PICCOLO
O Sol já se punha através das janelas da casa de Lettie quando ela terminou de me contar como adotou Naíma.
É claro que, nessa época, Lettie omitiu uma das reais motivações de tê-la adotado, ou seja: eu. Só fui saber disso anos depois. Por ora, tudo o que ela revelou foi como havia encontrado uma bebê abandonada numa estrada de terra perto de um dos vilarejos da região, a resgatado, cuidado, se apegado e então… a adotado.
Mesmo assim, o pouco que eu soube foi o suficiente para me deixar sem chão. Era por isso que Lettie parecia mais forte e madura quando a reencontrei!
Ela era uma mãe agora.
Sentado no sofá e com olhos arregalados, eu a fitava com Naíma em seu colo. Fiquei assim por um bom tempo. Um silêncio quase palpável nos rodeava.
— Piccolo? — chamou Lettie, num tom preocupado. — Você está bem?
Pisquei várias vezes, até que endireitei as costas.
— S-Sim… Tudo bem. Só estou… impressionado — menti.
Lettie então tocou meu braço e o apertou com o típico afeto que eu tanto conhecia.
— Sei que deve estar assustado e confuso com esta… hã… novidade. Desculpe por demorar para te contar. É que eu não queria acordá-la. Naíma andou tendo muitas cólicas nos últimos dias, sabe? Ela precisava dormir e– Oh, puxa!
Naíma emitia um chorinho baixo e manhoso.
— Hora da mamadeira! — Lettie sorriu e então, para o meu total desespero, entregou Naíma para mim. — Poderia segurá-la por um minutinho? Só vou preparar a fórmula ali na cozinha e já volto.
Embasbacado, a acompanhei dar a volta no sofá e pegar uma lata de fórmula na pia, com uma mamadeira limpa já pronta para uso ao lado. Foi só aí que reparei como diversos itens para bebês se espalhavam pela casa; roupinhas limpas e dobradas num canto, pacotes de fraldas organizados em outro, latas de fórmula empilhadas perto da mesa de jantar, e até um tapetinho macio e todo colorido com brinquedos ali perto de mim.
Como eu não havia percebido aquilo quando cheguei?
Será que… a imagem que eu tinha na minha cabeça da nossa casa sempre foi tão recheada com as coisas dos nossos filhos, que todos aqueles objetos de Naíma passaram despercebidos por serem… inconscientemente normais para mim?
Bom, eu não sabia dizer. A única coisa que eu sabia era que, além de reparar nos pertences de Naíma, reparei na PRÓPRIA Naíma, agora em minhas mãos.
Durante toda a minha vida, testemunhei inúmeras pessoas me encararem na rua por conta da minha aparência física, mas nunca, nunca alguém me olhou como Naíma naquele momento.
Ela não me olhava com medo, ou estranhamento, ou aversão, mas sim, com a mais singela demonstração de curiosidade e deslumbramento.
Nossos olhos se encontraram e meu coração deu um salto no peito.
Era como se eu me olhasse por um espelho. Seus olhos, negros, pequenos e intensos, miravam o fundo da minha alma. Porém, além da semelhança física comigo, enxerguei um brilho cheio de vida que eu só havia presenciado em… Lettie.
Era ela. Sim, era ela! Aquela bebê em minhas mãos era a mesma garota que me abraçou com tanto carinho e disse que me amava quando a coloquei para dormir em meu sonho. Eu reconheceria aqueles olhos em qualquer lugar!
— Você é exatamente como eu sonhei… — sussurrei, sem nem perceber.
Foi então que uma grande onda de temor me invadiu, e me dei conta de algo.
Eu estava segurando a minha filha.
Depois de tanto tempo lutando contra, o meu sonho… estava se tornando realidade!
Não…! Não era para isso acontecer! Não era para Naíma estar ali…
O que houve?! Quando isso saiu do meu controle?!
Mesmo eu não querendo, mesmo eu estando decidido que não daria continuidade ao meu sonho para que aquele final tenebroso com minha família não acontecesse…
Ali estava Naíma. Ali estava minha filha, em carne e osso.
Nunca imaginei que, naquele dia que pousei na ilha de Mestre Kame e conheci Lettie pela primeira vez, menos de dois anos depois eu estaria no sofá da nossa casa, segurando nossa filha nas mãos.
Como minha vida mudou tanto, em tão pouco tempo?
Meu coração disparou e encarei aquela bebê, a qual ainda me olhava com profunda curiosidade. Foi então que aconteceu.
Naíma sorriu para mim.
Todos aqueles pensamentos conturbados se dissiparam no mesmo instante. Nada mais existiu ao meu redor e nada mais me importou. O mundo material se tornou dormente.
Só existiu eu e Naíma.
Alegria. Este era o sentimento dela ao me dar aquele sorriso.
O terror que descompassava meu coração deu lugar ao mais puro contentamento, e agora ele disparava num ritmo acolhedor. Minha garganta se fechou quando senti uma imensa vontade de chorar; não de tristeza, mas de compartilhar o mesmo sentimento que ela exalava.
Naíma era minha filha. Minha pequena e querida filha, a qual tanto amei em meu sonho e a qual eu já amava agora, de toda a minha alma. Ah, como quis abraçá-la naquele momento! Como quis aninhá-la em meu pescoço e beijar o topo daquela cabeleira negra em sua cabeça!
"Ela morrerá," sibilou o meu Inimigo, e sua voz trouxe a imagem de Naíma morta nos destroços da minha casa.
