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Grama Branca e Preta

Meus olhos doíam com a forte claridade deste novo ambiente, eles estavam embaçados e desfocados, também estavam acompanhados por um zumbido irritante que me impediria de até mesmo escutar uma granada explodindo ao meu lado.

Pisquei meus olhos copiosamente para pelo menos tentar diminuir a sensibilidade estranhamente alta. Grunhi em dor pelo pequeno protesto de meus músculos para me responderem, me agitei e me ergui apoiando minhas mãos no solo macio.

A paisagem era extremamente diferente do que eu imaginava, ao invés de um hospital com meia dúzia de médicos ao meu redor, eu agora estava sentado, voltado para o mundo não tão vazio quanto o anterior.

Me sentia pesado e lerdo, precisando urgentemente de algum alongamento. Meus músculos e ossos ainda pareciam estar se acostumando com os diversos estímulos como tato, cheiro, o gosto do vento, e de como as tão sonhadas sensações me acertavam e se espalhavam.

Eu estava inerte, inserido num ambiente totalmente novo e desconhecido, um ar mítico se espalhava pela grama branca que se alastrava como um tapete que, diferente de mim, parecia cheio de vida, se movimentava fluentemente com leve brisa úmida e gelada.

Suguei o ar pelas minhas narinas e o inseri cuidadosamente em meus pulmões carentes, olhando para o céu azul límpido e profundo que me agraciava, enchendo meus olhos com estímulos novos, sensações que nunca conseguiria sentir no vazio.

Não havia uma única nuvem ou pássaros no céu, lamentei com um pequeno expiro, mas logo senti algo no caminho de minha traqueia, algo mucoso, que rapidamente obstruiu meu suspiro agradável.

Comecei a tossir incontrolavelmente, cada tossida e pigarreio era possível sentir o que quer que fosse vindo a tona, cansado de esperar que aquela coisa me impedisse de sentir o ar prazeroso por mais tempo, eu a tentei buscar com os meus dedos finos, enfiando-os o mais profundo possível em minha garganta mesmo que isso resultasse em ânsia de vômito.

Com a ponta de meu dedo indicador, senti a coisa mucosa que me infortunava e a agarrei com todas as minhas forças, depois de arrastá-la pela minha língua, juntei os outros dedos e a segurei com força. Ela não queria abandonar meu corpo, mas não me importei e terminei de fazer o serviço, a jogando no chão e finalmente podendo vê-la com clareza.

O muco negro se espatifou no chão de forma grotesca, pintou o chão de um material que se assemelhava com tinta, a cor negra era tão forte que o material nem ao menos tinha reflexo, ele absorvia toda a luz que o alcançava, criando um contraste confuso com o resto do ambiente.

A grama branca havia se tornado negra aonde ele tocava.

Suspirei novamente, verificando se havia algum resquício desse muco em meu sistema respiratório, mas a resposta foi negativa. Fiquei aliviado.

Esperei por mais um tempo, apenas observando a paisagem digna de algum tipo de paraíso, o mundo aqui era a definição de perfeição, um mundo vazio, sem problemas e imutável, com apenas a grama branca e um céu profundo como companhia em qualquer ação.

Movi meus olhos acolchoados pela visão para outra direção, não era para frente, e nem para trás, e sim para baixo.

Embaixo de mim havia, além de mais grama branca, um pequeno círculo queimado que me circundava por completo, eu estava em seu centro. Este círculo era acompanhado por diversas gravuras e símbolos indecifráveis, de peixes, águias, lobos, leões, e muitas outras criaturas e animais.

Dei de ombros, não sabia o que isso significava e muito menos como essa coisa apareceu, talvez estivesse junto comigo desde o começo, mas queria saber sobre ele, eu queria sentir mais coisas, mais sensações à serem exploradas, eu necessito de mais.

