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Contos estranhos

Revelando o mundo da própria perspectiva, Dinis Garcia se vê rodeado por vários acontecimentos únicos que fogem do normal em sua vida. Ainda estando no ensino médio, tem que lidar com o sobrenatural e as pessoas que se envolvem com ele.

Tiutulh0 · Fantasi
Peringkat tidak cukup
1 Chs

Enlace de insultos

Inicialmente, do escuro do mundo, luz fez-se presente. Por consequência, tal mundo ganhou cores ao dilatar de minhas pupilas.

— Dormindo indefeso na frente de uma colegial. É mesmo patético.

Svetlana é o nome da garota de língua afiada à minha frente. Um nome que além de muito raro aqui no Brasil, é de difícil pronúncia. Do pouco que sei, essa garota se naturalizou brasileira quando bem pequenina.

Eu, Dinis Garcia, que divido da mesma sala de aula que ela, posso dizer: Svetlana é uma garota bem estranha e não é só por sempre se manter isolada. Me intriga, a princípio, a mesma sempre ter falado pouco e geralmente quando fala, é algo acompanhado de insultos. Mas talvez ninguém simplesmente tenha ouvido-a completar mais de duas frases sem sair com o ego ferido, abandonando-a.

Em questão de aparência, vendo-a com atenção agora, seu aspecto é naturalmente gótico. Isso devido à pele branca, de alvura incomum, que contrasta com os olhos e cabelos pretos. As roupas, escolhidas em harmonia com a tonalidade do cabelo, realçam todo esse aspecto que carrega.

Svetlana estava me esperando acordar do outro lado da mesa. Se eu tivesse dormido sobre essa mesa a qual ela apoiou o ombro em espera, seria um alívio.

O meu cochilo repentino ocorreu sobre o chão e o rosto amassado é suspeito demais para apenas ter caído durante o sono. Talvez a dor fervente em meu queixo seja prova de alguma atitude agressiva e inesperada, resultado de uma personalidade excêntrica.

—…

— O que você tem a dizer sobre essa inversão de papéis, Dinis?

— Eu não sei como acabei dormindo, o que poderia então dizer sobre isso?

Ela, atenta aos detalhes, levantou as sobrancelhas com o meu leve bocejo.

— Ora, vejo que gostou de dormir no chão.

— Foi uma experiência horrível.

Mesmo que inconsciente, foi de fato.

Mas em relação a experiências ruins e dormir no chão…

Em relação as minhas suspeitas:

— Por que meu rosto está doendo?

— É covarde a ponto de esquecer-se? Te direi! Foram uma ordem imprescindível de fatores. Uma da qual apenas um pervertido se aproveitaria…

Em vista do olhar singelo e da voz fria, que não carrega sentimento sequer, é inevitável engolir seco. Eu? Um pervertido? O que aconteceu no período que antecedeu o meu despertar?

—…?!

Não é possível, será que fiz algo? Estávamos nós dois fazendo um trabalho escolar de biologia – precisamente de anatomia – no meu quarto, isso eu lembro e é evidente, pelos livros e cadernos espalhados.

Sendo os dois fatores importantes: estarmos sozinhos e ela ser especialmente charmosa, como nem eu, nem qualquer outro colega de classe tenha percebido antes… Não, ela está me coagindo a pensar assim. Só faria algo com um consentimento claro.

— hm? Parece que a sua mente pouco desenvolvida está trabalhando. Será que percebeu em que situação está? Ou se lembrou de algo e está planejando uma desculpa tão inferior quanto a si mesmo?

— Eu não sou pervertido! Se aconteceu algo, foi por você ter dado bola.

Estou convicto disso!

— Mas o que realmente aconteceu?

— Ora, se não é de praxe culpar o sexo feminino por desavenças sexuais. Vou te elucidar. A ordem dos fatores, que me enoja, se deu quando ainda estávamos fazendo o trabalho. Você, todo púbere, se excitou com os desenhos anatômicos...

— Impossível, eu não me atraio por desenhos. Sou bem mais que isso!

