Olho para Kay com espanto. Ser um cavaleiro, muitos podem ver como algo honroso, que todos almejam se tornar, talvez fosse verdade em outras partes do Reino, mas não nesta região. Estamos na linha de frente, ou seja, se tornar um cavaleiro aqui é lutar contra os vampiros e demônios invasores. Qual a diferença entre isso e o suicídio?
Kay olhava em outra direção, prestando atenção se podia notar que estava focado em uma casa, que fora completamente destruída, nem mesmo uma parede ficou de pé.
— Não queria falar antes, mas... — Sua voz estava fraca e falhava, estava quase chorando. — Eu, cresci nesta vila.
Recebo suas palavras com um grande choque. Durante o trabalho, pela manhã, Kay parecia bastante abatido, mas pensei que todos estávamos igualmente, afinal, ninguém ali estava realmente bem com aquele cenário.
Em nosso grupo temos um lema, "nada que aconteceu antes importa", não falávamos de forma alguma sobre nossos passados, no começo a regra foi criada para esconder a identidade de Maria, mas percebemos que todos precisávamos dela.
Agora ele estava enfrentando o passado que tanto tentou deixar para trás, ali, na cidade em que havia vivido, que agora está em ruínas.
— Tenho poucas boas lembranças aqui... — Agora algumas poucas lágrimas escorriam por seu rosto. — Mas era a minha cidade sabe?
Ele termina de falar e enxuga suas lágrimas, nenhuma hora nossos olhares se cruzavam, parecia não querer uma resposta para suas palavras. Sei como se sente, às vezes apenas alguém para ouvir é o suficiente.
— Sinto muito — falo tentando achar as palavras certas. — Eu não sabia.
No fim não consegui dizer nada demais, apenas palavras que pareciam vazias.
— Eu que deveria estar pedindo desculpas. — Ele olha para mim e força um pequeno sorriso. — "Nada que aconteceu antes importa", certo?
Ele limpa o rosto quando mais algumas pessoas se aproximavam. Seus olhos estavam vermelhos, porém ainda conseguia forçar um sorriso. Nosso lema era horrível, podemos tentar esconder de qualquer forma, mas a verdade é que importa. Sempre irá importar.
— Vamos voltar ao trabalho? — Kay fala quebrando o silêncio depois de um tempo e se levantando.
Estende a mão em minha direção.
— Vamos — respondo pegando sua mão.
Foi montado um acampamento perto da entrada da cidade, o local foi escolhido por ser o mais seguro. Ao outro lado estava uma floresta com bestas perigosas.
Apesar de estar exausta, mentalmente e fisicamente, não consegui dormir durante aquela noite. Minha cabeça estava trabalhando cem por cento, Maria, Kay, a guerra, tudo isso estava deixando ela louca. O que deveria fazer?
As horas passaram como minutos e em um piscar de olhos havia chegado a hora.
Saindo da barraca vejo que já haviam alguns aventureiros acordados, aqueles foram os que ficaram de guarda pela noite.
— Já acordou? — Um deles diz ao me ver. — Você ainda tem tempo.
— Vou apenas fazer uma caminhada, é um costume que tenho — respondo.
— Alguns minutos atrás outra garota saiu. — Outro entra na conversa. — Se me lembro bem vocês estavam juntas antes. Ela me falou que iria apenas dar uma volta, mas está demorando um pouco.
Provavelmente Maria.
— Obrigada, vou tentar a achar — falo seguindo em direção a floresta.
Durante o trajeto não me encontro com nenhum aventureiro, estavam todos em locais próximos ao acampamento, o que ajuda bastante quando alguém quer sair escondido.
Pelo caminho vou observando a cidade. Esta era a parte mais longe da costa, então não há muita destruição por aqui. Algumas casas estavam quase impecáveis, enquanto outros sofreram ataques mágicos de longa distância. Que tipo de magia destrói uma casa inteira?
Chegando a floresta encontro Maria sentada debaixo de uma árvore, ao seu lado estava sua mochila e seu cajado. Ela olha para mim e sorri.
— Você decidiu ficar. — Ela fala olhando para mim.
Estou sem meus equipamentos.
— Sinto muito — respondo sem conseguir olhar em seus olhos.
Não sei se estou fazendo a coisa certa. A verdade é que uma parte de mim quer fugir com ela, mas outra diz o contrário.
— Não precisa se preocupar. — Sua voz estava calma, mas seus olhos enchem de lágrimas. — Eu entendo...
Não conseguindo manter suas lágrimas elas começam a escorrer por seu rosto. Sei muito bem como ela se sente, afinal, estamos juntas por muito tempo, ela é muito mais importante para mim do que um irmão poderia ser. Acabo chorando tabém.
— N-Não é que eu não queira ir com você... — Acabo soluçando por causa do choro, mas consigo me controlar. — De um tempo para cá estou um pouco estranha também, é como se eu sentisse um senso de dever. Se eu for com você agora irá parecer que estou tentando fugir disso.
— Eu queria ser assim como você. — Ela diz abaixando a cabeça.