Estremeci com um calafrio sinistro, e minhas lágrimas caíram; lágrimas pesadas de pavor e desespero ao ver que a vida que eu segurava em minhas mãos corria perigo mortal.
Droga! E agora?! O que eu faria???
A realidade caiu como uma montanha nas minhas costas: meu sonho estava se cumprindo. Eu "tecnicamente" já tinha tido uma filha com a Lettie, mas, ao mesmo tempo, nenhuma das duas eram minhas, oficialmente.
Além de Lettie, agora eu também teria de proteger Naíma de qualquer ameaça que rondasse nossas vidas. Ela era só uma bebê! Tão frágil, tão pequena, tão… humana.
Pensar neste fato me deixou ainda mais apavorado. Já que, pelo visto, Naíma não era nossa filha biológica, ela carregaria uma grande desvantagem: não teria os poderes e força de uma Saiyajin e um Namekuseijin, como os gêmeos teriam.
Precisaríamos nos esforçar em dobro para a protegermos, ao mesmo tempo que eu também não poderia permitir que o restante do meu sonho se cumprisse, mesmo que o que eu mais desejava naquele momento era ignorar a voz do meu Inimigo e assumir todo o amor que eu sentia pelas minhas meninas.
Minhas meninas. Talvez essas sejam palavras as quais eu nunca poderei dizer com liberdade.
Uma pontada aguda atingiu minhas têmporas enquanto meu cérebro fritava ao assimilar todas as minhas últimas conclusões e descobertas, mas, precisei dar um tempo e limpar minhas lágrimas às pressas quando Lettie retornou para o sofá com a mamadeira pronta.
— Parece que vocês dois se deram muito bem. — Sorriu ela ao receber Naíma de volta em seus braços. — Aqui, meu amor, hora do jantar. — Ela começou a amamentá-la e então, ergueu a cabeça para mim. — Inclusive, daqui a pouco vou preparar o meu. Por favor, fique e me faça companhia.
Observei as duas ali à minha frente. Lindas como o quadro de um artista.
Não, Piccolo! Não faça isso! Diga que vai embora e nunca mais volte!!!
— Será um prazer te fazer companhia. — Foram as palavras que saíram da minha boca, e me xinguei mentalmente. Dez minutos depois, eu estava sentado à mesa, cuidando da Naíma enquanto sua mãe preparava um jantar rápido.
— Ela é tão esperta, Piccolo! — disse Lettie ao refogar uma carne. — Adora música clássica. Quando coloco no rádio, ela começa a dançar. Ah, e já está quase conseguindo firmar a cabeça. Faça o teste para você ver!
Com o maior cuidado do mundo, coloquei Naíma sentada no tampo da mesa. De fato, ela conseguia firmar um pouco a cabeça enquanto mordia as próprias mãozinhas. Quase passei mal de tanta fofura, mas não deixei Lettie perceber.
— Como foi o processo de adoção? — Apoiei Naíma em minha perna.
— Foi bem chato e burocrático. — Lettie colocou algumas batatas para fritar. — Uma papelada que não acabava mais. No entanto, Chi-chi me ajudou bastante. Ela se voluntariou como minha testemunha, e no fim, deu tudo certo e agora ela é minha filha, de verdade. — Ela virou-se para mim com seus olhos brilhando de emoção, e não consegui evitar senão sorrir de volta.
— E como ficaram suas aulas? — Peguei um brinquedo macio do carrinho para Naíma morder. — Você deixa ela com alguém?
— Não foi necessário. Bebês da idade dela praticamente só dormem o dia todo, então, consigo deixá-la no carrinho enquanto dou minhas aulas. Ela é muito quietinha e não se incomoda com a gritaria dos meus alunos. Acho que não dará muito trabalho no futuro, também.
Como se quisesse brincar com a gente, Naíma deu um soluço alto e esganiçado. Nós rimos.
— E como está sendo a rotina de uma mãe? — indaguei, enquanto Lettie colocava Naíma no carrinho. — A experiência com Gohan ajudou?
— Pra caramba! — Ela colocou nossos pratos na mesa e se sentou ao meu lado para comermos. — Mas, cuidar de um garoto de quatro anos é beeem diferente de uma recém-nascida. Tudo foi uma grande surpresa para mim, afinal, não fiquei me planejando por nove meses até ela nascer. Minha "gravidez" durou uma tarde na casa da Chi-chi e olhe lá. — Rimos outra vez, e ela prosseguiu: — Porém, confesso que a rotina é pesada. Não é fácil, mas é recompensador. Conforme o tempo passou, aprendi alguns macetes, especialmente com minha nova Mestre, a Chi-chi.
— Ora, ora… Já me substituiu? — perguntei sem querer.
— Ninguém substitui você, Piccolo. — Lettie também pareceu responder sem pensar.
O clima ficou mega constrangedor.
— Bom, hã… — Ela limpou a garganta enquanto fingia checar Naíma no carrinho. — Chi-chi me ensinou muitas coisas durante as últimas semanas. Bebês adoram rotina, então procuro ser bem estrita com meus horários. — Ela virou-se para olhar um relógio na parede. — Aliás, daqui a pouco, é hora da rotina para dormir. Gostaria de assistir? É muito relaxante.
— E-Eu? — Me empertiguei com uma garfada a meio caminho da boca.
— Claro! Ensinei Naíma a dormir durante toda a noite, assim, eu também consigo dormir e tcharam!, resultado: mamãe aqui acorda descansada e super disposta para trabalhar!