— Por isso, após despertar um animal perverso dentro de si, você jogou propositalmente a sua borracha no chão. E digo mais. Com o seu olhar, não pensou duas vezes ao procurar, por baixo da saia bagunçada, a minha calcinha de bolinhas.

— D-de bolinhas?

São detalhes de mais!!!

— Eis a prova. Corou-se, pois se lembra do crime perverso!

Uma caneta foi apontada próxima aos meus olhos, dando a sua portadora um tom acusador significante, somado a inerente frieza de suas palavras que vieram crescendo.

— Eu, Svetlana Makarov, por meio deste julgamento, o declaro culpado pelo crime de manchar a minha dignidade, ao observar a minha calcinha de bolinhas, Dinis!

— Eu não faria isso! Além do mais, eu me constrangi porque você não tem vergonha!

Q-que tipo de garota fala da própria calcinha para um garoto que só conhece por nome?

Isso não existe!

E não há como eu ser culpado, não agiria assim, propositalmente procurando a roupa íntima de uma garota. Ademais, mesmo que perdesse toda a memória, lembraria do momento em que vi algo tão especial para a mente de um adolescente.

Sem dúvidas, sendo um jovem em seu próprio monólogo, descreveria a peça de roupa preciosa em não menos que sete parágrafos, assim que a visse. Seria um dever descrever tal monumento em palavras.

— Então vamos para as provas que suplementam a minha acusação.

E tem mais?

— Dinis. Eu vi.

— …

Qualquer um que possui algum segredo, e ouve essas malditas palavras, pode acabar congelando. E não é por menos.

Ela direcionou a caneta, que uma vez apontara à minha face, para o computador, logo atrás dela.

— Eu vi o seu histórico.

Grunhi com essas palavras. O que está lá não tem a ver com o "crime", mas ainda é o histórico, o meu histórico.

— Eu aceito a derrota. Por favor, me perdoe.

Prostrei-me desesperadamente, ajoelhando e tocando a testa no chão.

— Não estamos no japão para fazer um dogeza. Mas estou satisfeita!

Essa garota...

— Não se vê o histórico de um adolescente! Agora o caso é outro.

— Como?

— Eu, por meio deste tribunal, lhe acuso de matar a minha moralidade e outras virtudes, como ficará a minha reputação agora?

— Ok. Você possui um bom argumento. Irá debater como o advogado de si mesmo, Dinis Wright?

— Não tem Wright no meu nome, deixe as referências de lado do debate!

— Quer perder de forma tão miserável, apostando na seriedade? Eu ainda tenho minha última cartada.

Não existe mais nada que ela possa descobrir, é um blefe.

— Eu matei a sua moral, podendo destruir sua imagem a qualquer momento. Sim, eu matei. Considere isso uma misericórdia minha. Você está nas minhas mãos agora.

— Então admite a culpa e quer apelar para a chantagem?

— Nada disso. Eu invoco aqui a legítima defesa da Honra. Fora tudo causado por você, e exclusivamente um pervertido que só poderia ser você, ter visto a minha calcinha de bolinhas.

— Essa lei não funciona mais assim. Não estamos no Brasil colonial para sair impune por um assassinato dessa forma!

— Porém ainda estamos no Brasil.

Ela tem um ponto! Mas assim como foi teimosa com o primeiro julgamento, serei com esse.

— Já está na minha hora de ir. Já são cinco.

— Hein?

Por que assim do nada? No entanto, é verdade, já está tarde. Devo ter apagado por um bom tempo e a discussão passou voando.

— Mas. E o trabalho?

— Eu terminei sozinha enquanto um desprezível dormia.

Do momento em que se levantou, eu apenas a acompanhei até a porta. Toda essa tarde que perdi na memória e a discussão fervorosa que ficará marcada em mim – por diversos motivos – acabaram com poucas palavras. Chegou a despedida de uma tarde com a garota estranha que compartilhava da mesma sala de aula, uma colega. E, embora tenha acontecido acusações por ambos os lados – dela em maioria – , notei que os lábios de Svetlana se curvaram, mesmo que minimamente, em diversão. Foi o suficiente para me agradar.

