A estrada estava movimentada. O caminho de terra batida cortava uma planície onde árvores nasciam espaçadas uma das outras A estrada fazia zigue e zague por entre estas pequenas florestas. Pássaros cantavam sonoramente em todas as direções, fazendo com que seus cantos se misturassem em alguns pontos. Pequenos roedores subiam pelos troncos de algumas árvores, e tinham aqueles mais corajosos que assistiam a caravana passar com seus olhinhos pretos.
Gabriel somente curtia o tempo fresco do local sentado ao lado de Nasor na primeira carroça. O som de vida e folhas se movendo ao vento traziam uma ótima sensação de conforto, vez ou outra este mesmo vento bagunçava seus cabelos.
Uma outra caravana passou rente a que estavam, e por um momento os homens na frente de suas comitivas trocaram olhares nenhum pouco amigáveis um com o outro, eram rivais neste ramo ponderou o rapaz que somente observava o desenrolar da situação.
— Bom dia — disse Nasor com um sorriso exagerado no rosto.
— Dia — respondeu o outro mostrando a mesma quantia exagerada de dentes que o outro.
A situação desconfortável durou até a outra caravana sumir por detrás de uma das curvas, fazendo o rapaz olhar para Nasor.
— Vou te dizer, não sabia que você era tão falso!
— Você é um assassino, e não tenho nenhum problema com isso.
— Aí — brincou o rapaz fingindo que fora acertado por algo no peito. — Realmente, você tem um ponto. Agora me diga uma coisa, é normal essa tensão entre comitivas?
— Sempre foi — disse Nasor de forma cansada. — Mas desde que a Milícia das Caravanas aumentou ainda mais o imposto em cima das viagens, as coisas somente pioraram.
Gabriel achou melhor não se envolver sobre aquela questão, as Milícias eram problemas do Bunker e ele era somente um Corvo. Mas sabia o básico para entender a frustração de Nasor: o Bunker sendo o centro de controle da população é normal ter pessoas capacitadas, algumas vezes não, trabalhando em algumas áreas específicas, e o líder do Bunker era sempre alguém escolhido dentre uma das Milícias, o atual era da área de infraestrutura, o anterior fora da área das caravanas. E como sempre fora nos últimos setecentos anos, a pessoa que comandava o Bunker focava mais na área que tinha maior afinidade, os Corvos por sua vez estavam lá somente para prestar como uma defesa dessa fraca democracia. Por este motivo que Corvos sempre estavam envolvidos em atividades essenciais para o funcionamento do sistema. O rapaz sabia disso muito bem, afinal não iriam ir Corvos com caravanas se não fosse por estes motivos.
— Estamos pegando um caminho diferente — falou o rapaz, tentando mudar de assunto, pois ele não sabia qual seria o caminho de qualquer forma.
— Então finalmente reparou! — disse Nasor satisfeito com o rapaz. — Precisamos passar em um local antes.
— Que? Não falaram nada disso para a gente!
— Vai ser rápido, eu mesmo não pretendo ficar mais do que o necessário lá. Um Acampamento de Exploradores.
Ao ouvir este nome Gabriel sentiu um frio desagradável subir por sua espinha, tais acampamentos ficavam próximos às Manchas, locais cheios de radiação. Os Exploradores entravam em locais possíveis das Manchas atrás de conhecimentos e tecnologias para ajudar o Bunker a reerguer a sociedade. Mesmo sendo importantes, ninguém gostaria de chegar perto de uma pessoa que transmite radiação.
— Isso é uma surpresa, um pouco desagradável — disse Gabriel mexendo os pés inquieto.
— Não só para você — confessou Nasor. — Mas é preciso, Conhecimento dos Antigos vale muito mais moedas do que você possa imaginar.
Gabriel não discordou, realmente Conhecimento dos Antigos era uma das melhores formas de reerguer a sociedade, mas o preço para pôr as mãos nestes livros ou documentos de pesquisa era pesado demais. De supetão o rapaz pulou do assento ao lado do líder de caravana, pousando no chão sem dificuldades.