Vinte minutos depois, eu assistia Lettie dar banho em Naíma na nossa—digo, na sua suíte. Ela tinha razão. Era muito relaxante. Durante o banho, ela deixou tocando músicas clássicas calmas num pequeno rádio apoiado na pia. Logo, Naíma já piscava com olhos pesados de sono. Contudo, mesmo com sono, ela não tirava os olhos de mim.
— Normalmente, tomamos banho juntas — disse Lettie ao fazer massagens nos pezinhos dela. Então, afinou a voz: — Mas, hoje temos uma visita muuuito especial, não é mesmo, meu amor? Sim, sim! É o Piccolo, você viu?
Naíma sorriu outra vez e Lettie virou-se para mim.
— Como será que ela vai te chamar quando aprender a falar, hein? — Ela voltou-se para a filha e afinou de novo a voz: — Vai chamá-lo de "Piccolo"ou "Sr. Piccolo" igual o seu priminho Gohan?
Ou "Papai", talvez?
Esbocei um pequeno sorriso ao meu cérebro pensar naquilo sem meu consentimento. Meus olhos se encontraram com os de Naíma outra vez, e tudo o que desejei foi que meu pensamento se tornasse realidade.
"Se isso acontecer um dia, então, será o fim." A voz fria e ameaçadora do meu Inimigo sobressaiu a minha, e a tristeza só não consumiu o meu coração naquele momento porque eu estava na presença acolhedora das duas.
Depois do banho, Lettie apoiou Naíma na cama para secá-la e vesti-la, com direito a cremes com cheirinho de bebê e mais massagens relaxantes.
— Acho que ela gostou de você, Piccolo… — Lettie viu que Naíma ainda mantinha os olhos cansados grudados em mim. Era impressão minha, ou Lettie demonstrou um profundo… contentamento em sua declaração? Só sei que, quando menos percebi, eu havia ajoelhado na beira da cama para ficar na altura de Naíma. Por que eu perdia o autocontrole perto das duas??
— Posso? — perguntei a Lettie, e ela assentiu. Devagar, peguei na pequena mão de Naíma, que apertou meu polegar. Não consegui esconder um sorriso orgulhoso.
Naíma não era uma Namekuseijin, mas era forte como uma.
Aquela mesma sensação de quando a peguei pela primeira vez me consumiu de novo. Tudo o que existia era eu e Naíma. E Lettie, é claro. Ela havia se ajoelhado ao meu lado e nos observava com o mesmo contentamento que demonstrou antes.
Meu coração dobrou de tamanho quando li os sentimentos delas: amor. Este sentimento exalava de ambas. Até mesmo de Naíma. Quer dizer que ela já havia se apegado a mim em tão pouco tempo de convivência? Como isso era possível? Quem poderia explicar tal conexão?
Como desejei ficar ali; como desejei tomá-las em meus braços, me trancar naquele quarto e ficar protegidos com elas para sempre! Por um minuto, fui tomado por uma grande paz. Mas ela logo se dissipou quando as imagens sem vida de Lettie, Naíma e nossos filhos surgiram à minha mente sem permissão.
Meus olhos arderam com minhas lágrimas, mas eu não podia demonstrar vulnerabilidade na frente de Lettie. Ainda bem que Naíma contribuiu para que eu conseguisse disfarçar.
— Oh, ela dormiu! — sussurrou Lettie ao ver que a bebê agora respirava profundamente de olhos fechados, ainda segurando meu polegar. — Que rápido! — Ela me olhou com um sorriso. — Sempre preciso niná-la por um tempo, mas parece que sua presença a deixou bem calma. — Ela tocou meu braço. — Você é incrível. Obrigada.
Juro que quase beijei Lettie quando seus olhos brilharam para mim naquele quarto iluminado apenas pelos abajures amareladas ao lado da cama. Mas reprimi essa vontade.
— A-Acho melhor eu ir embora… — Meu coração sangrou quando desvencilhei meu polegar da mãozinha de Naíma.
— Já?! — Lettie se levantou comigo, chateada.
— Está ficando tarde e não quero atrapalhar sua rotina.
— Ah, Piccolo… — Ela pegou Naíma com cuidado. — Você não atrapalha. Espere ao menos eu colocá-la no berço. Vem conhecer o quartinho dela.
Não! Vá embora, Piccolo! Você já viu e sentiu mais do que deveria!
— Está bem. — Foi minha resposta.
Lettie me levou para o quarto ao lado, o qual reconheci que era o de Naíma em meu sonho. No momento, tinha uma decoração infantil e, além do berço, havia uma pequena cama, forrada com um cobertor estampado com animais da floresta. Ela me explicou que aquele era o antigo quarto de Gohan e que deixou suas coisas para quando ele fosse visitá-la quando voltasse do internato— ou melhor, de Namekusei.
Naíma foi posta no berço e aquela cena foi muito, muito difícil para mim: recordar que fui eu quem a colocou para dormir em meu sonho, quando já era uma adolescente. Agora, talvez eu nunca tivesse a chance de fazer isso com a liberdade de um pai.
Após isso, Lettie me acompanhou até a porta de entrada, não sem antes insistir para que eu ficasse e tomasse um café ou algo do tipo. Angustiado, recusei seu convite, alegando que eu ainda precisava checar o estado dos meus compatriotas Namekuseijins e se estavam bem alocados na casa da Bulma.
— Escuta… — começou Lettie, meio receosa. — Onde você vai ficar?
