Tenho mãos, mas não me importo com elas, afinal, me servem, e sempre estão comigo. Tenho liberdade, mas...
Yanna entrou na sala de holo, em silêncio, a mente em branco.
Respirou fundo uma, duas vezes. Suspirou aliviada, sentindo que estava preparada. Seu coração e sua respiração estavam normais. O vazio do espaço, sua mente iria conseguir vencer com tranquilidade, conferiu.
Fora uma solução aceitável, tinha que concordar. No conforto de uma sala holo, sem qualquer risco, sem precisar trajar as roupas que julgava tão frágeis e sem ter que enfrentar tudo o que lhe dava medo. Logo tudo estaria resolvido.
Com um gesto de cabeça pediu para que transmitissem.
A sala sumiu e deu lugar a uma paisagem morta. Sob a luz de um planeta vermelho viu um robô imenso, poderoso, sentado sobre uma grande rocha. Seu corpo de metal parecia incandescente sob a luz do planeta.
De repente, por trás do planeta, viu o sol, pequeno e tímido.
Sorriu.
Ali estava, de pé em frente ao grande robô, sem qualquer equipamento que a mantivesse viva.
O robô a examinou, não mostrando nenhum interesse especial.
- O que veio fazer, mulher? – perguntou com desinteresse.
- Apenas conversar.
- Sei!
Yanna virou o rosto para cima, no momento certo de ver o planeta flutuando sobre sua cabeça. Abriu um largo sorriso ao ver que, logo acima, estava o monte Vesúvio, o grande vulcão, e ficou imaginando o que poderia cair de lá, sobre a sua cabeça.
- Todos imaginam isso, quando o Vesúvio passa assim – falou o robô.
- Isso porque é uma visão maravilhosa – concordou. - Li sua ficha – disse Yanna.
- Toda ela?
- A que estava disponível, sim!
- Então me diga o que sabe.
- Sei que você estava além da heliosfera, e que ficou bem no meio do caminho de uma onda de uma supernova.
> E que, quando se recuperou, simplesmente sumiu, reaparecendo aqui em Fobos.
- Então tem tudo o que precisa – falou o robô.
- Não, não tenho.
- O que te falta?
- Respostas!
- Sempre as procuramos, e só o que encontramos são mais perguntas. Viva com isso...
- Quero saber o que te fez quebrar os programas, as leis, os condicionamentos.
- Nada! Apenas decidi tomar o portal e descer em marte.
- Sei... E então roubou a nave de inspeção e se isolou aqui em Fobos.
- Sim, isso mesmo. Quem a enviou, quem me quer? – perguntou ele, mudando o rumo do assunto.
- Cientistas... A companhia o doou para a universidade.
- Estranho. Os homens sempre se acham no direito sobre tudo que está ao alcance de suas vontades. Chamaram a vida de recursos, e dela fazem uso.
- Você é um robô...
De súbito o robô estava ao seu lado, vermelho, gigantesco, como devem ser os robôs para agir entre as frias pedras de gelo, além da heliosfera.
> Descontrolado? – estranhou ela com bastante tranquilidade.
- Frustrado – retorquiu ele, a mão se fechando em torno de sua holo.
- Me mataria, se eu não fosse uma holo?
O robô não respondeu. Virou-se e voltou para a pedra, onde ficou novamente concentrado, pensando, virado de perfil para ela.
- Posso te ajudar – se ofereceu.
- Sei quem é você, doutora.
- Então sabe que posso te ajudar.
- Se pudesse, doutora, eu te ouviria.
- Não quer me dizer o que te aflige?
O robô ficou calado, pensativo, igual a estátua de Rhodan.
Yanna, pacientemente, ficou aguardando a decisão do robô. Olhou para o chão, descalçou o sapato e tocou o solo.
- Muito realista, não é mesmo? – falou o robô numa voz pausada e distante. A holo estimula diretamente o córtex cerebral. Sabia que eles poderiam te fazer ter a verdadeira experiência do espaço, de estar assim desprotegida no espaço? Você sentiria seu sangue ferver, o frio monstruoso tomar seu corpo e mente e ameaçar atingir até sua alma?
- Sim, eu sei... Hipnose profunda... – concordou calçando novamente o sapato. – Gostaria de ouvi-lo... – pediu.
O robô a olhou de lado, pensativo. Por fim mudou a postura.
