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Sem reflexo

Escuridão, escuridão eterna.

Eu estava flutuando, pairando em um preto opaco sem reflexo. Não sabia onde estava, se estava apenas flutuando neste mar de escuridão, ou apenas pairando sobre alguma superfície, eu não poderia afirmar nada com convicção.

Tudo o que poderia dizer era que eu era incapaz de sentir alguma coisa, nenhum som, cheiro, gosto, sensação, ou emoções em meio ao vazio.

Era tudo muito calmo. O ambiente vazio, sem imagem e ruído criava dentro de mim conflitos internos que se digladiavam incontrolavelmente, parte de mim sentia que eu era o tudo, a único ser existente neste pequeno mundo preto, mas a outra parte se contrapunha no total oposto, acreditava que eu não era muito mais que um ínfimo e inútil grão de areia.

Esta parte, a que acreditava que eu era algo tão pequeno, se recusava a me ter como sua única companhia -apesar de nem eu mesmo saber se minha pessoa realmente existe-.

Se passando meus primeiros subjetivos segundos, consegui reparar num pequeno problema que começava a se alastrar por mim: eu era incapaz de me recordar de algo, de quem eu era, ou de como eu vim parar neste mundo.

Talvez eu fosse um ser primordial, mas isso estava totalmente fora de questão.

A única coisa que eu poderia afirmar que conseguia saber, era o significado das palavras, de seus lampejos glamurosos, fundamentos e seus findares horríveis. Sabia o que era a solidão, o amor, a vida, a morte, a felicidade e a tristeza.

Enfim, o fato era que estava preso aqui, recluso, reprimido em minha própria mente, sem ânsias, sem desejos, sem futuro.

Deixei que as correntezas do tempo me carregassem, apenas na esperança que, algum dia, as coisas pudessem mudar. Talvez elas nunca mudassem de fato, o mundo não parecia ser simpático o suficiente para acatar tal pedido.

Mas fui surpreendido, não demorou muito para que, finalmente, pudesse sentir algo no vazio, não o do mundo do lado de fora, e sim dentro de mim, reprimido e esmagado como uma carne pulsante, senti que algo estava crescendo, algo havia chegado ao vazio.

Minha mente girou e viajou internamente pelas sensações inéditas e prazerosas -até certo ponto- de toques sutis e delicados em mim, me puxando e empurrando-me como um boneco de pano pelo vazio. Não podia ver o que estava me afetando, muito menos seu cheiro e gosto, mas sabia que não poderia ser compreensível.

A cada empurrão, sentia minha mente, vazia como um copo sem água, se encher de conhecimentos e experiências novas, eram, na verdade, minhas memórias longínquas e distantes, fragmentadas e separadas de forma grosseira por não sei quem.

Minhas memórias estavam borradas, descontínuas e com pouca correlação entre cada uma, mas eu estava satisfeito, não por tê-las sob mim, mas sim pelo prazer de sentir, viver e tocá-las, vivenciado-as como se eu estivesse experimentando o que elas se tratavam.

Todavia, o vazio prevaleceu novamente.

O acesso repentino à sensações diversas não demorou muito para cair em esquecimento, não por eu querer isso, mas era como se, eventualmente, toda a sensação que eu tivesse seria enterrada e deixada da mesma forma.

Esse acesso aos sentimentos de prazer por conta das memórias inaugurou em mim os meus próprios, eu os sentia tentarem me atravessar, borbulhavam sob minha pele e saltavam de mim como água fervendo em fúria, mas eram suprimidos à força.

Essas sensações traziam para mim sentimentos familiares, eu estava, aos poucos, descobrindo que eu era um humano carne e osso, com mãos, pés, braços e torso. Enfim, um corpo de fato.

Mesmo com todos esses burburinhos, eu ainda não podia sentir nada. Com a descoberta dos membros que deveria ter, tentei por tentar redescobri-los. Experimentei tentar curvar meus dedos, alargar minhas narinas, mexer minhas orelhas e brincar com os meus dedos, mas ainda não consegui sentir nada.

Tentei olhar para baixo, mas tudo que vi ainda foi o negro opaco infinito.

O desespero e medo, soterrado de forma artificial, finalmente conseguia atravessar minha subjetiva pele e se expor em minha mente frágil. Esses sentimentos não vieram em nenhum sinal fisiológico, sem o que eu tanto desejava. Não havia o bater mais rápido do coração, o suor, a pressão palpável, as sensações de inquietude, nada.

Inferno.

Queria tanto poder sentir alguma coisa, eu estava viciado, eu queria, não, eu precisava receber mais acesso às sensações tão distantes.

Sentia que estava começando a enlouquecer. Nem ao menos podia confirmar minha existência, pois esses sentimentos inconstantes não eram precisos, querendo ou não, eu era a única coisa existente no momento.

Eu estava sendo corroído pelo tempo e pelo vazio, minha mente, que estava agora com tantas memórias grotescas, agora era o meu pior pesadelos. Minha sanidade ia sendo desfiada, bem devagar, para que eu sofresse o máximo possível.