— No Templo do Kami-sama, eu acho…
— Certo… — Ela abraçou a si mesma, desviando o olhar por um instante. — Você… hã… Você vem nos visitar, certo? — Ela forçou um sorriso. — Não é porque agora virei mãe e tenho uma Escola, que não preciso mais treinar. Na verdade, sinto falta de treinar pra valer, como fazíamos antes.
Sim… Bons tempos aqueles. Tempos em que eu ainda acreditava que poderia ter um futuro com Lettie.
Entretanto, antes que eu pudesse obedecer aos comandos desesperados do meu cérebro para eu recusar tal convite, respondi:
— Claro. Eu venho, sim.
— Ah, que bom! — Lettie sorriu.
Fez-se silêncio.
— Hã… — Ela fingiu uma tosse. — Será que… posso te pedir um favor?
— O quê?
— Você iria comigo até a casa da Chi-chi amanhã?
— Pra quê? — Franzi o cenho.
Lettie soltou um suspiro cansado e me olhou, pesarosa.
— Para eu descobrir o porquê ela mentiu para mim.
Pressionei os lábios, refletindo sobre o que ela havia me contado sobre aquela situação delicada.
— Tudo bem — repliquei, por fim. — Eu vou com você.
— Obrigada. — Ela piscou devagar.
Assenti com a cabeça e ficamos ali parados, sem saber como nos despedir. O clima constrangedor voltou. No final, apenas gaguejei um boa noite e acenei com a mão, dando-lhe as costas e descendo as escadas da varanda.
— E-Ei, Piccolo? — Ela me chamou, insegura.
— Sim? — Me virei mais rápido do que devia.
Lettie hesitou por um momento, mas então, disse:
— Quero que saiba que estou muito, muito feliz por você voltar. Mais do que imagina.
Nossos olhares se sustentaram por longos segundos, com a luz interior aconchegante daquela casa que nunca mais seria minha iluminando a silhueta de Lettie parada à porta.
— Obrigado. Foi bom rever você e… e conhecer Naíma. Até amanhã. — Dei um leve aceno de cabeça e virei as costas. No entanto, quando levantei voo e disparei céus acima, enfim deixei cair as amargas lágrimas que eu havia segurado até então.
***
Chi-chi chorou.
Sentados à mesa de jantar de sua casa, eu e Lettie a assistimos cobrir o rosto e soluçar copiosamente.
Gohan estava no sofá com Naíma. O reencontro dele com sua querida Tia Lettie foi emocionante, e também envolveu muito choro da parte de ambos com Chi-chi. Que droga, quase que eu chorei ao ver Lettie e Gohan se abraçarem apertado, do mesmo modo que fizeram quando ele retornou de suas aventuras sozinho em nosso Treinamento.
E quando Gohan descobriu que ganhou uma priminha para brincar, o fez quase desmaiar de tanta alegria. Não vou nem me alongar ao dizer que ele e Naíma se amaram no mesmo segundo.
Contudo, agora uma atmosfera ansiosa nos rodeava ao vermos sua mãe desabar na nossa frente.
— L-Lettie! — soluçou ela. — Me perdoe! P-Por favor, me perdoe por mentir pra você!
Lettie pegou suas mãos, as apertando com preocupação.
— Chi-chi, olhe para mim. Respire fundo… Isso. Com calma, me conte o que aconteceu.
Ao seu lado e de braços cruzados, observei-as em silêncio. Eu estava ali apenas de apoio moral para Lettie. Nem se eu fosse louco me envolveria naquilo. Chi-chi limpou o rosto no avental que usava.
— E-Eu... Eu menti porque... porque não queria que as pessoas pensassem que não tenho controle sobre... m-minha própria família.
— Como assim? — Lettie estreitou os olhos em confusão. — Não entendi.
— Ah, Lettie… — Chi-chi fungou. — Não é nenhuma novidade que as pessoas culpam as mães se os seus filhos tomam um mau caminho. Você também é mãe, agora. Sabe que isso é verdade.
Quieta, Lettie assentiu de um modo compreensivo, mas com o semblante ainda perturbado.
— Por favor, procure me entender. — Chi-chi a olhou com uma expressão suplicante. — Meu filho mal havia se recuperado daquela horrível luta contra os Saiyajins e, logo em seguida, descobri que ele e Goku haviam fugido do hospital como dois foragidos da polícia! Foi só quando Gohan voltou ontem que descobri que ele tinha ido para UM OUTRO PLANETA LUTAR CONTRA UM LOUCO!!!
Lettie escancarou a boca em perplexidade e virou-se para o sobrinho. No entanto, foi a minha voz que ressoou naquela casa:
— GOHAN! Isso é verdade?! Fugiu do hospital para ir a Namekusei???
Ele se encolheu no sofá diante meu tom severo semelhante ao que eu usava em nosso Treinamento.
— Onde estava com a cabeça, garoto?! — prossegui. — Por que nunca me contou isso durante os meses que viajamos?? Tem noção de que deixou sua mãe preocupadíssima?!
— E-E-E-Eu… — Gohan tremia tanto que até Naíma sacudia em suas mãos. — E-E-Eu…
— Diga logo! — exigi.
Gohan apertou os olhos e pareceu fazer muita força, então, declarou:
— FIZ ISSO PORQUE TIVE MEDO DA MINHA MÃE!
Silêncio.
Lágrimas silenciosas saíram dos olhos dele. Eu e Lettie nos entreolhamos, bem conturbados.