Vou até ela e a abraço.
— Sua situação é diferente da minha. — Passo a mão em sua cabeça. — Você precisa manter sua liberdade para que possamos nos encontrar no futuro.
Ela olha para mim com uma expressão de dúvida.
— Você pensou o que? Que iríamos nos perar para sempre? — Olho em seus olhos. — Você é melhor amiga e sempre será, é claro que irei atrás de você depois.
Ela havia parado de chorar, mas ao ouvir minhas palavras começo novamente.
— Desculpe, não queria te fazer chorar — falo entrando em desespero.
— É um choro de alegria idiota. — Ela me dá um abraço ainda mais forte agora. — Tente ler o clima.
Ficamos ali por um tempo em silêncio, Maria é a primeira a falar.
— Estou indo para a cidade de Tot.
Tot?
— Isso é do outro lado do Reino... Ficaremos muito longe...
— Você disse que viria — diz fazendo beicinho. — Não dá mais para fugir.
Depois daquilo tudo nós estávamos rindo, igual duas idiotas. Vou sentir muita saudade dela, mas assim como eu mesma disse, iremos nos encontrar novamente.
Assim nos despedimos. Fiquei olhando para ela até que desaparecesse completamente de minha vista. Sinto um aperto no peito quando vejo que isso realmente aconteceu, mas tenho que aguentar, essa é minha decisão.
Quando voltei ao acampamento Kay e Joe estavam acordados, estávamos na hora da troca de turnos.
— Bom dia — falo aos dois.
— Bom. — Joe fala focado em seu café.
— Bom dia. — Kay parecia um pouco melhor que ontem
Sentamos junto com o grupo que iremos trabalhar hoje.
Aventureiros não costumam comer bem em suas missões, hoje não era diferente, tínhamos pão duro e um pouco de carne que foi caçada na redondeza.
— Onde está Maria? — Joe pergunta depois de um tempo.
Eles não sabiam que Maria era uma nobre, será uma árdua tarefa tentar explicar para eles.
— Preciso falar com vocês depois do almoço — falo me levantando.
Ainda não estou pronta para isso.
— Sobre o que? — Ele parecia desconfiado.
— Maria. — Saio de perto deles.
Embora eles não soubessem acho difícil não terem desconfiado de nada. A regra de não falarmos sobre nosso passado, sua atitude perfeita demais para um plebeu comum, ela se destacava mesmo não tentando fazer nada demais. Seria um ar de nobreza?
Todos trabalhamos com todas nossas forças naquela manhã, a maioria dos corpos foram queimados ontem. Só a lembrança daquele cheiro é o suficiente para me fazer passar mal. Na hora tive que ir para longe. Hoje eles foram queimados um pouco mais longe da cidade, embora seja mais trabalhoso o cheiro não iria nos atrapalhar.
— Vai trabalhar com entulhos hoje? — Kay pergunta ao me ver.
— É melhor que sentir aquele cheiro — respondo.
— Concordo.
Na pausa para o almoço todos nos reunimos. Fomos para um local onde ninguém pudesse nos escutar.
— Maria... — Começo a falar, mas nem sei por onde começar. — Ela teve que sair de nossa party por um tempo.
Decidi falar de uma vez.
— Por que? — Joe parecia chocado com a notícia.
Passei o dia inteiro tentando pensar em uma desculpa convincente. Não posso contar para eles a verdade, porém também não sei se conseguiria enganar eles. "Ela disse que foi viajar por um tempo", isso obviamente não daria certo, as ainda tenho algo que pensei.
— Ela tem alguns assuntos para tratar com sua família, seria ruim se ela ficasse aqui por muito tempo. — Acabo falando rápido demais.
Quando estou nervosa costumo fazer isso. Pelo menos achei um jeito, ao invés de mentir vamos omitir as partes importantes.
— Isso é algo que não pode nos contar? — Kay pergunta.
— Algo do tipo, infelizmente não posso contar os detalhes para vocês, ela me pediu para manter em segredo — respondo.
Joe parecia ter ficado chateado com aquela notícia, mas não disse nada, ficou apenas calado enquanto eu respondia mais algumas perguntas de Kay, como: "Ela vai ficar bem?" ou "Você tem certeza que ela levou tudo o que precisava?". Entre nós ele era o que sempre lembra de coisas que tínhamos esquecido e Maria era sempre a que esquecia tudo, então eu entendo suas preocupações.
— Vamos apenas voltar ao trabalho. — Joe fala se virando e começando a andar.
Eu e Kay ficamos sozinhos.
— Qual o problema dele? — falo chutando uma pedra.
— Você é bem lerdinha quando se trata de Joe né? — Ele fala enquanto rir.
— Como assim? — pergunto.
Ele apenas começa a andar também.
— No fim ele está certo, temos que voltar ao trabalho.
— Espera um pouco — falo. — Me explica!
Kay segue para o local de trabalho e eu o sigo. Queria ter conversado mais com eles naquele dia, mas não tinha como saber o que iria acontecer logo em seguida.
Naquela noite sofremos um ataque noturno.