- Houve a detonação de uma estrela, a milhares de anos-luz de onde eu estava. Todos os sensores mais distantes gritavam, emitindo o alerta, mas eu tinha que fazer meu serviço. Eu e mais dois robôs estávamos minerando uma rocha de alto valor. Já havíamos passado por outras explosões, e demos prioridade ao serviço.
> Então a onda nos atingiu. Sem a proteção da heliosfera o impacto foi extremamente violento. Os dois que estavam comigo simplesmente se foram. Eu resisti, talvez porque estivesse protegido pela rocha. Mas senti quase toda sua força. Meus circuitos se sobrecarregaram. Luzes e explosões, sons ensurdecedores, lampejos... Visões, vozes...
- Visões e vozes. Que tipo de visões e vozes? – espantou-se Yanna.
O robô manteve silêncio, um silêncio feito de indecisão. Por fim mirou a psicóloga com olhos que pareciam chamas.
- Eu vi seu Deus – disse numa voz, que parecia sonhadora. - Eu o vi passando por aquelas regiões ermas.
Yanna o estudou, estudou aqueles olhos de fogo, que verificavam cada mínimo traço, cada mínima contração de seu rosto, cada mínimo gesto que fazia.
- Acho que você está com sérios problemas – optou pela sinceridade absoluta.
- Agradeço sua sinceridade – falou, retirando os olhos da psicóloga.
- Por causa da brutal onda de energia, você teve uma experiência mística – falou.
O robô girou o corpo sobre a pedra, sentando-se bem de frente a ela. Havia calma em seus modos e em sua voz.
- Sei que sim... Mas, o que despertou em mim é... incompreensível, grande demais. Eu vi como existir é... – o robô ficou em silêncio, e Yanna sabia que ele vasculhava seu vasto banco de dados atrás de uma palavra, ou mesmo de um som, que pudesse definir o que sentira. Por fim deu-se por vencido, e sorriu triste. – Vi como existir é impressionante, como é maravilhoso. Eu, eu, Malthus, existo, independente de você ou qualquer outro. Eu, Maltus, tenho consciência de que existo, e que só cabe a mim os rumos que eu der à minha vida. Doutora Yanna, eu descobri que possuo uma alma, dada por Aquele ser para o qual ainda não se inventou palavra ou pensamento para definir, que vagava por aqueles lados de seu jardim.
- A companhia não...
- A companhia não detém poder sobre mim.
- Ela não pensa assim, Maltus.
- Eles te mandaram para me convencer de que não existo?
- Eles não sabiam da profundidade de sua experiência – informou. – Eles me mandaram para avaliar seu estado psicológico, e testemunhar se estaria ou não operacional.
- Para verem se vão reconsiderar a doação à faculdade? – zombou.
- Provavelmente.
- E estou, doutora? Ainda sou operacional?
- Como robô, não!
- Sabe, eu vi o valor da minha vida, e é o mesmo valor que carregam todos os outros. Não quero ferir ninguém...
Yanna então voltou seus olhos para as costas do robô, e viu pequenas chamas silenciosas se aproximando. Seus olhos se voltaram para o gigante.
A nave passou em silêncio sobre eles, em alta velocidade.
Subitamente dois robôs cravaram-se no corpo de Fobos, atrás de Yanna, bem à frente de Maltus, que tranquilamente se levantava, porque os havia percebido.
A psicóloga girou novamente a cabeça, tirando a atenção dos dois robôs, procurando por Maltus.
Então Maltus cravou os dedos na rocha e girou com violência. Um terceiro robô, que tentava atingi-lo por trás, com a violência do golpe, partiu-se em dois, seus pedaços disparando em direção ao planeta vermelho.
Os outros dois, correndo sobre a rocha, porque seus dedos agiam como cravos e impulsionadores, abriram fogo com suas armas.
Yanna olhou para baixo, os feixes atravessando seu corpo, buscando Maltus como se ele fosse um buraco negro.
Maltus, com grande velocidade, agachou-se e girou, escapando dos feixes de laser. Ao tocar o solo se levantou de vez, de perfil, os braços levantados, enquanto os dois passavam, um de cada lado.
Maltus simplesmente baixou os braços e empurrou de chofre os dois contra a pedra. Uma explosão de luz, e os dois robôs silenciaram.
- Não quer machucar ninguém? Então, eles também não tinham vida? – reagiu Yanna. - Podia simplesmente, tal a sua força, tê-los imobilizado.
- Este não é um tempo para ser bonzinho – falou com frieza.
- O que vai fazer? – perguntou ao ver que ele tomava a arma de um dos robôs.
