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VI.

O quarto de Amelia ficava no décimo quarto andar. Lá era onde as pessoas de escalão mais alto da máfia ficavam. Gary cedia os melhores aposentos do prédio, geralmente com dois cômodos e banheiros grandes. Claro que todos poderiam ter suas casas fora dali, o que era o caso da garota e de Liam, mas era comum passar as noites ali em épocas mais movimentadas.

Nas primeiras vezes em que ele ficou naquele quarto sozinho com ela, seu coração deu sinais de que ia explodir ou parar a qualquer momento. Depois de tantas vezes, já estava acostumado. Ele não tinha mais esperança de que ela um dia fosse o ver como homem. Era como amar um gato. Uma paixão unilateral.

O ambiente era escuro, móveis pretos, uma grande janela que mostrava a cidade estava coberta por uma negra cortina pesada. Tinha um pequeno sofá moderno logo de frente para a porta, acompanhado de uma mesinha de centro com um tampo de vidro igualmente escuro e duas poltronas que combinavam com o conjunto. Atrás dos assentos, havia uma escrivaninha grande com um computador e dois monitores grandes. Por cima da mesa, tinha uma bagunça de documentos, pastas, fotos, arquivos… No canto dela, algumas latas de energético vazias e amassadas.

Na parede contrária tinha uma porta de vidro que levava para o quarto que estava decorado no mesmo estilo moderno e minimalista. Era tudo preto. Desde a parede até os tapetes. O que mais chamava atenção era a grande cama queen size, coberta por um edredom monocromático que parecia até bem confortável. Ao lado um grande guarda roupas de madeira fosca, com portas altas, até o teto. Próximo a janela, uma poltrona grande, com uma coberta cinza escura por cima. No chão, sobre os tapetes pretos, tinham várias roupas joagadas. Liam já sabia que ela era bagunceira, aquilo não o incomodava. 

Amelia passou pela porta e a olhou, checando se a fechadura eletrônica tinha trancado. Tinha medo de que alguém pudesse entrar sem avisar. 

— Senta na cama… Vou pegar o kit de primeiros socorros. — disse caminhando até o banheiro, acessível pelo quarto, que também seguia a mesma paleta de cores. Ali tinha uma banheira que Amelia nunca tinha usado. Talvez por não se julgar merecedora de um momento de auto cuidado. 

Do armário de baixo da pia ela pegou uma caixa branca, plástica, com uma cruz vermelha em cima. Era grande, do tamanho de uma embalagem de sapatos. Quando voltou para o quarto, Liam parecia estar com dificuldades para tirar o paletó. Ele gemia baixo, tentando esconder a dor que estava sentindo.

— Ei, ei, ei… — ela se aproximou, largando o kit em cima da cama.

Ela foi delicada, puxando o tecido pelos braços dele, que tentava fazer o mínimo de barulho possível. Depois disso ela desabotoou a camisa e enquanto seus dedos iam descendo, o garoto não pode evitar a respiração acelerada. Nem seu coração aguentou quase batendo para fora de seu peito. Ele já havia imaginado aquela cena diversas vezes, mas não naquelas circunstâncias. Por alguns segundos a dor até sumiu, ele observava o rosto dela, tão perto… Seus lábios, seu cheiro… Sua cabeça ficou leve e ele apreciou aquela proximidade. Ela era gentil enquanto terminava. Quando sua pele foi exposta, ela pode ver a gravidade da situação.

— Onde foi que você se meteu? — tinha um olhar um pouco triste no rosto de Amelia. Ela estava preocupada e isso fez o garoto se sentir um pouco melhor. Eram raras as ocasiões em que ele tinha a atenção dela.

A pele clara das costas dele estava manchada com um grande hematoma e um corte profundo coberto de sangue já seco. O ombro direito também estava inchado e roxo. Pelo resto do torso haviam diversos machucados, arranhões não tão profundos. Ele ficou imóvel deixando ela examinar seu corpo. Tinha a expectativa de ver desejo em seus olhos. 

— No telhado. — ele respondeu, tentando parecer calmo. 

— Você caiu do telhado, por acaso? — Amy perguntou ironicamente, como se quisesse chamar a atenção dele por não falar a verdade. 

— Não exatamente… — a voz dele ficou um pouco mais aguda.