Tentei suportar por mais tempo ficar parado e esperar por mais sensações, mas as sensações repetidas e inconstantes do vento frio e leve, e da grama só me fizeram ficar ainda mais inquieto.

Não conseguia nem mesmo trazer a dor para meus prazeres momentâneos, o Sol não existia para eu queimar meus olhos e meus beliscos -junto com o morder de meus lábios- não resultavam em nada muito significativo, então, eu tinha que me mover, tinha que achar mais lugares.

Apoiei minhas mãos no chão e me levantei com elegância, desprovido de qualquer impureza, comecei a me mover em círculos pela pequena depressão em que estava, sempre tentando encontrar algo novo, mas com total insucesso e um gosto amargo na boca, me voltei para fora.

Subi a encosta da depressão e vi com os meus próprios olhos o céu se tornar absoluto. Após finalmente por o meu primeiro pé na superfície externa, meus olhos se encheram em desespero, o mundo, puro e imutável era infinito. Uma repetição copiosa de infindáveis paisagens brancas, a mesma grama se alastrava por todos os cantos, totalmente uniforme, com todas tendo o mesmo tamanho e grossura.

Isso era um pesadelo.

Nenhuma poça d'água, nenhuma pedra, nenhum buraco, nenhuma nuvem, nenhum pássaro, nenhuma pessoa, nenhum Sol, nenhuma pegada, nada. Nenhuma sensação nova para ser explorada, sentida, cheirada e palpada.

Pequenos tremeliques subiram desde os meus pés à minha cabeça, cerrei minha mão na forma de um punho muito apertado, pude sentir minhas unhas atravessarem minha carne numa dor ínfima, eu não queria isso.

E então, um pensamento surgiu em minha mente, cortando meu cérebro como um raio, e se eu me forçar a ficar exausto vagando por todo esse lugar? Eu poderia experimentar mais sensações e ainda por cima ter respostas, matar dois coelhos numa cajadada só.

Percebi o meu leve sorriso quando os meus músculos faciais começaram a doer. Vibrei em êxtase e me preparei para a minha viagem masoquista.

[...]

Há quanto tempo eu estou caminhando mesmo? Parei de contar no segundo oitocentos e sessenta e quatro mil, quinhentos e trinta e sete.

Eu estava ficando louco, não conseguia me cansar, eu corria por horas consecutivas, rolava, girava, pulava e fazia mais não sei o que para tentar me fazer ficar exausto, mas nem um único pingo de suor surgiu.

Também não poderia me deleitar com as minha mudanças no ambiente, eu não conseguia cavar, cravar minhas unhas no solo, muito menos criar pegadas profundas o suficiente para serem prazerosas. Eu olhava para trás, para frente e para os lados com uma sensação de perdição, não conseguia saber para onde eu estava indo.

A noite nunca chegou, a luz que não sei de onde vinha nunca se apagou, sempre se manteve a mesma, junto com a temperatura do lugar, a umidade seguiu o mesmo princípio.

Era como se o tempo estivesse congelado.

Eu já havia tentado me dilacerar para tentar sentir alguma coisa, mas meus ferimentos eram tão superficiais que apenas uma pequena fita de pele morta escapava de meus antebraços. Inferno.

Talvez esse lugar não fosse tão diferente do vazio negro.

Comecei a me esgueirar por uma sequência de morros e depressões, procurando passar sempre pelo caminho mais curto e plano possível, já não conseguia me nutrir de sentimentos prazeres, eu estava em completa abstinência.

Senti meu pé tropeçar em algum desnível, mas como? O mundo aqui era completamente perfeito, não havia imperfeições, ou buracos grandes o suficiente para me fazer tropeçar, algo estava errado.

Me curvei para trás, girando meu torso e movendo meus olhos estreitos para o lugar onde eu havia tropeçado, meus olhos se arregalaram e franzi minhas sobrancelhas. Minha mente foi esmurrada por uma quantidade de informações grotesca, era uma pegada, uma pegada cascuda que se movia em uma linha reta e contínua até o horizonte.