Agora, pensando em todas essas acusações.

— Me diga. Por que xinga os outros tanto assim?

— Ah,isso… Até onde se sabe, é um distúrbio.

"Até onde se sabe" o quão vago é isso?

— E não tem cura?

— Idiota.

Opa.

— Foi mal.

Falei o que não devia. De fato não prestei atenção, afinal, desconheço o quão doloroso o distúrbio é para ela e passei por cima disso.

Svetlana assumiu a liderança no caminho e abriu a porta.

— Aliás. Nunca vi ninguém cair daquela forma e desmaiar.

— Então o que aconteceu…

— Não, você ainda é culpado. Até mais.

— Até…

Então nos separamos aqui.

Escorado na porta, não pude deixar de refletir. Svetlana é, de fato, uma garota estranha, bem mais do que pensei ao vê-la em sala de aula.

Mas o que foi aquilo?

Além da língua afiada, que não era odiosa e tão pouco debochada, mantendo a simples frieza como sempre a vi e descrevi. O seu tom não indicou, em sequer momento, o desprezo que suas palavras deveriam carregar – como já fizera com muitos garotos e garotas que a abordaram, e foram espantados pelas mesmas. Pareceu-me que toda essa discussão em torno na calcinha foi uma grande diversão para ela, não se limitando àquela breve menção a sorrir.

— Um distúrbio bem único, então.

—…

Talvez, numa ínfima possibilidade, além da curiosidade genuína por essa garota, eu esteja apaixonado por tsunderes.

2

"O destino está no toque. A princesa, na solidão. E o fim…"

— Hã?!

O que foi isso? Acordei num pulo com o coração acelerado e melancólico.

Certamente foi um sonho, um daqueles mais distantes e ocultos, que se tornam abstratos em vez de conclusivos e consequentemente evaporam para fora das memórias e da mente.

Acordei poucos minutos antes do meu horário de costume na desgostosa segunda-feira. Pelo menos, forças externas – uma garota – me deram vontade de enfrentar a nova semana recém-chegada.

Assim, pulando todas as fases de arrumação e café da manhã pouco interessantes, me vi presente diretamente na escola, durante a aula.

A professora, consultando o andamento dos trabalhos, finalmente chegou à nossa dupla, montada por ela forçosamente, em vista de sermos exatamente os dois únicos que ficaram sozinhos. Eu e Svetlana.

— Então Svetlana, Dinis. Como está o trabalho?

— Já terminamos prof!

— Sim, o Dinis virou um mestre em anatomia humana.

Fica quieta!

— É mesmo?

— O desprezível até tirou a minha virgindade!

A.

Agora fudeu.

— O-o quê? Pera aí!

Levantei-me da carteira num pulo, me engasgando todo para falar às pressas. A merda – uma mentira bem pior que a verdade acidentada – foi jogada no ventilador.

E como me foi dito posteriormente, empalideci como se perdesse todo o sangue num instante ao levantar e desmaiei. Desmaio que por ventura me privou de interceptar todas as reações de colegas, me privando também, da vergonha infindável.

3

Me recuperei do ocorrido em pouco tempo ao ser deixado em recinto hospitalar, desmaiado sobre uma cama.

Svetlana estava lá quando acordei. Acredito que ressentida pela mentira… Eu espero.

— A professora pediu para ficar de olho num imprestável.

— Impossível. Só estamos nós dois aqui.

— A conclusão é óbvia então.

É possível que eu tenha me confundido quanto a breve felicidade dela há três dias em minha casa. Garota desalmada!

Acho que está na hora de revidar um pouco.

Começando com uma provocação, me virei com uma entonação séria na voz, criando uma leve tensão. A intimidei com as breves palavras:

— Svetlana. Eu lembrei!

Ficou receosa por um momento.

— Não me diga que…

— Sim!

Sim, eu verdadeiramente lembrei. Lembrei de tudo.

