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Florescer de Carne

A porta do galpão se abriu violentamente, e a luz do sol entrou como uma explosão de claridade, ofuscando momentaneamente a visão de Ana. Instintivamente, ela se lançou em direção ao bisturi no chão, seus dedos envoltos em flores agarrando a lâmina com firmeza. Os vultos na entrada, escurecidos pelo brilho, não se moveram. Com seus olhos estreitando-se em desconfiança, a mercenária recuou mais alguns passos, começando a cortar as amarras de Miguel.

Foi então que o silêncio foi rompido por um ruído familiar. A estática encheu o ambiente, seguida por uma voz fria e distorcida já ouvida anteriormente.

— Peguem ela.

A rainha se endireitou de imediato, colocando-se em postura de combate, pronta para se defender. Mas, para sua surpresa, os dois homens que adentraram o galpão não a atacaram. Seus passos eram direcionados para o corpo da mulher-planta caída, e não para ela.

A confusão tomou conta de sua mente ainda turva, mas não parou o corte das cordas que prendiam o mascarado. No entanto, quando ele finalmente conseguiu libertar suas mãos, rapidamente arrancou a mordaça da boca e lançou um olhar de desculpas para Ana, se dirigindo com passos urgentes até a anciã.

— Desculpe por tudo, Marlene. Nós... nós vamos compensar isso — sua voz tremia, uma mistura de arrependimento e tristeza enquanto fazia uma reverência suave.

Uma gargalhada eletrônica subiu do chiado do rádio ao ouvir o homem, deixando Ana ainda mais confusa. De repente, imagens borradas começaram a invadir sua mente com a intensidade de uma maré crescente. Ela se viu, cortando lenta e meticulosamente algo enquanto um espesso líquido verde escorria.

— Que merda... — sussurrou para si mesma, sentindo o problema que iria recair sobre seus ombros.

Calmamente levou a mão ao rosto, querendo sentir a própria pele, mas, ao fazer isso, seus dedos encontraram a frieza de sua máscara, ainda presa firmemente. 

— Pelo menos isso ainda está aqui — murmurou, um suspiro de alívio involuntário escapando de seus lábios.

Marlene, ainda com o rosto virado, parou de rir abruptamente e colocou a mão no ombro de Miguel, como se quisesse tranquilizá-lo. Ela então voltou seu olhar vazio para Ana, avaliando-a. 

— E então... deu certo? — perguntou a anciã, quebrando o silêncio que preenchia o ambiente.

Ana ouviu, mas não pôde responder de imediato. Franzindo a testa, levantou um dedo em direção a mulher, pedindo um momento de paciência. Seu olhar se tornou distante, e seu corpo, antes tenso, parecia estar em um estado de introspecção quase meditativa.

— Faz algumas décadas desde que fiz algo assim... — disse com uma voz baixa e quase irônica. — Perdi o costume.

Ela manteve o dedo erguido, os segundos passando com uma lentidão desconcertante. Todos ao redor aguardavam, perplexos pela estranha postura. Sua respiração era lenta, como se estivesse se concentrando em cada detalhe que retornava à sua mente, montando o quebra-cabeça do que havia acontecido.

De repente, com um estalo em sua expressão, seus olhos se arregalaram em compreensão súbita.

— Ah, claro! Fotossíntese... ou, não... absorção de mana! — exclamou, corrigindo-se, enquanto sua mente se contorcia ao processar a estranha fusão entre sua carne e as plantas agora enraizadas nela.

Ao longo da agitada noite, descobriu mais detalhes a respeito dos habitantes da vila, entendendo aos poucos como seus corpos funcionavam. Com isso, sua ganância tomou conta rapidamente, somada ao fato de não conseguir tomar decisões racionais naquele momento.

No início, havia apenas tentado costurar as flores à sua pele. Percebeu que não eram flores comuns; suas pétalas eram macias, mas ao mesmo tempo possuíam a textura de couro, resistentes e maleáveis de um jeito realmente antinatural. A plantínea que a acompanhava, uma garota com um corpo feito de diversas espécies entrelaçadas, parecia ter um interesse especial na salvadora de seus ancestrais. De forma estranhamente fiel e atenta, havia arrancado cada pequeno botão de flor de si mesma, oferecendo-os voluntariamente.

Porém, logo que tocaram a carne humana, as flores começaram a murchar. A princípio, a rainha mercenária foi tomada pela frustração, mas então a resposta mais óbvia se revelou, como se já estivesse ali o tempo todo: mana!

Com foco renovado, Ana canalizou sua energia interna, despejando-a como um rio poderoso que alimentava cada pétala presa à sua pele. Os caules responderam, crescendo lentamente, enrolando-se como serpentes famintas ao longo de suas veias, sugando os nutrientes que transbordavam de seu corpo.

