— Não me arrependo de nada. — Disse o Rei, mas para si mesmo do que qualquer outra coisa. Memórias de seus últimos momentos passavam como um filme por sua cabeça.
— Por que fez isso?
— Ah. Eu ouvi a conversa de vocês dois, sinto muito. — Lamento por invadir sua privacidade desse jeito, era isso que o Rei quis dizer. — Mas isso foi bom, me fez perceber que eu não posso deixar aquele homem destruir outra família.
Era engraçado, porque o Rei não se lembrava do rosto exato do Príncipe Dos Feéricos em seus últimos momentos. Apenas de seus olhos, pequenos e escuros, como um lago durante a noite. A cor dos olhos dela…
David jamais saberia, e o Rei perdeu todas as oportunidades de contar. Mas os O'Niells não tinham uma característica física específica, apenas olhos dourados. Mas o Rei nasceu com olhos azuis, claros e brilhantes olhos azuis, da exata cor de Simon McCarter.
Então, ele conheceu ela. A mulher que um dia viria ser sua esposa tinha cabelos pretos e ondulados, incríveis e profundos olhos negros, como joias obsidianas. A primeira coisa que lhe veio a cabeça era que ela era de tirar o fôlego. E perigosa, muito perigosa.
O Rei se sentiu um O'Niell pela primeira vez ao lado dela, porque não lhe importava o poder, a riqueza ou um trono. A única vez que se sentiu especial foi ao ter aquela mulher como sua esposa. E depois ela deu à luz ao seu filhos, que tinha os olhos dela, os cabelos iguais a ela, Deus! Até a cor de sua pele era igual.
Desde então, todos os O'Niells a seguir tinham uma característica específica, as características dela. E mesmo que sua esposa tenha partido, ele ainda a via em todos às gerações dos O'Niells.
Mesmo que todos O'Niells sequer fossem dignos desse nome e alguns o tratassem pior do que um escravo. Estava tudo bem, porque ele ainda podia ver ela em seus olhos. Por isso, o Rei jamais recusou um convite para conhecer a nova geração da família real de Arbor. E você, pequeno príncipe, pensou o Rei, tem os olhos dela.
Nesse caso…
— Não me arrependo de nada.
Um Espírito revirou os olhos.
— Ainda não perguntamos nada.
O Conselho Dos Espíritos Do Bosque foi acionado e assim que o Rei abriu os olhos, se encontrou em uma sala de julgamento. Embora o julgamento não tivesse começado, era óbvio o resultado. Afinal, o Rei descumpriu a principal regra de sua condenação: jamais voltar ao seu corpo.
— Não podemos começar? Estamos todos aqui! — Resmungou outro Espírito, assim que o último chegou.
A herdeira de Destiny se sentava a sua cadeira, e embora estivesse de muito bom humor quando iniciou o julgamento, sua cara se transformou em uma carranca em poucos minutos. O Rei não podia deixar de se perguntar se ela sabia as atrocidades que seu protegido fazia.
Porque a herdeira de Destiny se uniria a Caron O'Niell, afinal?
— Teremos uma nova juíza para esse julgamento. — Disse a herdeira com uma voz suave, transformando sua careta em um sorriso imparcial. Demonstrando de pouca, a nenhuma expressão.
— Destiny? Mas ela nunca vem!
— É um momento importante, no entanto. — Comentou outro Espírito, com uma voz doce e melodiosa. Ela se encontrava em um estranho grupo de quatro pessoas, nenhuma parecida com a outra, seja em personalidade ou estilo. — Não podemos esquecer do que o Herói já fez por nós, não deve ser um assunto a ser tratado com tamanha leviandade.
Uma porta atrás do Rei foi aberta, silenciando a todos. Destiny apareceu em um impecável vestido verde, onde passava, flores cresciam, o que teoricamente não seria possível. Afinal, ainda que estivessem em Slagven, ali era a parte reservada do Bosque para os Espíritos. Nada crescia naquele lugar.
— Companheiros. Estamos aqui para o julgamento de…
Assim que Destiny se sentou no seu assento, sua herdeira passou a falar por ela, já que Destiny era muda, mas ela a calou com um levantar de mão.
— Algum problema, Vossa Excelência?
Destiny simplesmente apontou para a porta ainda aberta.
— Um convidado? Mas Vossa Excelência, isso seria… inadequado.
Assim que a última palavra saiu de sua boca, a porta se fechou atrás de ninguém mais do que David Allans, todo pomposo em trajes cerimoniais, como um verdadeiro príncipe.
— Peço perdão pela demora, tive de sair no meio de um banquete.
Os Espíritos entraram em alerta no mesmo instante, um burburinho se iniciando com sua presença. As reações eram diversas, divertimento, encanto, horror e até mesmo ódio profundo.