Então existiam animais e outros seres neste mundo?

As memórias do círculo que era acompanhado com a figura de diversos animais e criaturas surgiu em minha mente, dentre os animais que estavam lá, o único com casco era um alce.

Quando percebi eu já estava babando, apenas imaginava poder sentir a dor, o gosto e som dos seus cascos abafados, seu corpo maciço e macio esmagando meus ossos, desfiando minha carne e tendões, sim, era isso o que queria.

Como um animal faminto, comecei a seguir as pegadas por muito tempo, talvez dias se o meu relógio biológico estivesse funcionando.

Quando estava pensando em desistir e seguir pelo meu caminho orginalmente "previsto" eu me deparei em frente a uma elevação muito maior do que o padrão, era a primeira falha que eu havia visto em dias aqui neste mundo, uma falha gigantesca.

A elevação se estendia por muitas centenas de metros, poderia até mesmo ser comparado à quilômetros, era a entrada de uma enorme depressão, uma cratera gigantesca que eu mal conseguia enxergar seu outro lado.

Subi na encosta com fervor, escorregando e perdendo o equilíbrio no caminho, mas me agarrei veementemente nas partes mais firmes e me elevei em relação a borda, podendo ter o vislumbre completo de toda a cratera.

Me forcei para frente, ultrapassando os limites da borda e adentrando a gigantesca cratera, sempre focando meus olhos exclusivamente para as pegadas que desciam a encosta de forma regular e sem falhas, sendo como esse lugar, perfeito.

Não estava prestando tenção em meu caminho.

Rolei por toda a extensa descida, estava com preguiça de simplesmente ir descendo calmamente, eu sabia que mal sentiria dores e nem seria infligido por danos significativos, sendo assim, era mais fácil rolar e bater nas pontas afiadas de rochas e de desníveis invisíveis da grama.

Enquanto o mundo girava e eu ficava cada vez mais tonto, percebi tardiamente que estava indo em direção à um precipício, tentei desesperadamente fincar minhas unhas no solo para me prender e não cair, mas foi em vão, minhas unhas se desprenderam de meus dedos e me infligiu uma dor latejante e penetrante que me fez largar o solo no mesmo instante por puro instinto.

Eu pude ver a borda do precipício, tive a certeza de que estava caindo, o mundo parecia em câmera lenta enquanto eu me sentia sem peso, o solo por volta de 20 metros de mim estava se aproximando lentamente de forma assustadora.

Fechei os meus olhos fortemente, esperando que o impacto viesse. Eu não estava feliz com isso, a dor poderia ser uma sensação procurada por tanto tempo, mas essa dor era maligna, uma dor que não deveria ser buscada.

O vento sibilava cada vez mais enquanto eu me aproximava do chão, deixando minha audição abafada e meu corpo à mercê dos ventos cortantes, até que finalmente pude sentir o duro solo me atingindo.

Pude sentir algo dentro de mim rachar e se esfarelar em mil pedaços, soltei um grito gutural de dor quando tive a certeza que atingi o solo, o impacto me abalou como um caminhão atropelando um pedestre desavisado, pude sentir cada órgão meu se retorcer numa cacofonia de sons inseguros e quebradiços, o chacoalhar molenga e molhado do sangue e costelas quebradas.

E então, a escuridão de meus olhos se tornou ainda mais negra, se espalhando pela minha carne como gavinhas elétricas e as desligando sem meu comando, a sensação do gosto ferroso em minha boca se tornou ácido pouco tempo depois do impacto. Não conseguia mais me mexer, muito menos entender o meu redor, não conseguia mais sentir o calor, a dor e a minha carne pulsante, meus olhos pareciam desconexos entre si, eu podia ver dois cenários diferentes ao mesmo tempo, uma verdadeira bagunça carmesim, mas não conseguia girá-los.