O sol alto estava jogando seus raios pela janela, diretamente para baixo da mesa. A borracha, pequenina, foi derrubada por um leve espasmo de meu braço e caiu por entre as sapatilhas escuras.

Logo o inconveniente aconteceu: as pernas finas, estando abertas com um ângulo revelador, chamaram minha ingênua atenção – livre de segundas intenções.

E claro, obviamente aquela peça de roupa estava lá. Destoando com preto, da pele pálida. Notei que fui caçoado. À minha expectativa – que a própria Svetlana deixou – antes de lembrar-me, esperava algo muito mais simples com a tão falada textura de bolinhas.

Mas era algo muito além.

Referente aos raios solares, que me concederam uma visão clara e imaculada, ausente de sombras ou poeiras abaixo da mesa, aquilo que vi quase se tornou a representação de uma insinuante dicotomia ao lado visível e ao lado oculto da lua, em panorama.

O tecido, por partes simples, era exaltado pela pele afora e, por partes mais complexas, exaltado pelo caráter frágil e rendado, deixando desenhos únicos e minuciosos, todos texturizados em pequenos cristais de gelo como tirado diretamente de uma geada a qual seria a sua pele que nunca tomara sol.

Nunca na vida teria imaginado que o simples preto e branco seria tão marcante, que algo assim seria tão sensual sem ser vulgar. Desacredito em como uma garota pode guardar um tesouro assim, desimportando-se com a própria saia.

Mas por que se aprofundar em tantos detalhes?

Pois era preciso aliviar-me da dor nas costelas. Eu levei uma cotovelada da enfurecida – porém inexpressiva – Svetlana e precisei pensar em algo para desviar da dor.

— huuur. Droga.

— Pervertido.

— Mas foi realmente um acidente.

Fora de fato um acidente, bati a cabeça com a breve e deslumbrante visão e ao me levantar, escorreguei; batendo o queixo na mesa. Um objeto inanimado me golpeou duas vezes, restando apenas o golpe do dedo mindinho misericordiosamente não executado.

— Não interessa!

— Não sabia que Calcinha Preta tinha fãs tão jovens. Ai, calma, calma. Foi brincadeira.

Que olhar afiado!

— Deixando as brincadeiras de lado, será que foi sério a ponto de eu parar no hospital?

— Estamos na enfermaria da escola. Asno.

Da escola?

Ah sim, que droga! O velho e insensível mau pressentimento.

Acredito que essa será a primeira vez que ela engolirá as próprias palavras.

— Svetlana… A escola não tem enfermaria.

— P-por acaso bateu a cabeça? Olha só!

Agindo inconsciente da própria incredulidade, ela abriu a porta para mostrar-me o pátio escolar.

— !? C-como?

Piso, paredes e teto: apenas o branco de um corredor desconhecido. Não havendo janelas também.

Engoli seco com a simples ideia. Pensando eufórico sobre o que nos aguarda no ambiente que seria facilmente descrito como um inferno branco e silencioso, o qual adentramos.

— Eu tenho certeza que a idiota da professora o carregou até aqui e me pediu para esperar. Não faz sentido.

— Me diga. Você não se lembra em que período das aulas eu desmaiei, né?

— Não…

— Foi o que pensei. Bom, já que você está aqui comigo não há porque esconder sobre magia e essas paradas ocultistas.

Pois justamente o próprio oculto se revelou para ela.

— Ocultismo? Você é um xamã desprezível ou um mago perverso, por acaso?

— Só muito sortudo mesmo. Parece que estou fadado a me encontrar com esses problemas. E talvez isso inclua você.

— Só mesmo um insensível para me chamar de problema.

— Não estou dizendo que você é um problema. Sabe, não te contei antes porque se agarrar a explicação de que tem um transtorno é bem melhor que a realidade oculta.

— Pare com isso. Onde quer chegar? Que alguém fez isso a mim? Que tem cura ou é bem pior do que parece e deixou de dizer sobre, assim que percebeu?