Ela começou a ligar os pontos em sua mente, caminhando para frente dele, levantando uma sobrancelha. 

— Como assim? — Queria estar entendendo errado. 

— Eu não caí… — disse desviando o olhar. — Eu pulei.

— O que?! — Em um impulso ela segurou os ombros dele, incrédula.

— Ai, ai, ai! Meu ombro, Ames! — Ela rapidamente o soltou, dando alguns passos com a mão na cintura. — Eles me prenderam lá em cima… Eu tentei arrombar a porta, mas quando eu ouvi a polícia chegando, eu tive que fazer alguma coisa… Não podia… Te deixar sozinha. 

Ela soltou o ar em um início de risada sarcástica, ainda desacreditada no que estava ouvindo. Era loucura. Naquele momento, Liam estava desesperado para que ela entendesse a profundidade de seus sentimentos. Queria sentir que Gary não estava certo. Queria poder ter esperanças. 

— Eu acabei caindo em uma cerca, mas tá tudo bem… Seus pontos vão resolver tudo. — disse sorrindo.

— Você é maluco. 

"Por você" — Liam respondeu em sua mente. 

Ela suspirou, se sentia culpada por ter mandado ele para aquele telhado sozinho. Se ela tivesse seguido o plano dele… Nada disso teria acontecido. Com alguns discos de algodão e uma solução anti séptica, ela começou a limpar as feridas do amigo, pensando em toda a dor que ele devia ter sentido por sua causa. Era tudo sua culpa. Enquanto isso, o garoto tentava esconder o rosto avermelhado. A cabeça dele girava em uma mistura de vergonha e desejo. Era difícil se segurar com ela o olhando daquela forma. Ele focou nas mãos da morena, os nós de seus dedos também estavam machucados, mas ela não parecia preocupada. 

Quando ela chegou nas costas ele grunhiu entre os dentes, a ferida ardeu o suficiente para que ele sentisse seus olhos encherem de lágrimas. 

— Pode deitar… — ela pediu indo até o banheiro para lavar as mãos. Enquanto ele obedecia, apoiando as mãos debaixo do rosto, sobre um travesseiro. Amy voltou, vestiu um par de luvas de látex e sentou-se ao lado dele. — Não tenho anestésico… Vai ter que aguentar um pouquinho, mas prometo que vou ser rápida. 

— Será que não é melhor chamar alguém que saiba o que está fazendo? — ele perguntou, a provocando novamente. 

— Eu sei o que eu to fazendo! Mas… Talvez seja uma boa ideia. — A culpa estava tirando toda a sua confiança. 

— Relaxa, Ames. Eu aguento. 

Ela preparou o material para sutura, estava tudo esterelizado em embalagens profissionais. Era comum aquele tipo de coisa no hotel. Todos sabiam como remendar suas próprias feridas. Haviam alguns médicos que trabalhavam para Gary, mas eles não estavam sempre por lá e só atendiam casos mais graves. Obviamente, se Liam tinha condições de falar, não era grave. 

Amelia segurou as pinças com cuidado, lembrando de como havia aprendido a fazer pontos com um dos doutores da família. Seus dedos eram firmes mas gentis. Ela sabia que iria doer. Precisava manter a calma para que ele não se machucasse mais. Com cuidado, a pequena agulha curva entrou de um lado pele e o paciente não evitou de lamentar a dor. A linha passou pelo outro lado e ela enrolou-a no porta agulha e deu alguns nós apertados. O primeiro estava pronto. Pelo menos mais uns 8 viriam. 

Os punhos de Liam agarraram os lençóis como uma forma de manter seu corpo imóvel. Era impossível relaxar. A dor o fazia tremer, tinha certeza que iria desmaiar a qualquer momento mas foi forte por ela. Por 12 vezes ele suspirou aliviado toda a vez que ela cortou o excesso de fio de cada ponto. Foram 10 nas costas e mais dois no braço direito. 

Assim que terminou, ela levantou indo até o banheiro para pegar uma caixa para descartar os instrumentos e logo tirou as luvas um pouco suadas de nervosismo. A costura não tinha ficado perfeita, mas tinha dado certo. Voltou para o lado dele, o olhando de olhos fechados, o rosto comprimido.