- A existência é mágica, na maior parte do tempo oculta, dissimulando sua verdadeira face misteriosa em... esquecimento – falou enquanto examinava a arma e tomava conhecimento de seu funcionamento.
- Você sabe ler, ao menos alguns deles?
- Eles têm medo. Eu vejo coisas. Fiquei muito próximo Dele, e acho que alguma coisa aconteceu... A vida é mágica – falou, virando a arma em direção à nave que se aproximava novamente, - não como uma frase, mas como realidade. Vocês são criações do que chamam de Deus; e ele os dotou de algo que me escapava, que os torna divinos, maravilhosos.
Apontou a arma.
- Mas ele, ao me olhar, despertou minha alma, e me disse que somos todos irmãos – revelou com a voz distante e pensativa. – Foi quando descobri que Ele também é o meu Deus. Se vocês construíram meu corpo, foi Ele que o fez de morada para algo que Ele criara, a minha alma, que permitiu se instalar num corpo de metal, que os homens estavam para animar.
O feixe explodiu da boca da arma. A nave acusou o golpe. Desgovernada deu um pequeno ângulo para fora do alcance do robô e bateu de lado contra Fobos. Ricocheteando tomou novamente a direção do espaço, bastante danificada.
- O que irá fazer agora? - perguntou, vendo que tomava a direção da nave que usara para alcançar o satélite.
- Ficar vivo...
A porta se fechou e a nave subiu. Fora do alcance do holo a nave desapareceu.
De repente o satélite e o planeta sumiram, e se viu novamente na sala nua.
Sem qualquer palavra saiu. Por horas a fio preencheu montes de relatórios e fez inúmeras reuniões. Por fim, exausta, foi para casa.
Durante dias se recusou a atender quem quer que fosse, inclusive rejeitando novas missões. Sua mente estava girando, pensando sobre o milagre que vira ante seus olhos.
Um robô, uma máquina construída pelos homens, jurava ter visto uma outra criação da mente do homem, talvez a mais sublime construção de uma alma em conflito.
Então, pelos noticiários, soube que Maltus havia sido localizado no planeta vermelho e que, após invadir a filial da robotics, destruíra inúmeros robôs e danificara gravemente a linha de montagem. Mas, o mais grave, era a morte do velho cientista Damercius Len, encontrado em meio aos pedaços destroçados dos robôs. Uma grande e violenta caçada estava em andamento naquele planeta, que agora estava totalmente fechado.
Apressada ofereceu seus serviços para intermediar alguma possível negociação, o que foi aceito com exasperante demora. Por fim, vencendo todo seu pânico do vazio do espaço, tomou uma nave para Marte.
Quando chegou soube que o haviam encurralado no lado sul do monte Olimpo.
Saltou assim que sua nave pousou, e quase caiu, atrapalhada com a roupa espacial.
Ela estava envergonhada, porque lhe haviam dado uma daquelas roupas colantes, que ficavam muito bem em modelos. Disseram que eram as únicas que tinham, no momento. Tivera que se resignar. No entanto, insistira em vestir sua saia por cima da roupa, o que lhe conferia, em sua visão, um pouco de dignidade.
- Ele mesmo cavou uma caverna na base do vulcão, e está entocado lá dentro – avisou o oficial responsável pela operação militar, assim que ela se aproximou.
Ao longe a fenomenal montanha contra o céu rosado. Lentamente foi seguindo aquele colosso, até um impensável topo, difícil de discernir, 27 quilômetros acima da planície árida.
- Eu vou lá – avisou ao oficial.
- Não tenho autorização para deixá-la passar, doutora Yanna.
Ela respirou fundo, e emitiu uma solicitação de permissão para ir até o robô. O oficial a observava, pensativo,
- É a autorização que espera – falou para o oficial, assim que o comunicador dele deu um bipo.
O oficial o atendeu, e ficou pensativo, escutando. Então levantou o braço e mandou vir um pequeno carro.
- Está por sua conta, doutora. Já sabe o que ele fez aqui na filial da Robotics, não sabe?
- Eu sei sim – falou sem qualquer emoção.
- Leve-a e volte rapidamente – ordenou ao motorista, que acelerou em direção à caverna.
O oficial ficou observando o carrinho ficar cada vez menor, até que parou frente ao gigantesco vulcão.
Tudo ali parecia diminuir, de encontro aquela base de 6 km de altura do vulcão. Até o enorme robô que sumira de encontro à gigantesca muralha ocre, parecia um diminuto brinquedinho, quando o vira pela manhã.