Quatro Espiritos, no entanto, pareciam muito mais entusiasmados que os demais . Cinco, se contar com o Espírito que tinha aparência de uma mulher baixa de cabelo azul, essa soava até mesmo nostálgica.
— O que está fazendo aqui, Vossa Alteza?
— Que eu me lembre, o Príncipe Dos Feéricos foi proibido de nossas reuniões, além disso, estamos em uma reunião privada. Nem mesmo o Príncipe Dos Feéricos poderia participar!
— Primeiramente, é bom vê-los novamente. — Começou David, ignorando o olhar chocado do Rei. — Como novo Herói De Arbor, devo dizer que aqui é exatamente o meu lugar.
Rei arregalou os olhos, mesmo que procurasse, não conseguia se lembrar de quando fez a cerimônia para tornar David um Herói. De qualquer forma, o Príncipe certamente teria recusado.
— Posso recitar as palavras que Vossa Majestade me confidenciou ao realizar a cerimônia, se precisa de uma prova.
— Calúnia! Este homem descumpriu a regra primordial da maldição do sono eterno!
— Segundos depois de me marcar como o novo Herói de Arbor. Eu diria que foi um sacrifício nobre, mas como disse antes, posso recitar os votos sagrados, se necessário.
— Já sabia dos votos sagrados antes de conhecer Vossa Majestade, como podemos saber se…
— Silêncio! — Bradou a Herdeira de Destiny. — O julgamento sequer começou.
A Herdeira suspirou, se sentando novamente. O Rei apenas encarou David, extremamente confuso. O Príncipe olhou diretamente para Destiny, que se levantou.
A Herdeira franziu o cenho, antes de começar a falar com uma voz alta e clara.
— Primeiramente, não sei com quem aprendeu comportamentos tão vulgares, Vossa Alteza. Mas não é assim que conduzimos um julgamento. — Destiny olhou de escanteio para a Herdeira, avisando que ela não havia transmitido sua mensagem corretamente. — Mas estamos dispostos a relevar tal insolência.
Um chicote de espinhos bateu no tribunal, mostrando como Destiny estava impaciente. A Herdeira estremeceu e prosseguiu.
— Vossa Excelência já se decidiu. Desde que Vossa Alteza é o novo Herói De Arbor, não há necessidade de um julgamento. — A Herdeira olhou diretamente para o Rei, a expressão desprovia de qualquer sentimento. — Vossa Majestade cumpriu com sua pena, e com isso, devemos iniciar a Cerimônia De Purificação imediatamente. Estão todos dispensados.
O Rei soltou um suspiro, profundamente aliviado. A Cerimônia de purificação era o último passo para o descanso eterno, nenhum Espírito sabia o que acontecia depois da passagem para o outro lado, mas se isso significava que teria uma chance de encontrar sua esposa e filho novamente, já era o bastante.
Destiny foi a primeira sair do tribunal, parando perto de David para lhe dar um gentil aperto no ombro. Os Espíritos se entreolharam, dentre eles, um alto e robusto bradou assim que Destiny não estava à vista.
— Não pense que ter a a benção de Destiny vai mudar alguma coisa, Vossa Alteza. Ainda será aquele que trará a guerra para Slagven novamente, os Profetas nunca falham.
— Vou manter isso em mente. — Respondeu David, sem se deixar abalar.
Ser um Herói significava ter que conviver com aqueles que desprezavam, ele sabia disso muito antes de aceitar. Todavia, não eram todos assim.
Enquanto o Rei sentia algo próximo ao arrependimento, um Espírito alegre e chamativo cruzou seu caminho, puxando David para um abraço de urso. Era aquela que estava em um estranho quarteto antes do julgamento.
Um a um, todo o quarteto o recebeu com um entusiasmo amigável, pela maneira como David se portava, parecia acostumado com a situação. Alguns Espíritos que passavam perto, tocavam seu ombro ou acariciavam sua cabeça, mas logo todos saíram para se ocupar com uma tarefa ou outra na Cerimônia De Purificação, deixando David e o Rei sozinhos.
O Rei abraçou David, um gesto tão simples que não ficou sem durante séculos, até mesmo esquecendo o quão era aconchegante.
— Não sei o que fez, mas palavras não são o suficiente para… — Choramingou Rei, a voz rouca e falha. — Obrigada, pequeno príncipe.
— Só meu pai me chama assim. — Resmungou David, se recusando a demonstrar que também se emocionou. — Você me salvou e eu gosto de pagar minhas dívidas, então trate de ser feliz agora.
— Juro que serei… como posso lhe recompensar por tudo, além disso?
— Nesse caso, faça uma cerimônia curta. Não quero deixar meus amigos esperando.
O Rei gargalhou. Mal sabia ele que David não estava brincando.
No próximo capítulo vai ser o fim desse conto, mas não dessa história. Em breve teremos mais aventuras do David para ler T.T T.T