— O que está dizendo, meu filho? — sussurrou Chi-chi, seu olhar vidrado.
— E-Eu… — soluçou Gohan, cabisbaixo. — Eu fugi porque, se eu ficasse, você me obrigaria a estudar de novo. — Ele ergueu os olhos vermelhos para a mãe e disse em alto e bom tom: — Eu não queria voltar para aquela vida horrível de estudar oito horas por dia que você me obrigava! Eu odiava isso! ODIAVA!!!
Silêncio outra vez.
Lettie olhava desesperada de um para o outro, constrangida e perturbada com a situação e aquele conflito entre mãe e filho. Já Chi-chi, ao ouvir as palavras de Gohan, voltou a cobrir o rosto e chorou mais.
— Está vendo, Lettie? — chorou ela. — Está vendo por que menti?
— Chi-chi, eu…
— Sou uma mulher cujo marido e filho preferem viajar para outro planeta, do que voltarem para casa comigo. E A CULPA É TODA MINHA! — Seu peito estremeceu enquanto engolia saliva, então, ela pegou nas mãos de Lettie. — Você abriu os meus olhos sobre a importância dos treinamentos de Gohan, de como ele é essencial para a nossa proteção. Confesso que ainda tenho dificuldades, mas hoje entendo isso melhor graças a você. Mas, por favor, procure entender que, naquela época, sete meses atrás, eu... eu estava desesperada!!! Meu filho quase morreu com aqueles Saiyajins, e teria se você e Piccolo não o tivesse protegido!
Uau. Eu ouvi direito, ou Chi-chi estava me... elogiando? Bom, o que quer que Lettie tenha dito sobre mim durante minha ausência, pareceu eliminar qualquer resquício de ressentimento de sua cunhada contra mim.
— E então — Chi-chi segurou a testa —, pra piorar tudo, agora descubro que Goku pode ter morrido OUTRA VEZ por causa desse maldito Freeza. — Seus olhos, inchados e cheios de lágrimas, nos encararam com profunda amargura. — Voltei a ser uma viúva, DE NOVO! — Ela gesticulou em nossa direção. — Você, Lettie, pelo menos tem o Piccolo de volta.
Um manto mega constrangedor caiu sobre nós, sobretudo em mim e Lettie. Ela enrubesceu como púrpura e creio que eu também, mas não falamos nada.
— Então — suspirou Chi-chi —, é por isso que menti. Eu não queria que as pessoas vissem o quanto minha família é... DESFUNCIONAL! Eu queria ao menos mostrar que eu não era uma esposa e mãe fraca; eu queria mostrar que tinha o controle da nossa situação e pudesse evitar que falassem mal de nós. Afinal, colocar o filho num internato de renome internacional é algo maravilhoso, certo? Nenhuma mãe ruim coloca os filhos numa escola boa, não é, Lettie? Diz pra mim, p-por favor! — E cobriu o rosto aos prantos.
De relance, olhei para Gohan. Ele chorava em silêncio, fingindo brincar com Naíma. Uma onda de melancolia me atingiu ao vê-lo naquele estado. Se estava difícil para Chi-chi, imagine para ele, uma criança de quase seis anos, vendo a família dele naquela condição. Por um momento, me senti mal por falar de um jeito tão grosso com ele. Gohan e sua mãe precisavam consertar seu relacionamento, ou teriam muitos problemas no futuro.
Lettie se levantou da cadeira e foi até Chi-chi para abraçá-la com o mesmo carinho e afeto que presenciei desde que a conheci. É claro que ela a perdoou. Não existia a possibilidade de aquilo não acontecer.
— Ah, querida… — Lettie afagou as costas da cunhada. — Você é uma boa mãe, dá sempre do bom e do melhor para Gohan, é uma boa esposa, é dedicada… — Ela passou a mão nos cabelos de Chi-chi como se fosse uma criancinha. — Você… só precisa ajeitar umas coisinhas aqui e ali. E eu vou estar aqui do seu lado para te ajudar com isso, como você esteve do meu lado nos últimos meses, tá bom?
Chi-chi não suportou mais e se atirou no pescoço dela para buscar consolo. Aquela cena, de algum modo, aqueceu meu peito. Ao observar Lettie acolher aquela mulher que mais parecia sua irmã do que o próprio Goku, eu soube o exato motivo do porquê me apaixonei por ela.
Que grande coração Lettie tinha! Cheio de perdão, amor e mansidão. Não era à toa que ela conseguia subir na Nuvem Voadora.
O que só me fazia lembrar o quanto eu ainda estava longe de atingir este feito.
"Você pode até a amar, mas nunca a terá por completo," disse o meu Inimigo, e baixei a cabeça para ocultar o quanto este lembrete doeu.
— Escuta… — A doce voz de Lettie afastou meus maus pensamentos ao se dirigir a Chi-chi, agora parecendo mais recomposta após desabafar. — Que tal fazermos um combinado para começar? Sei que os estudos de Gohan são super importantes pra você, e você está certa em querer que ele tenha um bom futuro. Mas lembra do que conversamos um tempo atrás? Também é importante que ele descanse e viva sua infância, não é? Por isso, gostaria de saber se você autoriza ele passar os fins de semana lá em casa com a Naíma. — Com um sorriso otimista, ela olhou para o sobrinho e a filha no sofá. — Isso vai ser bom para os dois criarem uma conexão saudável e crescerem juntos. O que acha?
Numa mistura de riso e choro, Chi-chi respondeu:
— Sim… É uma ótima ideia… O que acha, filho?