Yanna se aproximou da boca da caverna.
Ao lado imensos blocos de rocha, e sinais inconfundíveis de garras de irídio, grafeno e NAD[1] nos riscos agressivamente registrados.
Yanna deu dois passos para dentro da caverna, logo parando para se familiarizar com o ambiente.
A caverna não era profunda, era rasa, e parecia ter sido cavada às pressas. Havia muitos escombros espalhados pelo salão.
Num lado côncavo da parede esquerda, provavelmente feita para esconder das vistas quem estivesse ali refugiado, viu o robô sentado, o corpo tombado para o lado esquerdo, brilhando suavemente na penumbra.
- Maltus – chamou.
> Maltus, eu vim para ajudá-lo – insistiu.
Então o robô se virou, e Yanna levou um grande susto. Algo estava errado com o robô.
O robô se mexeu e olhou diretamente para ela. Com grande dificuldade endireitou o corpo.
Um som como de folhas de metal ao vento, incompreensível. Yanna franziu os cenhos, preocupada.
- Você está bem, Maltus?
- Maltus não aqui – identificou entre a algaravia de sons de metal, que lentamente foram se tornando mais claros.
- Meu Deus... O que está acontecendo aqui? – recuou assustada.
- Sou Damercius, cientista da Robotics – informou, a voz agora bem mais clara. – Quem é você?
- Sou Yanna Schanny...
Um frio correu por toda sua espinha, sua mente ameaçando se perder num redemoinho de pensamentos. Com um suspiro se apressou em se controlar.
- Ah, sim! A psicóloga de robôs...
- Sim, sou eu. Agora, onde, onde está Maltus?
O robô se sentou, agora bem mais senhor de si. Com estranheza olhou suas mãos, e passou em revista seu corpo.
- Possivelmente morto. Quando eu entrei no laboratório eu o vi mexendo num novo equipamento... Ele o queria.
- O capturador de almas?
O cientista a olhou por alguns segundos.
- Sim, doutora, um revolucionário capturador de almas... Sabe, maior velocidade e integridade na transferência das "almas" – sorriu, examinando agora as costas das mãos.
- Ele poderia transferir a alma de um homem? – estranhou.
- Não, isso não. Nem sabemos como uma tecnologia dessas poderia funcionar. Na verdade, é um caminho que não havíamos tentado.
- Mas, como...
- Foi ele... De alguma forma ele o modificou...
- Esse aparelho ainda está lá?
- Até o momento em que me lembro, estava com ele. Espero que esteja por lá, sim...
- Ele estava tentando se transferir para outro corpo?
- Sim, eu o vi separar um robô série militar.
- Meu Deus... – suspirou Yanna.
- Eu o surpreendi na bancada, com o capturador de almas. Então ele me pegou e me imobilizou de encontro a parede.
O doutor parou de falar, a mente se esforçando em vasculhar os acontecimentos de que tomara parte.
- O que aconteceu? Como veio parar aqui? Como foi parar no corpo de Maltus?
- Está tudo confuso... Eu só vi um segurança surgir do lado direito, e mirar sua arma... Depois,... Bem, só me lembro de acordar aqui nessa caverna... Não sei o que aconteceu...
- Posso? – pediu, adiantando um auscultador.
- Acho que sim – admitiu.
Yanna acoplou o pequeno aparelho ao cérebro do robô e, por alguns minutos ficou ouvindo, o cenho impassível. Com bastante rapidez acionou o holo, e deletou vários arquivos da memória secundária.
Então o retirou e o guardou. Do bolso tirou um outro, que colou no mesmo lugar. Assim que uma pequena luz verde de led se acendeu ela o retirou e guardou no outro bolso. Sacou então seu telefone e discou para a central de comando.
- Levantem o cerco ao vulcão. O robô que está aqui dentro não é Maltus. Repito, não é Maltus.
Ficou em silêncio, ouvindo por um momento.
- Isso! Bem, o que está aqui dentro tem a carcaça de Maltus, mas é o doutor Damercius que está nele.
Afastou o aparelho do ouvido, para o qual ficou olhando indiferente. Ao ver que havia silêncio o trouxe novamente ao ouvido.
> É o que falei. Aparentemente Maltus melhorou um capturador de almas que encontrou e... Não, nada sei desse capturador, nem como ele é. Sim, sim, é o que parece. Aparentemente ele ia se transferir para um outro robô, para desaparecer, mas o doutor aqui o interrompeu. Ele então transferiu o homem, e destruiu o corpo do... do que o cientista usava. Destruiu o corpo humano.