— Vou ir falar com a Naomi! — falou disparando sem esperar uma resposta.
— Faça o que quiser, mas não vai mudar em nada nosso trajeto.
O Corvo já não prestava mais atenção ao homem, passou indo contra os carroções enquanto caçava Naomi com seus olhos, vendo que a maioria dos veículos estava vazio, como se estivessem indo pegar carregamentos, os únicos com alguma carga eram os três últimos e estes levavam rações e água para os animais e trabalhadores da caravana.
Um dos Corvos novatos passou ao lado de Gabriel lhe lançando um olhar longo e penetrante e logo se forçou a olhar para o outro lado, fazendo com que o rapaz segurou o riso, aquela era provavelmente a primeira missão dele e ele estava claramente nervoso.
— Gabriel? — disse uma voz de repente ao lado de um dos animais que puxavam um dos carros.
Gabriel pulou de surpresa, levando suas mãos instintivamente para uma faca que guardava escondida sob a camisa, mas fez o possível para se recompor quando viu que era Naomi que o havia chamado. Mas era tarde demais, Naomi já havia percebido, e precisou segurar o riso que subia para sua boca, felizmente conseguiu.
— Estava me procurando? — disse a jovem que andava ao lado de um touro malhado, com uma das mãos no pescoço do animal que teve seus chifres cerrados.
— Sim, ficou sabendo que não vamos direto para a Cova Dois, certo?
— Estava conversando com as crianças, e elas comentaram que iríamos passar antes em um Acampamento de Exploradores.
— Que sacanagem. — Resmungou Gabriel.
— Parando para pensar Gabriel, agora faz sentido o porquê de Strazza estar aqui, ela deve precisar de algum Conhecimento dos Antigos, e não seria possível uma pessoa sem nenhum conhecimento na área dela vir em seu lugar.
— Você deve estar certa — concordou o rapaz de má vontade. — Vai ser minha primeira vez em um.
Pequenos estalos sinistros fizeram toda a caravana ficar em silêncio, o medidor de radiação de alguém soltou seu som. Estavam perto do acampamento. O acampamento ficava a uma distância segura de uma Mancha, para que os compradores não morressem, mas mesmo assim o ambiente era de tensão.
Não tardou para enfim chegarem ao local. Virando em uma nova curva era possível ver logo acima de um morro o acampamento. De onde estavam dava para distinguir um muro de ferro alto com um grande portão feito de espetos também de ferro. Ao se aproximarem mais, ficou nítido que em diversos pontos ao longo do muro amontoados de sacos de areias ficavam estrategicamente montados, e atrás deles metralhadoras montadas ficavam apontadas em todas as direções. O muro era feito de placas de ferro com quatro metros de altura. Algumas pessoas andavam por detrás da parede, deixando claro que existia alguma estrutura atrás da construção.
Gabriel ficou boquiaberto com o armamento que aquele acampamento tinha, metralhadoras terrestres eram armas que somente o Bunker possuía, e aquele lugar tinha seis delas, seis que ele estava vendo. As pessoas à frente também possuíam armas de alto calibre, algumas tão potentes quanto sua Magnum. Outra coisa que chamava atenção era o cheiro, o local cheirava a chumbo.
Toda a comitiva parou quando dois guardas desceram para falar com Nasor, ambos trajavam roupas brancas e traziam atados à cintura um medidor Geiger, e eram jovens.
A conversa foi rápida, e assim a caravana não seguiu diretamente para o portão, e sim indo para a direita onde pararam. Rapidamente todos desceram das carroças com cestos atados às costas, e as crianças ficaram encarregadas de alimentar e tratar dos animais.
— Pelo jeito vamos ter de ir a pé! — falou Gabriel se esticando animado.
— Achei que não ia entrar! — o provocou Naomi.
— E perder uma oportunidade dessas!
