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Capítulo 4

"Últimos suspiros"

~ Arty ~

O enterro de Kya prosseguiu quase imediatamente ao anúncio público de sua morte. Como se tivessem esquecido de tudo que passou, ou melhor, como se tivessem superado tudo aquilo. Arty e Shaya permaneceram de mãos dadas observando o corpo de Kya sendo preparado para o funeral, para sua mãe seria uma última grande honra ser enterrada nos costumes da terra de sua família, mas Abel Insistiu que uma rainha de Babylon deveria ser enterrada nos costumes de Babylon. Alguns criados lavaram seu corpo com cuidado, ele estava repleto de machucados os quais eles tentaram esconder, e começaram a aplicação de óleos e ungüentos perfumados com as essências das flores que cresciam nos jardins, rosas, papoulas, narcísicos e lírios.

Com o corpo pronto, depois de ser todo embelezado para esconder o que tinha acontecido na estrada, uma passeata do castelo até a cripta da família real começou onde o corpo seria então queimado e teria suas cinzas guardadas junto a outros parentes de Shaya. Ela se recusou a ir, estava sentada em um dos terraços apenas observando o corpo da sua mãe passeando pelas ruas, Arty chega, carregando com sigo a espada de Kya.

—Acho que você vai querer ficar com isso? — disse ele, inclinando a bainha da espada para ela

—Acho melhor você ficar com ela.

—Isso é uma lembrança da sua mãe, Shaya. Ela iria querer que você ficasse com isso. — Arty aproximou ainda mais a espada dela, a pressionando sobre sua roupa fúnebre.

—Você é muito melhor com a espada e eu quero focar em aprender artes marciais agora. — Ela dá uma pequena pausa e enquanto olha para o céu diz — Não faz sentido eu ficar com ela só pra deixá—la mofando no meu quarto.

Arty recuou com a espada e abraçou o pequeno pedaço de metal embainhado.

—Vou sentir saudades dela. — disse ele, agarrando ainda mais

Ambos ficaram em silêncio por um tempo, a noite jazia calma apesar de tudo. Os pequenos insetos voadores que sobrevoavam o terraço, tão desapegados de qualquer sentimento humano, desapegados daquela situação toda.

Kya bravamente defendeu a caravana contra um grupo de dezenas de bandoleiros. Os soldados contaram aos empregados e os empregados contaram a Arty em como ela vingou cada morto, a cada companheiro caído ela derrubava pelo menos três ou quatro atacantes com bravura e com uma postura impecável, golpes com previsão e sem nunca virar as costas para um inimigo. Quando estava sozinha e cercada já havia derrubado pelo menos vinte deles, machucada, não teve chances contra um desperto que apareceu entre os covardes.

Shaya segurou as duas mãos de Arty.

—Me prometa. — Disse ela

—Prometer o que?

—Eu sei que ela morreu lutando. Me prometa que você vai se tornar forte o suficiente para nunca perder uma luta como ela. — Respondeu ela, exaltando sua voz para além do luto.

—Não. — Disse friamente Arty

Shaya parecia indignada. Arty apertou com força as mãos de Shaya.

—Me prometa você. Me prometa que nós dois vamos ser fortes! Mas fortes que sua mãe e mais fortes que seu tio!

— Eu prometo.

Eles se abraçaram silenciosamente. O castelo estava quase que completamente vazio, a procissão já retornava ao horizonte visível e as coisas se punham no caminho para a construção de uma nova normalidade, uma normalidade sem Kya.

No quarto de Shaya, ele limpava calmante a lâmina suja de sangue da arma de Kya com um pano branco. Enquanto estava concentrado Shaya o questionava morbidamente.

—Será que esse sangue é da minha mãe ou da pessoa que ela estava enfrentando?

As palavras fugiram da sua boca, não sabia como responder aquilo ou se aquilo tinha realmente uma resposta. Talvez não tivesse, talvez não precisasse ter.

A porta abriu em um estalo forte. Do outro lado uma soldado com a armadura da guarda real, com adornos dourados e tudo que tinha direito. Com a salva exceção da espada, no seu lugar um arco de madeira branca e três grandes pedras vermelhas encravadas e ornamentados guardava em suas costas.

— Senhorita Shaya. — ela proclamou, ofegante. — Que bom que está aqui. Seu pai mandou a guarda te escoltar até o portão e fugimos imediatamente para o deserto.

Shaya se levantou imediatamente.

— O que? — Ela estava visivelmente confusa. — O meu pai mandou? Por quê? Cadê os outros soldados? Se explique.