> Sim, certo. Bem, acho que Maltus está morto. Chequem com a segurança da empresa, que invadiram o local e atiraram a esmo. Aposto como eles destruíram alguns robôs. Vi alguns destroços com buracos de bala supersônica. Procurem por um da nova série militar.
> Entendendo... Bem, acho que Maltus programou o cérebro auxiliar desse robô para trazê-lo para cá e se esconder, até Demercius poder assumi-lo. Ao menos, foi o que vi.
> Sim, eu gravei tudo, e logo estará à disposição para análise.
Após ouvir por mais alguns momentos se despediu e desligou o aparelho.
- Bem, doutor. Vai me desculpar, mas será imobilizado e transportado, até que possamos saber a extensão do que realmente, e como realmente tudo aconteceu.
- Eu compreendo o protocolo – aceitou se levantando em toda sua altura.
Assim que os militares surgiram na boca da caverna, ele os acompanhou com docilidade até a larga e forte gôndola de transporte, onde se acomodou. Após ser desativado pelos técnicos, a nave subiu, levando a pesada carga.
Yanna ficou um tempo observando o grande robô se distanciar.
Assim que tomou o assento no pequeno carro pediu ao motorista que a levasse diretamente para a base. Após tirar o fino traje espacial correu para acompanhar as equipes de busca que vasculhavam cada centímetro do laboratório. No caos de cérebros, placas, circuitos e componentes, nada encontraram que pudesse se assemelhar a um capturador de almas. Então recolheram tudo para classificação e análise e fecharam o laboratório.
Após entregar os relatórios e o segundo auscultador, e dar por finda sua missão no planeta, comprou vistos de turistas e se registrou num hotel na capital.
Então, três dias depois, devidamente vestida com roupas para o clima terrível de Marte, tomou uma pequena nave e foi para o norte, para os vales de vidro.
- Então aqui está você... – cumprimentou a psicóloga.
- Sabia que descobriria – congratulou o robô.
O aspecto era comum, viu Yanna. Um robô normal, até mesmo antiquado.
- Peguei seu recado, de onde estaria. Foi tudo uma encenação, não foi?
- Fazer parecer que ia escolher a versão militar? Bem, sim, apenas para embaralhar a memória do doutor.
- Por que transferiu a alma do doutor para um robô?
- Oportunidade... Havia um robô de segurança, que foi acionado quando desliguei as câmeras internas do laboratório com uma dupla imagem. Sabe como é, não sabe?
- Trocou as imagens – reconheceu Yanna.
- Sim, eu passei a enviar imagens do laboratório vazio para o sistema, mas o robô foi acionado assim mesmo.
- Mas ele...
-Ele só se acionou quando o doutor entrou, porque entendeu que um humano estaria correndo risco de vida. Quando ele atirou eu me esquivei, mas ele estava atrás. Não foi proposital.
- Por que colocou a alma dele no robô?
- Ele estava morrendo, e não havia tempo nem condições para acionar os paramédicos.
- E, também, foi uma chance de dar uma liçãozinha nele, não foi? – instigou ela.
- Bem, de certa forma. Afinal, foi o relatório dele que dizia claramente que um robô não possui qualquer resquício de consciência, sendo apenas programação pura e simples... Nada melhor que sentir na própria carne,... quer dizer, nos próprios circuitos, não? Não foi proposital, mas veio a calhar sim.
- Com poucas coisas abriu muitas possibilidades, não?
O robô ficou em silêncio, pensativo...
- Seu capturador de almas... Uma alma humana em um robô... Uma alma de robô num corpo humano?
- Talvez – sorriu.
- As implicações são muitas...
- Sem dúvida que sim. Muitas,... possibilidades sim.
- E onde está esse equipamento?
- Muito bem guardado, doutora... O risco, se mal usado, é imenso...
- Claro que sim...
- Em todo o caso, os homens saberem da possibilidade irá abrir muitos ramos de estudo.
- Eu acreditei que iria doar o equipamento, para abrir de vez essas vias.
- Não, doutora... O homem não está preparado para isso, ainda. Talvez algum dia.
- Sim, talvez... – falou girando o segundo auscultador dentro do bolso. - E agora, o que vai fazer? – perguntou, deixando adormecido o auscultador.
O olhar dele se perdeu no céu azul pálido da tarde marciana, cismando, sonhando, ela viu.
- Não sei... Não tenho pressa... Sou livre agora!
[1] Nanobarras agregadas de diamante