Incrédula com as minhas palavras, Svetlana se voltou agressiva, jogando-me de volta ao leito que abandonei a pouco. Se forçou contra a minha pessoa sem pensar.

— Seu maldito. Você sabe o que tenho?

— É uma maldição, suspeito.

— Então é pior do sempre pensei que fosse?

A exaltação que me mostrou num instante recaiu com outro sentimento deprimente de cerne duvidoso: desesperança ou certo temor.

— Não. — Solto uma leve risada. — A maldição é o que ela sempre foi. Saber que o seu problema vai além das capacidades de um psicólogo e de meros remédios não muda nada…

Um frenesi engatilhado por um turbilhão de emoções... Fui insensível, novamente.

— Desculpa, não queria te deixar assim. Vamos indo que te explico tudo.

— Certo... Mas ainda tô puta.

— Não que eu não esteja gostando. Mas não dá pra ir andando com você em cima de mim.

— Ah! É verdade…

—…

— Masoquista.

— Eu mereci essa. Mas como alguém experiente, vou dizendo. As vontades inconscientes de nós dois estão meio acordadas aqui. Agir de forma deliberada ou estranha é normal, afinal, estamos vivenciando um sonho.

— Por isso dobrei minha cautela contra pervertidos sem nem perceber… Entendo.

Essa percepção descarada foi mais importante que o próprio fato de estarmos conscientemente sonhando… Então ela realmente me acha pervertido. Não tenho como retrucar alguém assim.

Com a calmaria um pouco revigorada, finalmente saímos para explorar o estreito mundo branco e silencioso que nos ronda.

— Muito bem. Vá me contando tudo.

— Direta você em. Às vezes acontece comigo de entrar consciente nos sonhos, mas nunca arrastei ninguém assim. O que é bem sem sentido.

— E não dá para sair se eu me beliscar ou algo do tipo?

— Se for o objetivo final do sonho e o mesmo te induzir a isso, deve ser possível. Mas dessa vez é diferente, estamos acordados dentro dele agora, qualquer atitude dessas, que não segue o roteiro, levaria a pessoa a se tornar um vegetal na vida real.

Pensando sobre isso. A cena proveitosa, de momentâneo deleite, que mentalizei em meu estado de dor a poucos momentos me salvou. Gostaria de agradecer, mas é melhor esconder o quanto memorizei aquela cena.

— Essa não, então eu estou sujeita a ser uma vítima da sua perversão até em um sonho e não há como fugir?

— Sério isso? E se existe um culpado nisso certamente é um velhote que conheço.

— É pior então, está conspirando com um velho ainda mais pervertido.

— Ele deve estar ouvindo. Mas deixando de lado, existem mais pessoas com problemas como o seu, uns se perdem de uma forma impossível, outros cruzam com demônios, tem até aqueles que entram numa fúria e saem destruindo tudo. Eu, por exemplo, acabo cuidando do ferimento de um homem toda semana.

— Alguém tem que cuidar do pai alcoólatra depois da briga de bar, totalmente normal.

— Não tem nada a ver. Minha família não sabe de nada.

— Imagino, não é de se duvidar que esconda os seus segredos perversos da família.

— Pensei que se limitava a adjetivos, o seu problema.

— É isso mesmo.

Ela está caçoando de mim todo esse tempo. Isso deixou de ser uma maldição.

— Quanta implicância. — disse baixinho espontaneamente sem que ela percebesse.

A atenção de ambos se direcionou a algo novo em determinado momento.

— Um escritório?

Partiu da minha boca, ao ver uma placa. Já havíamos passado por várias salas vazias e algumas com o chão repleto de folhas secas, o que era bem curioso. Chegamos no local que era particularmente diferente dos outros.

— Sabe, quando esses lugares não são um loop de uma determinada época, somos direcionados para o objetivo e às vezes para o que vai nos matar… Eu chuto que o nosso objetivo está naquele livro grandão ali. Parece ser um registro.

— Para um babaca, até que sabe muito. Isso se o seu conhecimento for realmente algo que deva ser usado como instrumento. Você disse desse objetivo antes. Qual o significado?