— Acabou… Vou fazer um curativo e aí você está livre. — ele apenas sorriu, sem conseguir falar ainda.

Com uma gaze branca ela foi cobrindo as feridas enquanto ele apreciava aquele momento, a maneira como ela massageava o esparadrapo o fazia relaxar. As mãos de Amelia nem pareciam as mesmas que espancaram um homem mais cedo. Eram gentis e suaves. Alguns minutos se passaram e ela finalizou o cuidado. Mas Liam não queria que acabasse. Não queria sair dali, não queria sair de perto dela, do cheiro dela, da presença dela. Com as pálpebras ainda fechadas, ele fingiu uma respiração profunda.

— Hm? — ela notou que ele estava dormindo e ficou com pena de acordá-lo. Ele estava cansado. Bem mais do que ela. Por alguns segundos ela ficou o olhando dormindo, admirando o rosto dele, tão calmo… Se perguntou como seriam se tivessem se conhecido de outra maneira. Uma maneira normal. Às vezes ela notava o quão bonito ele era. Tinha um rosto gentil, uma risada contagiante, um sorriso que nunca a decepcionava… O que teria acontecido se eles tivessem se conhecido fora da máfia?

Sem perceber, ela levou a mão direita até o cabelo do jovem, acariciando-o de leve. Aquilo também era uma de suas atitudes egoístas. Não fazia isso quando ele estava acordado porque não queria contato físico, mas quando ele não sabia, ela podia se sentir acolhida de alguma forma. Liam teve que segurar sua vontade de sorrir e de abraçar ela naquele momento. Durou alguns minutos, os melhores minutos com ela.

 Amelia levantou e sentou na poltrona ao lado da cama, puxando um livro da sua mesa de cabeceira. Algum cliché de vampiros ou lobisomens. Só queria fugir daquela realidade onde todo mundo a sua volta se machucava e sempre era sua culpa.

Entretanto, aquele livro não foi o suficiente para distrair sua mente da fala de Jason que ainda ecoava na sua cabeça e estava começando a deixá-la maluca. 

"Será que o senhor 'Hanford' iria ficar orgulhoso de ver a vadiazinha que a filha dele se tornou?" — O peso daquele nome em seu peito quase a deixava sem ar.

Como raios ele sabia sobre o pai biológico de Amelia? Essa história tinha sido apagada quando trocou seu nome. Todos os documentos, as provas de sua existência antes da Diamond Rose foram apagados. O que mais ele sabia…? A garota estava tentando controlar a ansiedade. Depois de tudo o que passou, por que seu passado estava voltando para a assombrar daquela maneira? Será que Suzan também sabia dessas informações? Sua mente parecia o olho de um furacão, girando e balançando, sacudindo todas as suas emoções e memórias. Era um barulho insuportável que parou subitamente quando ela sentiu Liam tocando em seu ombro. 

— Ames? — A voz dele parecia preocupada. A garota se ajeitou na cadeira, ainda tonta quando abriu os olhos. O sol que estava no seu ápice quando ela se acomodou, agora estava dando seus últimos raios ao se pôr. — Teve um pesadelo? Você… Tava chorando…

A garota secou as lágrimas do seu rosto, um pouco corada. Já tinha chorado na frente dele, mas ainda assim, era muito vergonhoso. 

— Eu tô bem, foi só um sonho…

— Pode ir deitar na cama, estou indo para o meu quarto… 

— Ah, tá bom. Tá se sentindo melhor? — ela perguntou levantando do assento. 

— Sim, bem melhor. Tomei um analgésico que achei na caixa. — ele sorriu. Aquele sorriso iluminou o quarto escuro.

— Que bom… Pronto pra outra? — perguntou, brincando. 

— Não começa… — ele entrou na brincadeira. 

Em um ato de coragem, Liam passou o braço esquerdo por trás da cintura de Amelia e a puxou para perto. Seus lábios beijaram a testa da garota que corou como nunca havia feito com ele. 

— Obrigado por cuidar de mim… — o mais alto ainda estava muito próximo dela quando falou essa frase, então seu tom de voz foi baixo e suave. Mas ele não ficou muito tempo ali. Então ele se virou e foi embora do apartamento dela, a deixando com um novo turbilhão de pensamentos em sua mente. 

— O que… foi isso? — ela se perguntou sozinha no quarto.