Tentava berrar, mas não saía som, tentava morder meus lábios, mas não sentia dor, tentei instintivamente me coçar pra gerar alguma coisa, mas eles não existem de fato, apenas em minha mente que não se preocupa em me confortar.

Eu simplesmente existo?

A cada segundo a loucura se mostrava cada vez mais presente.

A insanidade, que deveria ser acompanhada pelos mais diversos estímulos psicológicos como alucinações, sussurros, toques e pesadelos, se mostrava ser algo muito mais profundo e abstrato que isso, apenas me deixando ainda mais frustrado.

As sensações se convergiam para um único sentimento: de que eu não era eu mesmo.

Tudo estava muito confuso, minha mente berrava em agonia enquanto minhas memórias passavam pela minha visão como lampejos forçados de luz, muito rápidos para serem entendidos, mas nada se comparava à uma sensação física.

Claro, o que poderia se materializar no nada?

Com o longo passar do tempo, me cansei dessas sensações de medo, insanidade e desespero que se agarravam fulminantemente em minhas entranhas, bem, se eu ao menos tivesse entranhas.

O espaço vazio e imutável finalmente, depois do que pareceram décadas, foi substituído pela sensação de um leve espinho quente em meu lado direito, um pouco mais abaixo de minha cabeça… era o meu braço. Sim, o meu braço.

Sacudi-o veementemente para ter certeza de que era real e logo veio a confirmação, sim, o meu braço não era uma alucinação.

Ele estava diferente do que me recordava, detinha uma coloração branca translúcida que parecia emitir um leve brilho próprio. O membro ainda estava se formando, constituído por diversos fragmentos deste mesmo material que voavam como borboletas de tão suaves que eram.

A sensação era inédita, pela primeira vez -depois dos acontecimentos de ser empurrado e receber as memórias- eu sentia alguma coisa, a sensação do espinho quente me cobria como um cobertor confortável, eu queria sentir isso há muito tempo.

Senti um outro espinho, desta vez em meu peito, depois outro e outro. A sensação agradável e afável aos poucos se transformou em dores agudas e perfurantes, mas não me importei, era tudo o que conseguia sentir, eu, na verdade, deveria estar implorando por mais acesso à dor.

Não era por sadismo ou masoquismo, mas sim por isso provar que eu realmente existia.

Esperei pela próxima onda de dor. A sensação escaldante destas agulhas deveria levar a qualquer pessoa com normais estados mentais a completa loucura, mas depois do que pareceram eras, a dor era muito mais do que bem-vinda para mim.

E o mais impressionante de tudo, minha visão lentamente começou a clarear, lentamente sendo coberta por uma luz branca que perfurava meus olhos como facas, o negro vazio estava sendo substituído de minha visão até que desaparecesse por completo.

A claridade se espalhava no horizonte e se aproximava rapidamente, como uma nuvem carregada para uma tempestade, semicerrei meus olhos para poder enxergar sem ter a sensação de queimação dilacerante.

Pode ter sido pela dor, mas a luz branca que penetrava meus olhos me trouxe uma sensação estranhamente familiar e não muito desejável por assim dizer.

A sensação me lembrava a vida, sua concessão, será que eu estava… morto?

Eu estava reencarnando?

Eu não acreditava em tais besteiras, em meus fragmentos de memórias passadas talvez eu achasse isso ainda mais absurdo, como poderia ser? Não fazia sentido algum, talvez isso aqui não passe de um sonho.

As sensações eram reais demais para ser um sonho.

As memórias começaram a borbulhar involuntariamente em minha mente, fermentavam ainda mais a ideia de que eu estava morto, mas sempre era uma história diferente, uma morte diferente em períodos diferentes, mas sempre na mesma época.

Se realmente existisse um pós-vida e se eu realmente estivesse morto, o inferno pareceria o mais plausível em minha visão. Mas o branco leve era calmo demais para ser um lugar de tanta dor e sofrimento, sendo assim, somente sobrou a primeira opção, talvez a mais absurda de todas.

Uma onda de pânico se alastrou pelas minhas veias, não por ter medo, ou algo similar, mas sim pelo o que vai me esperar do outro lado. Eu certamente não serei favorecido, talvez eu nasça num inferno na terra, uma opção melhor é tão improvável que considerei como impossível.

Que sejam pelo menos pais presentes, se eu tiver que passar fome e ser fadado ao fracasso e mediocridade, então que, pelo menos, tenha uma vida feliz…

Senti uma sensação leve e acolchoada se intensificar numa sensação dura e firme, finalmente sentia a gravidade me puxando para baixo e me forçando fortemente contra alguma superfície. Eu estava ligeiramente satisfeito com mais acesso a essas sensações novas.

Minhas bochechas estavam sendo pressionadas contra o solo macio, não muito diferente do resto do meu corpo. A visão nivelada ao solo branco me deixou aliviado que eu não era um recém-nascido.

Eu comemorei internamente por isso.