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Capítulo 1

O silêncio era absoluto na floresta naquele fim de tarde. As árvores, a luz avermelhada que o sol emanava, o vento que remexia algumas folhas no chão. Era tudo tão nítido que foi como se Maya realmente tivesse voltado no tempo até àquele dia.

Maya Jones se viu criança mais uma vez. A sua frente estava uma jovem mulher de cabelos dourados, ajoelhada para que suas alturas se equiparassem naquele momento. A criança se sentia insegura e desesperada, mesmo sem saber, ou lembrar, ao certo o motivo. Apenas sabia que algo ruim estava prestes a acontecer. A loira a abraçou forte, suas lágrimas escorriam pelos ombros da menina e desciam pelas costas fazendo cócegas, deixando uma sensação gelada por onde passavam.

Depois de um bom tempo naquele abraço molhado e silencioso, a mulher passou a derramar algumas palavras além de lágrimas por cima dos ombros da criança com sua voz doce embargada pelo choro

— Eu te amo tanto, Maya! Não tenha medo, você estará sempre a salvo.

Por instinto a menina começou a chorar também. Maya sentiu seu pequeno coração quase explodir no peito quando a figura feminina se levantou e a deixou no chão desamparada. O abraço forte que antes a incomodava de tão apertado agora fazia falta. Foi quando uma mão masculina apareceu em sua visão periférica e mesmo sem ver o rosto do homem a qual aquele gesto de amparo pertencia, imediatamente ela foi inundada por um velho sentimento de confiança que a fez segurar a mão dele.

— Elizabeth, já é hora! — Disse a voz masculina, que por mais que lhe fosse familiar, não conseguia reconhecer.

Finalmente, a bela moça assentiu relutante, e se afastou caminhando sob as folhas secas que o outono deixou pra trás.

Maya acordou assustada, se sentando na cama como num impulso involuntário. Não conseguiu evitar o sentimento de alívio quando seus olhos castanhos notaram que estava em seu quarto.

Ela tinha esse mesmo sonho desde que sua mãe partira. A garota não se recordava com nitidez do rosto da mãe, principalmente porque seu pai havia queimado todas as fotos dela dias depois de sua partida, mas acreditava com todas as suas forças que na verdade esse sonho era a lembrança da última vez que estivera com ela. Tinha certeza de que aquele fora seu momento de despedida, mesmo que seu pai e Theodoro insistissem que esse último contato nunca existiu e que provavelmente era fruto de sua imaginação para lidar com a partida sem explicação de Elizabeth.

Theodoro…

Como já era de costume há alguns meses, ao pensar nesse nome a reação corriqueira já voltava a dar as caras, enchendo seu estômago de borboletas e toda aquela confusão se instalou em sua mente mais uma vez. Pensar em Theo daquele modo era tão errado que Maya nem ao menos queria dar um nome ou classificar que estava sentindo por ele ultimamente.

Apesar de viver viajando a negócios, Theo sempre esteve presente na vida de Maya. Amigo de infância de Elizabeth, não demorou a se tornar muito próximo de Afonso Jones quando ela o apresentou como namorado. Depois do desaparecimento e suposta morte de Elizabeth, ele se mudou para o casarão que ficava em frente à casa dos Jones para ajudar a cuidar da única filha que sua melhor amiga deixara.

Até o início da adolescência, Maya tinha uma péssima relação com o pai. Não sabia dizer como e nem porquê na verdade, tinha sim seu palpite a situação melhorou abruptamente, mas ainda se lembrava com clareza das brigas e desentendimentos constantes. Afonso algumas vezes, no auge de suas bebedeiras, chegou a culpá-la pelo desaparecimento da mãe e nessas horas sempre tinha Theodoro por perto para acalmar os ânimos do pai e tirá-la de casa até que o viúvo conseguisse colocar as ideias em ordem. Ela acreditava que por essa razão, as melhores lembranças que tinha da infância foram na mansão da frente e não em sua própria casa. Os melhores presentes como sua primeira bicicleta, a imensa casa de bonecas, os melhores conselhos, os melhores passeios, sempre vinham de Theo. O que atrapalhava em muito a descobrir se o que sentia nesses últimos meses era uma admiração exagerada por tudo que ele representava para ela ou se era algo mais.