— Os sonhos não deixam de ser histórias contadas durante o sono, às vezes eles querem te trazer algum sentimento, outras vezes trazer uma conclusão. Sempre há algo, nem que seja só pra te fazer pular da cama.

— Parece razoável. Olha, as letras no registro são bem corridas, é difícil de ler aqui.

— Hospital colônia, fundado em 1903. Que beleza, só mais de um século.

— É um registro de pacientes, mas está tudo borrado… exceto esse: Maria das dores.

— Jovem sem respeito, não acatava as ordens que lhe eram dadas… — Pulei para o final temeroso do registro — Falecimento por morte cerebral após o tratamento de choque…

— Talvez. Talvez esse seja o campo de concentração nazista brasileiro que já ouvi falar. Levavam todos aqueles que, mesmo que não fossem doentes, eram diferentes do "padrão" da época.

Um grito surgiu de surpresa, em meio a nossa conversa. Totalmente repentino. Ele perdurou por segundos, de uma forma que até a agonia da morte dolorosa de um porco fosse uma melodia.

Svetlana, apressadamente pegou na minha mão com uma tomada de decisão absurda de rápida, em vista de quem – ou o que – estava passando no corredor.

Demorou um pouco, a dona dos gritos – que fez-nos encolhermos bem juntinhos abaixo da escrivaninha do escritório – finalmente chegou na porta. Andando vagarosa, revelou seu corpo azulado de tão pútrido, com os braços que perdera parte da carne, segurando uma caixa, uma maleta aberta frente ao peito desnudo.

A estrutura da escrivaninha nos impediu de ver algo acima do peito, mas a imaginação fez-nos pensar numa figura horrenda para o seu rosto, com as únicas características evidentes de que a pele é clara-azulada e seu cabelo, quanto ao pouco que recaiu ao peito, um castanho que há muito tempo perdeu sua essência para o cinza.

Pensei ter nos notado, que estava a caçar-nos. Entretanto, ao dar mais dois passos, a figura que amenizou os gritos a meros gemidos chorosos, gritou novamente perturbando séria e continuamente os ouvidos e deixou a porta. Ela, essa coisa, estava apenas vagando. Um tempo se passou, a criatura se distanciou ainda deixando seus gritos.

Embora a agilidade de Svetlana tenha sido decisiva no começo, a mesma travou em tensão – sentida pela minha mão agarrada – abaixo da escrivaninha. E eu não hesitei em tocar seu ombro, que se agoniou trazendo-a de volta à realidade.

— Já passou.

— O-o que foi aquilo? Aquela coisa?

— Algo que faz parte desse sonho, ou melhor, desse pesadelo. Acredito que dá pra chamá-la de fantasma se quiser. Ou, como fomos guiados até aqui só pra ela passar agora, justo após ler o registro, podemos chamá-la de maria das dores, eu suponho. Vamos lá, respira fundo, que você pelo menos sabe alguma coisa desse lugar.

Ela, por sua vez, fez o tom da voz soar aliviado.

—… Ora, é verdade, não consegue fazer nada sozinho.

Aliviada ao ponto de ser folgada.

— Só sei um pouco do que acontecia aqui… E que as vítimas chegavam de trem. O Trem de doido, acho que assim era chamado, parava dentro da instituição.

— Então só tem um lugar para onde precisamos ir.

4

A tão odiosa estação ferroviária, símbolo das tormentas angustiantes de muitos, apareceu para nós como uma esperança de nossa fuga. Eu desconheço o quão fiel é este mundo ao verdadeiro, em vista de como o sonho é arquitetado para nos levar diretamente para onde ele quer nos levar. Mas como estamos agora, sem uma perspectiva de fora – não do mundo real, mas do ar e da natureza além destas paredes brancas – , a ansiedade e a indignação fazem-se presentes. A princípio, a indignação está na capacidade do ser humano de se esforçar para práticas bárbaras, a ponto de construir uma ferrovia para tal.

— O que deixaria um xavequeiro calado nesse momento?