A feição de Gohan, que a pouco era de profundo abatimento, se iluminou como o Sol.
— É sério, mamãe?! Você deixa mesmo???
— Claro, meu filho.
Então, Gohan deu Naíma para Lettie e se jogou nos braços de Chi-chi. Com olhos marejados, Lettie sorriu para mim, e assistimos aquele relacionamento entre mãe e filho começar a se consertar.
Gohan se afastou e virou-se para mim:
— Sr. Piccolo, você também vai passar os fins de semana com a gente, não é, não é?!
— Será um prazer ter a sua companhia. — Lettie piscou devagar para mim.
Todos os olhares caíram sobre mim. Até mesmo Naíma pareceu esperar uma resposta minha.
Não, Piccolo! Recuse este convite! Diga que estará ocupado para sempre e desapareça da vida deles!
— Bom, se não for incômodo, eu vou. — Foi a resposta que dei.
— Promete?!?! — Gohan me olhou cheio de esperança. — Podemos treinar juntos igual no nosso Treinamento!
Não faça isso, Piccolo!!!
— Sim, prometo.
DROGA!!!
Tarde demais.
— Ah, que maravilha! — O semblante de Lettie se iluminou tanto quanto o de Gohan. Ela ergueu Naíma, dando-lhe um beijo-esquimó no nariz. — Você ouviu isso, filha?! Piccolo vai passar os fins de semana conosco!
Naíma virou a cabeça para mim e sorriu, como se entendesse tudo o que aconteceu e agora também se alegrava com a notícia. O clima pesado da casa se transformou em celebração. Ao olhar ao redor, me perguntei como uma pessoa com um passado como o meu, de repente, virou motivo para tanta felicidade. Até Chi-chi ficou contente.
E agora? O que eu faria?
Mais uma vez, eu havia cruzado a linha. Havia prometido que passaria os finais de semana na companhia da mulher que amo e das duas crianças que considero como filhos.
Não sei se eu seria capaz de suportar tanta tortura.
***
Mais tarde naquele dia, eu chegava no Templo de Kami-sama com Lettie, Naíma e Gohan. Era a primeira vez deles lá, e havíamos demorado o triplo porque voamos bem devagar por conta de Naíma, presa num canguru no torso da mãe. Ela era muito pequena para voar para um lugar tão elevado.
Nem todos os Namekuseijins couberam na casa da Bulma, por isso alguns ficaram hospedados no Templo. Lettie havia me dito que gostaria de conhecer o meu povo, Gohan gostou da ideia de rever seu amigo Dendê, e aqui estávamos nós.
Fomos recebidos pelo próprio Kami-sama (que também foi ressuscitado comigo), enquanto Lettie e Gohan olhavam boquiabertos ao redor aquela construção flutuante que mais parecia um palácio.
— Bem que senti a presença de Kis agradáveis chegando. — Kami-sama abriu os braços calorosamente. — Sejam muito bem-vindos!
Lettie e Gohan sorriram tímidos em resposta. Já Naíma, ficou olhando dele para mim, talvez percebendo a semelhança. Fiquei surpreso com tal comportamento considerando sua idade. Bebês às vezes nos surpreendem.
— É um imenso prazer conhecê-lo, senhor. — Lettie fez uma mesura e Gohan a acompanhou.
Resumindo, Kami-sama era uma versão muito muito muito muito velha de mim, sempre acompanhado por uma vestimenta branca que ia até seus pés, uma capa azul e um cajado de madeira.
— O prazer é todo meu. — Ele gesticulou para um homem baixo, gordo e negro ao seu lado, o qual até hoje não sei se é humano ou não. — Este é o Sr. Popo, meu fiel assistente. — Eles trocaram cumprimentos amigáveis, e Kami-sama prosseguiu, apontando para uma área com um jardim florido em certo ponto do pátio do Templo: — Gohan, avisei Dendê que você estava chegando e ele ficou empolgadíssimo. Sr. Popo, poderia acompanhá-lo até lá para brincar com o seu amigo e as outras crianças Namekuseijins?
— Oba!!! — alegrou-se Gohan. — Muito obrigado, senhor. — E disparou na direção do jardim, acompanhado pelo Sr. Popo.
Kami-sama então virou-se para Lettie e afinou a voz:
— E quem é essa princesinha em seu colo?
— Ah, é a minha filha. — Lettie ainda estava acanhada, mas ficou agradecida pelo elogio. — A adotei recentemente. Se chama Naíma.
— Naíma? — repetiu ele. — Hmm. Belo nome. Significa graciosa, agradável, feliz... Além de conforto e paz.
Lettie ergueu as sobrancelhas e mirou a filha com um brilho nos olhos.
— Jura…? Eu… Eu não sabia. — Ela abriu um sorriso terno para Kami-sama. — É justo o que ela me traz.
— Que bom ouvir isso. — Ele retribuiu seu sorriso.
Como Guardião da Terra, Kami-sama era possuidor de um vasto conhecimento e sabedoria. Além de também saber praticamente tudo o que acontecia pelo mundo ao observá-lo dia e noite. Eu já estava acostumado com este seu atributo, porém, assim como Lettie, me surpreendi com aquela repentina informação sobre o nome da nossa filh— digo, de Naíma.
— Me diga, Lettie — continuou ele —, agora que tem uma casa, como andam seus dotes culinários? Piccolo elogiava muito sua sopa quando vinha aqui durante o seu Treinamento.
Lettie esboçou grande confusão ao olhar para nós dois.