O grupo foi a frente se aproximando dos portões abertos, duas das metralhadoras montadas se viraram para os recém-chegados, os mesmo que vieram receber estavam por trás das armas agora. Passando pela entrada se deparou com uma pequena comunidade. Uma estrutura em formato circular rodeava um grupo de construções que usavam placas de ferro iguais aos dos muros, as casas estavam todas arrumadas no meio do local formando uma rua.
Uma construção ficava de frente para a outra, ao fundo era possível ver mais duas construções, estas por sua vez eram da altura dos muros e algumas figuras trajando um traje amarelo andavam por entre objetos dispostos em meses os analisando, mas não era possível ver muito bem o que estes faziam pela distância que estavam da entrada.
O Corvo, ficou chocado ao ver que alguns R.P.Gs encostados na parte superior dos muros como uma medida de proteção e flanqueando a entrada quatro caminhões com caçambas da altura dos muros. Gabriel percebeu que mesmo sendo uma construção engenhosa não passava de um acampamento, e os veículos serviam para guardá-la, como para guardar as cargas. E como o Bunker era o único com acesso a combustível, era óbvio que tinha o dedo dele naquele lugar. Era lógico que existia a Milícia dos Exploradores, compreendeu o rapaz.
Andando junto de Naomi, Gabriel começou a ver as lojas do lugar. Era realmente um lugar diferente de qualquer outro mercado que já entrou, as lojas tinham desde quinquilharias dos Antigos, como brinquedos de plásticos a quadros de pessoas com instrumentos cantando com o nome de bandas em baixo, a objetos como bules de ferro ou panelas.
O fato de serem artefatos dos Antigos somente valorizava o que quer que fosse. Uma loja chamou a atenção com peças de armas e facas, algumas com formato peculiar ou curvadas e não mais retas com somente uma ponta e cumes afiados como eram os deles. Viu um silenciador ao lado de um jogo de facas com os cabos verdes de lâmina dentada. O silenciador era o sonho de qualquer Corvos do Círculo da Sombra, mas o preço absurdo de quinhentas moedas desanima qualquer um.
— Este local não faz sentido — comentou Naomi enquanto observava um boneco de plástico de um homem velho e gordo que trajava uma roupa branca e levava um saco cheio de presentes nas costas. — Como se fosse ao mesmo tempo um mercado comum e o mercado negro no mesmo lugar.
— Naomi! — exclamou Gabriel. — Olhe!
A jovem seguiu com os olhos o lugar para qual o rapaz apontava, em uma das lojas várias pessoas que vieram nas caravanas rodeavam um objeto com várias placas de ferro, onde o vendedor batia com um pequeno pedaço de ferro fazendo diversos sons saírem.
— Aquilo é realmente legal — concordou Naomi, indo ver mais de perto, deixando seu parceiro sozinho.
Gabriel pensou em ir, quando percebeu algo. Os vendedores tinham pelo corpo diversos tumores e manchas pouco naturais pela pele, não somente eles, mas boa parte das pessoas que circulavam pelo local, o número de mulheres grávidas também chamou a atenção. Quase que com um estalo ele entendeu.
Não havia pessoas mais velhas porque a radiação os matava, por isso eram somente jovens e estes estavam com seus dias contados, por isso a natalidade era tão alta, precisavam sempre de mais mão de obra para explorar uma Mancha. Entender aquilo o deixou inquieto no acampamento, ver vendedores cheios de tumores, sendo que muitos destes eram só garotos e garotas, e ver meninas de onze anos já grávidas fez com que a sua curiosidade desaparecesse.
Conseguiu por fim ver o que as pessoas faziam de amarelo mais ao fundo do lugar. Pessoas vestindo casacos que cobriam o corpo inteiro, com uma máscara para proteger o rosto, passavam seus medidores Geiger meticulosamente procurando saber se era um produto hábito à venda.
— Isso foi uma experiência. — comentou Gabriel para si mesmo, indo em direção aos carroções, iria esperar os outros lá.