O desespero cresceu em mim até que minha consciência foi se esvaindo, parecia ser drenada enquanto tudo o que sabia estava sendo esquecido aos poucos.

Meus gostos doentios também.

[…]

Senti minha fria saliva sob minha bochecha pressionado contra o solo, sabia que havia apagado por um tempo considerável.

A dor estava impregnadas em meus músculos, tendões e ossos, mas foram se arrefecendo com o tempo até atingirem níveis aceitáveis de dor.

Assim que consegui abrir meus olhos lacrimejados e doloridos, me levantei lentamente e comecei a checar meu corpo, o torci para todas as direções e me curvei para diversos ângulos distintos, tentando entender o que havia acontecido de fato. Minha cabeça ainda girava sonolenta pela minha mente, deixando as coisas ainda mais confusas.

Fato era que eu havia desmaiado e que o impacto foi forte o suficiente para eu fraquejar, fraquejar em ter experiências diferentes, em sentir o mundo com prazer e força de vontade.

Me levantei apoiado em meus braços machucados, eles estavam repletos de hematomas e de cortes, mas não parecia com o impacto de uma queda, e sim criados posteriormente, eles eram muito separados entre si, dando ainda mais força para essa ideia.

Engoli seco quando percebi que eu não estava mais próximo às bordas da cratera, não, eu estava muito longe delas.

Por onde eu olhava, todo o alcance de minha visão era barrado por uma gigantesca extensão de encostas íngremes. O vento me batia com intensidade, batendo e rebatendo nas bordas da cratera.

Eu estava no centro da cratera, por algum motivo, que eu não sei, consegui parar aqui.

Grunhi mais uma vez.

Senti meus ossos rangerem e minha carne balbuciar, meus olhos doíam e os sentiam arranhar em minhas pálpebras. Movi-os devagar para observar o meu entorno, já era conhecido que eu estava no meio da cratera, mas a grama parecia se comportar de forma diferente, balançava sem o golpear do vento.

As pegadas cascudas também estavam aqui, circundavam a área sem hesitação, mas não havia um único ale ao alcance de minha visão, me fazendo bufar em frustração, eu não teria o que tato queria por muito tempo, se é que esse tempo poderia ser contado.

Meus pensamentos foram cortados por uma sensação gutural que me impedia de respirar novamente. A sensação quente e volumosa tentou vir a tona, como se quisesse abrir o meu peito.

Me joguei ao chão e forcei o muco a sair dentro de mim, bati em meu peito com os meus punhos cerrados forçadamente, não demorou para que já pudesse sentir aquilo chegando a minha garganta.

O mesmo muco e gosma negra saiu de minha garganta como uma flecha sem pena, se espalhou pelo chão e se dividiu em diversos pedaços individuais e sem forma. Minha pressão caiu e minha visão turvou, focada nos pedaços negros que pareciam se mover.

Pensei que seria apenas fruto de minha visão debilitada, mas se tornou evidente quando seus movimentos e pulsos se tornaram extremos e constantes.

Os pedaços de muco e gosma se convergiram num único ponto e foram absorvidos pela grama, de forma semelhante ao evento anterior, mas depois de um tempo considerável de puro silêncio e o sibilar agonizante dos ventos, a sombra das bordas da cratera me encontraram.

Espere... sombra?

Esse mundo não tem Sol, não há uma única fonte de luz natural que crie alguma espécie de sombra neste mundo, sendo assim, de onde veio essas sombras?

Não eram simples sombras, elas começaram a ganhar forma, as silhuetas escuras e esguias cresciam e se curvavam aleatoriamente por toda a extensão da cratera, ignorando totalmente as distâncias percorridas em segundos, sempre acompanhando os traços e rastros deixados pelas pegadas de alce.

Senti algo tocando meus pés.

Girei meu pescoço e vi que havia a silhueta de uma pessoa, seu toque suave afagou minha pele de forma tão confortável que eu comecei a querer mais, igual a um cachorro sedento por mais.

