaturas e as vozes também estavam ali. Elas estavam por todo o apartamento, mas apenas Kyara as enxergava e as ouvia.

Convencida de que seria mais uma noite na qual não dormiria, a garota pegou seu celular e passou a madrugada inteira tentando se distrair, procurando pensar em qualquer outra coisa. Estava acostumada, pois afinal, era por aquilo que ela passava todas as noites.