— Minha senhora, o resto da guarda morreu no caminho até aqui. Isso é uma revolta do seu tio.

Agora, quando encarava melhor a soldado, percebia como sua armadura estava lotada de cortes e amassados. Seu arco também não era mais tão gracioso quando se reparava nas manchas de sangue nas pontas das flechas e do seu claro desgaste. Ela ofegava, seus cabelos loiros esbranquiçados caiam do capacete como um rio que transbordava, empapados de suor e grudados na pele. Sua estatura também não era muito maior que a deles, talvez fosse só um ou dois anos mais velha.

— Ele também foi o responsável… pela morte da sua mãe. Peguem suas coisas, temos que ir imediatamente.

Shaya não teve nenhuma reação exagerada, pelo contrário, pegou uma pequena caixa debaixo da sua cama e juntou com alguns vestidos e os ornamentos da sua mãe para o cabelo, jóias e um pequeno caderno de capa de couro. Juntou tudo muito rápido e em um instante já estava pronto. Ela claramente estava tentando conter seus sentimentos naquela situação.

— Minhas coisas… — Não podia deixar de pensar.

— O ataque começou pela torre vermelha. Protegemos o prédio principal até agora mas as defesas estão caindo, parece que eles se uniram com a ordem do círculo vermelho. O senhor Abel mandou a guarda levar sua filha a um lugar seguro antes das rotas de fuga se fecharem.

— Meu pai… — suas bolsas escorregavam devagar pelos dedos.

— Um rei não abandona seu castelo e nem o seu povo, minha senhora.

Abandonar tudo que tinha, de novo, era frustrante. Mesmo se conseguisse retornar para buscar suas coisas, o que parecia improvável, fazia tudo perder o sentido. Fugir de novo. De seja lá onde para a cidade porto, da cidade porto ao castelo e do castelo a seja lá onde for, dessa vez com uma soldada exausta, uma princesa até pouco tempo atrás extremamente mimada e uma espada chique e embelezada como suas únicas companhias. Com certeza era mais doloroso para Shaya, não sabiam nada, e se isso para ele era sufocante para ela deveria ser insuportável. Como se um fogo queimasse de dentro pra fora.

Sua mãe e em tão pouco tempo a possibilidade de também perder seu pai e a sua casa. Tudo estava acontecendo rápido demais, em alguns instantes poderia não ter nada, assim como ele.

Tudo era rápido e acontecia mais rápido ainda. Não havia mais pessoas circulando pelo palácio e os barulhos do bater de aço podiam ser ouvidos a quilômetros de distância.

Por um momento, enquanto pulavam de uma sacada caindo em um dos jardins dos terraços, Arty pensou em Baltazar. Ele era um manto, afinal, deveria ter imunidade diplomática ou neutralidade política, algo assim pelo menos.

— Senhora soldado.

— Pode me chamar de Lina, Arty. — Mesmo ofegante, Arty sentia agora a voz doce e acolhedora da mulher.

— Senhora… digo, Lina, teria notícias do Baltazar?

— Aquele homem… bem não sei como dizer isso exatamente mas… pelo visto ele é uma das cabeças por trás desse golpe de estado. — ela continuava a falar mesmo que Arty agora estivesse desconectado do mundo real. — Sei que ele era importante para você. Eu vi nos olhos dele que ele esperava grandes coisas de você quando me mandou abrir os portões naquele dia.

Baltazar era seu pai. Não importava como olhasse para ele e todas as coisas que ele fez antes. Ele era seu pai, não de sangue como o que o abandonou, mas de coração e de mente. Ele o ensinou e o deu valores aos quais seguir.

Talvez devesse os questionar agora, ou quem sabe agora alguns comentários dele fizessem sentido. O círculo vermelho era uma das ordens de religiosos e credores que sobreviveram ao declínio e criaram raízes fortes na cultura dos países mundo afora. Diferente de outros, no entanto, eles nunca perderam a verdadeira fé, eles lutam entre as entranhas do submundo, se infiltrando em cada país e em cada cidade buscando um modo de fazer os deuses voltarem ao nosso plano. Pouco se sabe na verdade sobre eles, são reclusos e apenas alguns punhados de seus membros já foram descobertos na história desde o ano zero. Mas de uma coisa todos sabiam, quase como sendo senso comum, tudo de ruim e todas as desgraças do mundo são acompanhadas do "problema vermelho", como são chamados.

Eles estão dispostos a tudo para trazer aqueles seres de poderes inimagináveis de volta. Tudo.

A beira do último terraço não era tão distante do chão e era bastante próximo do muro daquele lado.

— Vamos pular. — foi o que Lina disse.