A silhueta veio ganhando ainda mais detalhes, seu corpo se tornava mais nítido, se tornando uma garotinha inocente e dócil erguendo um brinquedo que parecia ser de pelúcia para mim, aparentava querer brincar comigo.

Enquanto tudo isso acontecia, minha visão começou a se focar totalmente nas outras regiões da cratera. Haviam muitas pessoas, dezenas, até mesmo centenas de outras sombras dos mais diversos tamanhos, formas, cada uma exaurindo uma sensação diferente, um gosto diferente, um cheiro diferente, um toque distinto, ânsias próprias e suas identidades...

Cada sensação entorpecia meu corpo num prazer incontrolável, ali era meu lugar, minha vida, tudo o que eu mais queria estava aqui.

Mas havia um único problema.

As sombras não me queriam por perto, não se importavam com minha presença, apenas passavam por sem nem ao menos me olhar, eu estava num vão de muitas sombras que apenas seguiam seus caminhos e se desviavam de mim, apenas a garotinha mostrava algum tipo de empatia por mim. As sombras seguiam suas vidas normalmente, não me dando a atenção devida.

Não, isso não era bom.

A garota continuava a me cutucar veementemente, deixando meu aborrecimento crescer e desconforto se exacerbar, minha mente batia sem parar, ela queria atenção, queria seu devido lugar apenas para si. O mundo parecia rachar, cair na real, mas não queria aceitar, as pessoas tinham suas vidas, ou melhor, suas sombras.

Meu corpo tremeu, começou a tremer incansavelmente, cerrei minhas mãos em punhos e mordi meus lábios com força o suficiente para rasga-lo, a criança estava me irritando, esta maldita garota, ao invés de encher as demandas de meu subconsciente, só me deixava mais frustrado, até que não aguentei.

Com os meus dois punhos, golpeei o local onde estava a garotinha, sua cabeça se abriu e a sombra se espalhou pelo chão sem qualquer reação, a grama onde o subjetivo líquido cerebral escapava de seu crânio aberto se tornava úmido, com pequenas gotas d'água surgindo onde seria os seus olhos.

Eu lambi a água quente e viscosa, seu gosto era amargo e não era bom.

Minha raiva irracional e sensações conflitantes não estavam satisfeitas, elas queriam mais, queriam ver mais, queriam sentir mais, eu podia sentir seu corpo frio, seu toque em minha pele e carne, sim, eu queria isso.

Continuei a golpeá-la, rindo enquanto todas as outras sombras pararam de fazer seus afazeres, todas se voltaram para mim e se formou um círculo de multidão à minha volta. Dei de ombros, minhas narinas se entorpeciam com a situação doentia, meus ouvidos se deleitavam com o som molhado da grama sendo golpeada incansavelmente, até que senti um calafrio correr pela minha espinha.

O braço de todas as sobras estavam erguidas, apontando diretamente para mim como um monstro. Algumas estavam com medo, outras com raiva, e alguns com uma mistura dos dois, mas o cheiro de todos eram o mesmo, um cheiro úmido e azedo que queimava meus pulmões.

Um círculo bem familiar começou a ser escrito lentamente, o círculo de diversos padrões, escritas e figuras de diversos seres vivos surgiu na grama exponencialmente, circundando meu corpo por completo.

Não sentia nada de diferente, até que a sensação de calafrios se multiplicou de forma assustadora, meus ombros perderam a força e meus dedos se torceram em formas não naturais, mas sem dor. Minha pressão caiu, meus vasos sanguíneos pareciam se contrair e congelar meu sangue, um bolo se formou em minha garganta, impedindo que eu pudesse engolir minha saliva ferrosa.

A pressão quase palpável me prendeu no lugar, estava sendo forçado contra o solo com força o suficiente para poder sentir meus ossos rangerem. Gemi de dor com os dentes cerrados e tentava me contorcer descontroladamente para me libertar da dor maligna e infernal, mas nada surtiu muito efeito.