A menina sacudiu a cabeça para espantar seus pensamentos como se eles fossem um punhado de terra em sua cabeça e se arrastou até a borda da cama para alcançar o celular na mesa aos seus pés. Olhou a hora e confirmou o que já desconfiava: Já era quase hora de levantar.

Seria mais um dia com olheiras e cara de noite mal dormida, mas sabia que ninguém se importaria se ela não quisesse.

Isso se daria devido a sua inexplicável "sorte excessiva". Algo que muitos dariam qualquer coisa para ter, para Maya era simplesmente uma maldição. Ela tinha tanto medo que quase não usufruía desse dom propositalmente, apenas tentava deixar as coisas acontecerem da maneira mais natural possível, sem que seus desejos interferissem. Tinha verdadeiro pavor de parecer uma aberração, ou pior, que aplicação errada daquele poder trouxessem consequências graves e irreversíveis. A garota não sabia ao certo como aquilo funcionava, o que tornava tudo ainda mais perigoso, mas sabia que não eram em todas as situações que conseguia com êxito aplicar sua maldição de persuadir o universo para que as coisas acontecessem exatamente como ela queria. Era de sua ciência também que algumas pessoas pareciam ser imunes as suas vontades, e isso fazia com que Maya se sentisse mais confortável na presença delas do que de outros.

Desde que seus poderes começaram a se manifestar, a menina passou a se sentir menos confiante a conviver com pessoas que eram tão sensíveis aquela maldição. Tudo começou com machucados que saravam assim que ela os percebia. Ela não queria sentir dor, então eles sumiam. Depois, seu pai passou a ficar mais em casa, sempre sóbrio e tratando-a como antes de sua mãe desaparecer. Isso era exatamente o que ela desejava. Em momento algum até ai, sua sorte excessiva a assustou. Muito pelo contrário. Mas em um dia como outro qualquer na escola, ela esbarrou em um garoto chamado Pedro Bianchi na fila do refeitório. Pedro parecia ter muitos amigos, e para impressioná-los, começou a dizer coisas horríveis para Maya. Ele disse que ela era uma "sem mãe" e que o pai dela era um alcoólatra, e que provavelmente por isso, e para não ter que suportar Maya, a mãe dela fugira. Ela ficou em choque, e quando finalmente desejou que ele cessasse as provocações, já era tarde demais. O ódio fez com que seu peito queimasse em brasas e todos os seus ossos vibrassem até doer. Ela desejou que Pedro sentisse fisicamente duas vezes mais a dor que ela sentia na alma.

Parte do teto desabou. Literalmente. E apenas um pedaço grande o suficiente para esmagar Pedro embaixo dele.

O garoto não morreu. Até porque a intenção de Maya era causar-lhe uma dor desumana e mortos não podem sentir dor.

Ela conseguia se lembrar com clareza do horror que sentiu e do arrependimento que tomava o lugar até mesmo do ar em seus pulmões.

Ela desejou que ele fosse tirado de lá, e assim aconteceu. A imagem do garoto deitado, sufocando em agonia com seu corpo em ângulos anormais nunca mais saiu de sua mente. Mesmo que graças, a vontade dela, ele tenha "milagrosamente" se curado naquele mesmo dia e que ele, e todos na escola tivessem apagado completamente da memória o desastre que ocorrera ali. Mas Maya nunca poderia se esquecer. Nos dias que se seguiram, se tornou insuportável olhar para o garoto, mesmo que são e salvo e sem lembranças do que ocorrera.

Pedro Bianchi saiu da cidade poucos dias depois.

Maya arrastou os pés até o banheiro e tomou seu banho para terminar de espantar a preguiça do corpo. Prendeu seus cabelos castanhos em um rabo de cavalo e se vestiu com seu casaco de moletom cinza que a essa altura a escola inteira já deveria saber que era o seu favorito. Desceu as escadas fitando seus pés rumo ao café da manhã que seu estômago ansiava, e foi violentamente arrancada de seus devaneios por uma voz mais do que conhecida

— Espero que já esteja pronta para a escola. Hoje eu vou te levar.