— Ao menos me chame de cortejador, e eu mal faço isso.

— Aí estaria muito longe de um insulto.

Esse momento realmente me fez pensar, mas ela acabou de me tirar dessa, me insultando novamente.

— Sabe. Não adianta fingir odiar todo mundo.

— Só fala isso por ser masoquista.

— Eu sei que é bem vazio ou inverso o que você fala dos outros. Além disso, eu vi que meu queixo estava bem cuidado da última vez. Obrigado.

— Idiota.

Outro insulto, porém direto e com direito a um rosto corado e voz trêmula… Isso foi especialmente fofo e vou guardar no meu coração!

Eu realmente faria jus ao insulto de xavecador agora, cortejando-a. Em mente já a chamei de fofa, e ia trazer por palavras como uma breve e satisfatória provocação.

O que me impediu? Os portões largos do salão abriram.

Surgiu, por entre os portões abertos de ferro retorcido, o tal abominável trem de louco. Fiel às locomotivas a vapor, sua fumaça deixou de jogar cinzas no ar, freando a si mesmo e seus dois vagões.

— É. Isso é normal?

Questionou-me. Não havia maquinista, mas não estava aí tal questionamento. O primeiro vagão surgiu vazio, porém o segundo…

No segundo vagão havia restos de pessoas, talvez a essência do que se sentia lá dentro para o sonho. Eram muitas pessoas de imagem distorcida e grudenta com cabeças e braços sobressaindo pelas janelas, um bolo de carne fantasmagórica sofrendo a pequenos gemidos – que se sobressaiam ao de Maria das dores ao fundo distante –, como se Junji Ito os tivesse desenhado ali.

— Espero que seja. O outro parece estar vazio, melhor ir nele.

A porta não se permitiu abrir. Como se algo estivesse faltando. E algo veio para se completar, eram os gritos agonizantes de um único ser que voltou a se aproximar.

— Era só o que faltava, abreee!

— A-anda logo!

— Não tá indo!

Ela, adiantada, chegou na sala com gemidos que se misturaram aos das pobres almas do segundo vagão.

Fazendo-nos temer a morte, sua presença nos espremeu. Próxima e próxima, cada vez mais próxima, Maria das dores fez seu caminho lento e gritante. Talvez se ficássemos parados ela não nos veria. Até que parou em nossa frente.

Svetlana, que paralisou uma vez com tal presença, saiu de minha frente quando nós ambos estávamos nos esforçando para abrir a porta.

— O que você está fazendo?

Ela, uma garota que nunca conhecera o anormal, se fez presente às minhas costas, percebendo algo que não percebi. E aquela a sua frente gritou novamente em agonia.

Quando estávamos no escritório, não pudemos ver o rosto da perseguidora. Maria das dores no momento, mostrou um rosto tão deteriorado quanto o resto de seu corpo, deixando um olho saltar e a mandíbula fraquejar para a esquerda. Seu cabelo é precário, deixando o couro queimado ou simplesmente careca e o motivo são dois cilindros colocados em ambas as têmporas. A caixa que ela tanto segurou, que a tornou presa pela morte, é a fonte de sua dor de tanto tempo.

— O eletro choque…

— Sim. Sinto muito por não termos percebido.

A mulher gritou novamente junto aos primeiros passos cautelosos de Svetlana.

Sua caixa que tanto causou dor finalmente foi desligada - por Svetlana - gerando alívio e soluços de choro. A amalgama que selava os movimentos dos braços e lhe prendia a tortura pelas têmporas, se reverteu, libertando-a.

Mas não era apenas Maria das dores que chorou.

— Eu também estaria naquele inferno pelo qual passou...

Compaixão… Ela partilha do medo de cair num lugar assim.

Vendo-as, meus joelhos fraquejaram.

— Sinto muito, senhorita Maria. Não só por não ter notado a situação, mas por terem-na esquecido, tudo o que passou… Muitos nem sabem o que houve aqui. Eu também não faço nem ideia.

Ela começou a desaparecer, cintilante, como cinzas esvoaçando. O alívio de uma eternidade nunca poderia ser expresso em gemidos secos.