O cheiro se tornava ainda mais ferroso e molhado, quando percebi que estava sangrando pela boca, olhos e narinas, eu estava sendo esmagado pelos efeitos do círculo maldito.

As pontas afiadas dos dedos das sombras se mostravam mais cortantes, mais intensos do que um simples apontar, não, era muito pior. Minha pele estava ficando quente, ressecando e vibrando de forma tênue, meus pelos se eriçaram acompanhados pelo crepitar de minha pele.

O círculo brilhou, exibindo uma exuberante luz roxa profunda que se deu forma a partir de pequenas faíscas, esses lampejos de luz aumentaram consideravelmente, abrangendo quase toda a minha visão turva e oblíqua.

A luz roxa era quente e forte, seu calor se impregnava e não largava meus pelos e poros desavisados, enviando ondas lancinantes de dor que arrebatavam qualquer chance de meu cérebro aguentar as informações exacerbadamente imprecisas e agonizantes.

Era fogo, um fogo imbuído com todas as sensações falsas e negativas das sombras.

Me joguei no chão e comecei a berrar, rolando de um lado para o outro como um animal ferido e faminto, na esperanças que o fogo infernal fosse apagado ou arrefecido de minha pele que estava se derretendo, mas pareceu que todo o meu esforço resultou numa potencialização ainda maior.

Com a minha única mão que ainda detinha a posse de minhas unhas quebradas, comecei a me automutilar, tentando me rasgar e arrancar a minha pele afogueada, mas era impossível, minha mão tremia e agonizava-se em ardência pura.

Meus olhos ardentes se voltaram para o corpo da garotinha, ela também queimava, mas era num tom mais brando e leve comparado ao meu que fazia fazia questão de me dilacerar a cada segundo.

Minha pele já havia criado uma crosta negra ardente que era acompanhada com os meus fluidos corporais e pele derretida, o fogo continuava a me consumir incansavelmente, rugindo com temor e fervência tão forte que meus berros de dor e agonia eram cessados e abafados.

Cada centímetro de meu corpo gritava em agonia, meus ossos se contorciam e meus músculos se desfiavam uns dos outros lentamente, cada desfio era como se uma parte de mim fosse arrancada brutalmente, meus órgãos estavam literalmente sendo cozinhados enquanto tudo o que podia fazer era me debater pra tentar sair do círculo.

Tentei berrar de dor novamente, mas minha garganta já havia sido consumida e rasgada pelo fogo, as chamas me perfuravam como milhares de ferros incandescentes sendo enfiados dentro de mim, fritando minha carne e a torrando em um preto carvão duro que me prendia ainda mais na mesma posição, meus tendões que já haviam sido destruídos não passavam mais do que serem completamente inúteis. A escuridão vinha lentamente e gradualmente consumindo minha visão.

Meus órgãos internos estavam cozinhando, senti isso pela minha própria incapacidade de ao menos puxar a fumaça para dentro dos meus pulmões, sentia eles arderem e sangrarem, protestando contra a agonizante dor ardida.

Como num piscar de olhos, a dor desapareceu.

Pensei por poucos instantes que eu já tivesse morrido, não conseguia mais sentir meu corpo dopado e entorpecido de sensações malignas, talvez meu cérebro tivesse sido cozinhado, mas isso era impossível, eu estava pensando naquilo.

A sensação estranha da parada abrupta de dor se espalhou pelo meu corpo como um frio congelante num lago coberto de gelo, ou então um pingo d'água no oceano.

Abrindo meus olhos, pude me ver rente à um chão suave coberto por um pó cinza bem escuro, com minha visão nivelada a ele, não esperando muito, eu desesperadamente comecei a checar meu corpo, braços, pernas, peito e pescoço, procurando por ferimentos ou pedaços deles faltando.

Mas no final, eu estava totalmente sem ferimentos, intocado.