— Hã? Desculpe, não entendi. Piccolo vinha… aqui? Durante nosso Treinamento? Que horas foi isso que eu não vi?
— Você não contou para ela? — Kami-sama me deu um olhar surpreso e voltou-se para Lettie. — Era aqui que Piccolo pegava os alimentos para levar a você e Gohan.
Lettie me encarou, boquiaberta. Até Naíma olhou para mim com uma expressão curiosa. Resultado: minhas bochechas queimaram ao ver Lettie descobrir algo que até então eu não havia revelado.
— Aproveito e te parabenizo pela paciência em aguentar comer a mesma coisa por um ano todo. É uma virtude e tanto! — Kami-sama estava achando a maior graça da situação. — Em minha defesa, tentei convencer Piccolo a mudar o cardápio de vez em quando, mas você sabe como ele é teimoso e cabeça-dura.
— Ahhhh, sim, senhor! Como sei! — concordou Lettie veementemente. — Então, era aqui que ele pegava nossa comida? Que alívio saber disso! — Ela riu, colocando a mão livre no peito, e se aproximou de Kami-sama. — Sabe, senhor, teve horas que eu achava que ele roubava de algum fazendeiro ou algo do tipo, porque afinal, ele nunca pegava das minhas economias para comprar comida e sempre chegava com tudo fresquinho. — Ela olhou de esguelha para mim com um sorriso brincalhão. — Mas, sabe como é… Eu nunca tive coragem de perguntar. Preferi ficar na ignorância e imaginar que ele tinha uma horta particular em algum lugar escondido do mundo.
— Te entendo — disse Kami-sama. — É muito complicado lidar com gente desequilibrada.
— Gente desequilibrada??? — retruquei, agora em completa indignação com toda aquela calúnia contra minha pessoa. — Pois saibam que sempre estive no perfeito estado das minhas faculdades mentais, muito obrigado!
— É o que toda gente desequilibrada diz — replicou Kami-sama, e eles desembestaram a rir de mim.
Aquilo era ridículo! Lettie e Kami-sama se comportavam como melhores amigos de longa data. Caramba, até Naíma riu com eles. Mas passo pano para ela. Decerto só estava imitando a mãe.
— Engraçadinhos vocês, hein?! — eu disse, por fim, querendo recuperar minha dignidade. — Já chega dessa palhaçada. Escute aqui, Lettie, não era você quem estava doida para conhecer o meu povo? Pois eles estão lá no jardim e dentro do Templo, beeeem longe do Kami-sama! Vamos!
— Hahah-ei! Nada disso, Piccolo! — Lettie ajeitou Naíma no canguru. — Kami-sama também é um Namekuseijin, me deixe conversar com ele. — Ela então abanou a mão como se eu fosse uma mosquinha. — Vai lá brincar com Gohan, vai. — Dito isso, Kami-sama a convidou para passearem pelo pátio do Templo, e assisti os dois se distanciarem de mim, trocando mais risadinhas e fofocas.
Fiquei tão embasbacado com a audácia deles, que dei as costas e permaneci na borda do Templo, fingindo observar a paisagem de cara emburrada e revoltado com toda aquela difamação.
Ora essa! Eu? Roubar comida de um fazendeiro?!?! Que absurdo…! Tá. Tá. No início, posso não ter sido um cara muito confiável para Lettie, ainda mais com aquele meu papo de dominação mundial, etc etc etc. Mas, caramba! Eu ainda tinha minha dignidade, não tinha?
Pior que isso, é Lettie pensar que EU tinha uma plantação particular. O que ela pensava que eu era? Um senil que passava o dia todo cuidando de planta??? Andando pra lá e pra cá de botas, usando um avental, chapéu e um borrifador de água nas mãos??? Ah, tenha santa paciência!
Droga… Minha reputação era pior do que eu pensava.
Não sei quanto tempo fiquei ali parado, rabugento com meus pensamentos. Só sei que, em certo momento, Kami-sama me chamou através dos seus poderes de telepatia: "Pare logo com essa frescura e venha aqui, mocinho. Vou apresentar Lettie para os outros Namekuseijins. Seja educado e civilizado."
E assim fui até o jardim, não sem bater os pés ainda em irritação.
Todos os Namekuseijins adoraram Lettie, é claro. Sua personalidade pacífica e gentil fez com que eles a rodeassem com curiosidade. Além, é claro, da fofura de uma bebê como Naíma.
Lettie havia se sentado num banco de madeira, com um biombo repleto de flores trepadeiras se projetando atrás. Tudo isso, somado ao fato de borboletas pairarem sobre suas cabeças, trouxe para elas um aspecto quase que… angelical.
Tive que me esforçar muito para ocultar um sorriso. Ainda bem que nenhum deles tinha o poder de medir as batidas do meu coração.
Porém, em contrapartida, quase tive um piripaque quando Gohan apresentou seu amigo Dendê para Naíma. Mais uma parte do meu sonho pareceu se tornar realidade naquele momento, porque os dois se gostaram de imediato. Nunca vi Naíma sorrir tanto ao Dendê pegar suas mãozinhas para brincar. Sim, eu a conhecia por apenas dois dias, mas não importa! Eu sou o pai e a conheço pelo meu sonho, muito obrigado!
Também vale dizer que Lettie se encantou com o garoto Namekuseijin, para o meu desespero. Primeiro porque ela disse, na frente de todos ali, o quanto EU deveria ter sido uma criança fofa, pois decerto eu pareceria com Dendê quando pequeno. Segundo porque ela confirmou que também nunca tinha visto Naíma rir tanto na presença de outra pessoa além dela desde que a adotou.