— Eu vou primeiro.

Shaya ainda estava com suas sacolas carregando duas coisas. Com dificuldade e um conseguiu pular, suspirou por alguns momentos antes e conseguiu relativamente com facilidade e destreza. Era uma guerreira nata no fim das contas. Arty era diferente. Mesmo se se destacasse uma vez ou outra no uso da espada não conseguia competir com Shaya ou até mesmo com os recrutas da guarda.

Agora que parou para pensar, provavelmente aqueles garotos tão alegres e esforçados estariam, provavelmente, mortos também.

Lina o pegou no colo antes que pudesse perceber.

— Um salto de fé, amigo.

Ela pulou, melhor do que Shaya, pousando de maneira limpa e sem nem ao menos fazê—lo balançar na decolagem.

Fugir foi fácil e em pouco tempo já estavam a quilômetros do palácio. Do topo da colina, às margens do vale, era possível ter uma maior dimensão da situação. O fogo tinha tomado conta da maioria dos prédios auxiliares como o quartel e a cozinha. De longe era possível notar também o cerco nos portões da frente com soldados que estampavam o símbolo de um círculo vermelho em estandartes de fundo preto.

Uma corneta soou e os soldados entraram, cercando o então intocável prédio principal. Era questão de tempo.

— Vamos.

Lina os guiou pela passagem montanha adentro até o deserto dourado de Dersil. Já estavam longe o suficiente quando o sol se pôs e puderam finalmente descansar escondidos entre duas dunas.

— O que vamos fazer agora? — perguntou Shaya que estava abraçando suas pernas. — Vamos ficar aqui fora?

—Bom… não exatamente aqui, sabe? Temos que ir para longe, seu tio provavelmente vai mandar soldados para procurar você. — Shaya baixou sua cabeça e ficou em posição fetal enquanto tentava abafar seu choro — Alguma ideia de lugar pra ir ou alguma coisa pra fazer? — Arty perguntou, tentando animá—la.

Ela continuou calada enquanto afundava seus pés na areia.

—Sabe, eu sempre quis ir pro lugar que o Baltazar estudou. "O poço do conhecimento berço do humanismo moderno", por mais que ele tenha me instruído muito bem, eu queria oficializar isso, entendeu? Me formar e essas coisas…

—Você é maluco, Arty? A gente literalmente acabou de perder tudo.

— Isso é novidade para você? — Shaya ficou calada — Olha, desculpa. Primeiro sua mãe e agora seu pai eu só… sinto muito.

— Nosso país tem uma aliança com a família que governa as ilhas Borea e também podemos pedir ajuda aos exércitos livres da Coalizão!

—Shaya, a Coalizão não se mete em assuntos dessa… índole, digamos assim.

—Mas eles podem ajudar em um golpe de estado desse tipo, não é?

—A Coalizão não se mete em assuntos de nações assim, como uma organização não governamental eles existem só para livrar o mundo dos monstros deixados pelos deuses.

—Eu tenho certeza que o Gran Mestre vai aceitar nosso pedido de apoio militar — Arty se mostrou relutante com a afirmação de Shaya — Podemos ir para lá depois de irmos para o Reino Borea! Assim teremos a força de dois exércitos poderosos.

Quando a noite caiu eles já estavam andando a algum tempo, ideia da Lina, queria ganhar tempo e espaço e aproveitar cada segundo antes de começarem a procurar por eles. A areia afundava seus pés a cada passo, quase como se quisesse propositalmente atrasar eles.

—Aquilo é uma miragem? — indagou Shaya.

—Com esse frio? Acho difícil…

—O que você acha, Arty? — questionou Lina, apontando para uma silhueta feminina que se aproximava.

—Bom, os inimigos ficaram pra traz…

A silhueta se aproxima mais e mais a cada passo até que toma forma. Era uma garotinha, pálida com cabelos curtos tão escuros como o céu da noite, marcas triangulares vermelhas desenhadas abaixo de seus olhos e um estranho chapéu quadrado com uma linha com um pompom na ponta saindo do topo dele. Quanto mais eles se aproximavam ao encontro dela, eles também perceberam que ela carregava um enorme livro, talvez com metade do tamanho dela mas suas costas.

A garota disse imediatamente quando se encontraram frente a frente — Meu nome é Lhana, é um prazer encontrar uma estrela em um lugar tão remoto. — sua voz era bizarramente calma para uma criança e carregava uma frieza longe de qualquer emoção.

— Estrela… ?

A garota tirou seu chapéu e usou como assento para se sentar na areia e calmamente disse:

—Preciso da ajuda de vocês.