Insensível com o momento, o mundo em que o sonho se fez presente começou a colapsar e a porta do vagão se abriu sozinha, nos aguardando.

Não me deram o tempo de demonstrar o meu pesar.

— Nós temos que ir.

— Tá. — Svetlana disse, esfregando os olhos.

Dali partimos. Com uma transição confusa na consciência, despertamos na sala de aula sem mais ninguém presente. Quem deixaria dois alunos dormindo todo o período até a sala esvaziar? Tem dedo do velho Hipnos, certeza…

Me aproximei.

— Dinis? Aquela desgraça…

— Sim, foi real.

Ela enxugou as lágrimas ressurgentes e continuou com um "certo".

— Você é um maldito. Me jogou nisso do nada.

— É. Foi tudo culpa minha, você não teria conhecido nada do lado sombrio do mundo… Se quiser pode me bater. Mas agora eu posso te oferecer uma possibilidade. Se isso for mascarar a sua crise existencial e tristeza, a maioria das pessoas com doenças únicas e particularmente estranhas se prendem ao "aconteceu" sem suspeitar de algo além do comum.

—…

— Mas agora você conhece o além do comum. Talvez exista uma solução.

— Masoquista. — Disse com certa expressão que não vi antes, em meio aos tantos insultos, mas ainda longe de ódio ou coisa parecida.

— Eu quero tentar.

Nossa primeira desventura acabou aqui por completo. Acalmamos ambos os nossos ânimos e após um pouco de esclarecimento, pegamos nossos caminhos.

Não quero desvalorizar todo o sofrimento de Maria das dores e tantos outros que possam… Que certamente morreram em Barbacena, se possível até trarei como algum tópico escolar respeitoso algum dia. Mas não posso também, conter certa felicidade com o atual ocorrido. Afinal, eu tenho o número de uma garota muito especial para mim agora.

Minha única preocupação é Svetlana, como irá se comportar depois de tudo o que viu?

5

Deveria chamar esse momento de epílogo? De qualquer forma…

— Além de assediador e masoquista, é exibicionista para querer me encontrar aqui?

— Primeiro que não sou nenhum dos três. E segundo: foi você que me chamou para o parque!

— Mas a sua natureza perversa o deixou ignorar que queria me encontrar.

Caí do banco com esse golpe. Não esperava que ela balançasse o meu mundo dessa forma. A princípio seria apenas uma conversa direta sobre um assunto incômodo, na pracinha próxima à escola.

— "Raham". Eu falei com o velhote que conhece melhor sobre o seu tipo de problema.

— E o rabugento disse o quê?

— Deve ter solução. Mas você tem de procurar pela possibilidade de mudar. E não esperar sentada.

— Certo. Também te darei uma possibilidade então.

Justo quando me distraio, olhando para além de onde estamos, o lado do meu rosto recebeu um toque macio. Só existem duas coisas no mundo com tal toque com base no meu conhecimento. E só poderia ser um em específico agora. Mas, por quê?

Não existe nenhuma necessidade de usar seus lábios, que possibilidade ela me dará?

— Você sabe as consequências de mexer com o coração de um colegial, né?

— Não queira saber quem é mais perigoso aqui, tenho meus contatos. Eu sou da favela!

— Da favela? Pensei que era uma garota totalmente isolada.

— Vai aprender quando a deixar de ser insensível? Não importa. Se você encontrar uma solução para o meu problema. Pode ser que coisas boas aconteçam.

É a primeira vez que ouço Svetlana dizer algo como "bom" em uma conversa.

— Posso saber o que seria?

— Não, e não tenha muita expectativa.

Impossível, elas já estão lá em cima.

— É isso. Até.

— Até...

Parece que coisas boas vão acontecer… Não consigo conter a emoção para o que pode estar por vir.

Eu acabei de ser um gado.

Deem suas opiniões por favorzinho. Eu estou gostando muito de escrever e espero que consiga compartilhar um pouco dessa diversão com o leitor.

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