Eu precisaria ficar de olho nesse Dendê, ladrãozinho de filhas alheias!!!
Tá. Sei que posso estar exagerando. Dendê deveria ter o quê? Uns três, quatro anos, no máximo? Era ridiculamente adorável? Sim. MAS, mesmo assim, eu ficaria em alerta. Papai ama, papai cuida, e papai protege Naíma de futuros pretendentes.
No geral, foi uma tarde agradável, apesar da minha irritação, ciúmes e ansiedade. Ao anoitecer, nos despedimos de Kami-sama, do Sr. Popo e dos outros Namekuseijins, pois Lettie daria aula logo cedo no dia seguinte e Naíma precisava descansar (Dendê ficou desolado ao se despedir dela, o que me trouxe uma alegria inenarrável).
Após deixarmos Gohan em sua casa, voamos para a casa da Lettie, afinal, apesar do meu cérebro gritar para eu me afastar dela, eu não cometeria o grotesco erro de deixar uma mulher e uma bebê vagarem sozinhas a noite até sua casa no meio do mato. Não importa o quão forte era Lettie, era minha obrigação protegê-las como marido-e-pai-não-oficial.
— Kami-sama é um senhorzinho encantador, mas, minha nossa! — suspirou Lettie ao subirmos as escadas da varanda. — Ele precisa de uma rotina de skincare com urgência! Escute bem, Piccolo. Não permitirei que você fique um velho todo enrugado igual a ele. Te darei um dos meus cremes ainda hoje, aguarde um minutinho. Aqui, segure Naíma para mim, por favor. Ufa! Minha coluna agradece.
Sem direito de protestar tal sugestão, a assisti sumir pelo corredor. Honestamente, eu não sabia se ria ou chorava, porque, pensar na possibilidade de envelhecer ao lado de Lettie era espetacular e aterrorizante ao mesmo tempo. Naíma se encolheu no meu peito e meu estado emocional só piorou.
Logo, Lettie retornou e me entregou um pote de creme, e me fez jurar de pés juntos que eu passaria aquela joça todos os dias pela manhã e antes de dormir. Devolvi Naíma (a qual já dormia) e nos despedimos, contudo, assim que virei as costas para descer a varanda, ela me chamou:
— Piccolo, você me disse que… hã… que seu pai veio do Kami-sama, correto?
— Basicamente, sim.
— Então — ela inclinou a cabeça —, isso significa que Kami-sama também é, basicamente, o seu pai?
Me empertiguei em estupefação.
— Ah, essa não… — Lettie disfarçou um riso. — Lá vem outra crise de identidade. Você está bem?
Não?
— Sim. — Sacudi a cabeça. — É que… eu nunca tinha pensado nisso.
— Mas, isso é ótimo, não é? Você enfim tem um pai bom.
— N-Não sei… — Umedeci meus lábios secos e acenei para ela, descendo as escadas rápido. — Bom, não quero atrapalhar seu descanso. Boa noite, Lettie.
— Ah, te espero sábado que vem! — respondeu ela, sua feição demonstrando uma leve tristeza ao me ver ir embora. — Gohan passará o fim de semana aqui e preciso levar Naíma para tomar vacina.
Apenas assenti em silêncio com um pequeno sorriso inseguro e levantei voo.
Minha mente e coração ainda estavam muito conturbados quando voltei para o Templo já tarde da noite e entrei no meu quarto. Era um cômodo espaçoso. Caminhei pelo piso ladrilhado, contornando uma cama que acomodava meus mais de dois metros de altura sob os lençóis de seda roxos e, após alguns passos, subi um degrau e cheguei numa pequena área de descanso ao lado das janelas entalhadas na parede em formato de arco.
Me sentei num divã próximo às pilastras brancas que separavam as janelas e contemplei a Lua pairando lá no alto. Toda a questão do meu sonho, a voz constante do meu Inimigo, a montanha-russa de emoções que passei naquele dia, e agora, essa última informação de que Kami-sama era basicamente o meu pai, só contribuíram para que minha dor de cabeça atingisse o ápice.
— Toc, toc? — Kami-sama veio ao meu encontro, carregando um cálice adornado. — Posso entrar?
— Você já entrou — respondi, sem o olhar nos olhos. Eu não conseguia.
— Parece que hoje foi um dia estressante para um certo rapaz. — Ele me entregou o cálice. — Tome. É Água Sagrada. Vai ajudar com a dor.
Agora eu o encarava, olho no olho. Como ele sabia que eu estava com dor de cabeça? Isso fazia parte de seus atributos concernentes a Guardião da Terra, ou… ou ele de fato sentiu que eu não estava bem e veio me ajudar?
Como um bom pai faria?
Droga.
Tomei a Água Sagrada e a dor passou.
— Obrigado — murmurei, lhe entregando o cálice de volta.
— De nada. — Kami-sama sorriu e se pôs a ir embora, no entanto, parou no meio do caminho e se virou: — Ah! Lettie e Naíma são encantadoras! Gostei de conhecê-las. Você escolheu muito bem.
Meu coração disparou e retruquei:
— Escolhi bem o quê, exatamente??
Kami-sama apenas me deu um sorrisinho presunçoso.
— Ora, Piccolo. Pare de fingir de que não sabe do que estou falando. Eu te conheço. Boa noite, filho. — E saiu alegremente pela porta.