Um sorriso satisfeito brotou em seu rosto quando sentiu a ardência da fusão, a tensão entre carne e planta se dissolvendo em uma nova anatomia. Sua companheira verde parecia compartilhar da alegria, seus galhos tremulando em uma dança silenciosa de êxtase.

Tudo parecia estar indo perfeitamente bem. Teria sido ótimo se tivesse parado por aí.

Só que não parou.

À medida que sua mana fluía incontrolavelmente, as coisas começaram a se distorcer. Ideias absurdas invadiram sua mente, como tempestades, enquanto alguns dos brotos, antes vibrantes e coloridos, escureciam até se tornarem negros como a noite mais profunda.

— E então eu... — sussurrou Ana, concentrada em se lembrar. Aos poucos levou a mão novamente às costas, sentindo as pequenas pontas incrustadas em seus ombros, como espinhos minúsculos que mal perfuravam a pele. 

Lembrou-se de como tudo a partir daí foi movido pela curiosidade. Uma curiosidade faminta, a qual a levou a abrir uma pequena incisão em seu abdômen. Uma abertura quase imperceptível, onde ela tentara centralizar a mana para penetrar uma das sementes que lhe haviam dado. Mas algo não funcionava. A mana batia na superfície do item e se dissipava.

Novas imagens vinham em fragmentos desconexos, relances de tentativas falhas, cada uma mais desesperada que a outra. Tentara cultivar em seus órgãos, dentro de seus pulmões, em um canto de seu fígado, mas nada parecia dar certo.

Eventualmente, seus olhos se voltaram para o corpo da mulher em sua frente. Uma beleza estranha e selvagem, uma floresta caminhando sobre duas pernas. Ana passou os dedos lentamente pelas madeixas de madeira e folhagem que agora a cobriam, por seus braços, e também pelo contorno de seu pescoço. Após refletir, notou que algo conectava tudo como uma massa… terra.

"Claro, como não pensei nisso antes? São sementes, afinal."

Sua mente se expandiu em direções inimagináveis. O conceito da terra, simples e primordial, se desdobrava em camadas complexas, cada uma carregada de um peso científico, místico e prático.

Ela pensou primeiro em sua composição. Não era apenas um amontoado de sujeira, mas um composto vivo, carregado de matéria orgânica e inorgânica. Fragmentos de minerais, pequenos organismos, microrganismos, fungos. Argila, silte, areia, cada um com suas funções específicas. Era essa mistura que permitia às plantas prosperarem.

Havia também a textura, coisa que não podia ser negligenciada. Ao imaginar cada grão de terra, Ana visualizava o espaçamento entre as partículas, o que permitia a troca de gases, impedindo que as raízes ficassem presas, sufocadas.

E quanto ao pH? Retenção de água? Propriedades eletroquímicas? Decomposição?

Seu corpo precisaria agir como um ecossistema em miniatura. Ela precisava ser o ciclo que gerava vida por si só. Um ciclo fechado de vida e morte, nutrição e decadência.

Por último, Ana pensou no tempo. Terra não é algo estático; ela evolui, se transforma com o passar dos anos, se renova constantemente, adaptando-se ao ambiente ao redor. 

"Não basta pensar no solo, preciso ser o solo…"

A memória vagou atrás de seus ouvidos, recapitulando suas frases e considerações para o vazio. A mana havia acelerado seu fluxo assim que terminou o murmúrio, girando como um redemoinho. Foi então que seus ombros começaram a desmoronar, os músculos e a carne se fragmentando em uma textura arenosa. Em um movimento lento e deliberado, ela escavou com o dedo, enterrando punhados de sementes nos buracos recém-abertos com uma estranha ternura, quase maternal.

Sua respiração estava entrecortada pelo esforço, mas logo cobriu-as e imaginou-as germinando, crescendo dentro de si. A dor era excruciante, como se seus membros já não existissem, e até mesmo a leve brisa do local, que movia as pequenas partículas, causavam um choque em sua existência.

No entanto, funcionou. 

Raízes começaram a crescer de dentro dos pequenos fragmentos de vida, espalhando-se, serpenteando desde o pescoço até as omoplatas e dando voltas ao redor de seu coração. Sentiu certo receio quando algumas pequenas pontas o perfuraram, pois o fizeram vibrar, como se fosse explodir. Por sorte pararam por aí, como se apenas desejassem os resquícios das energias conflitantes que coexistiam em seu interior.

Seu estoque de mana estava quase vazio, fazendo a bizarra manifestação de seus ombros lentamente se dissipar, com a carne voltando a tomar forma sólida, apesar de agora apresentar um medonho aspecto repuxado, reconstruída incorretamente. 

A mulher, que já não se encontrava sã, ficou ainda mais perturbadora e ousada com a energia reversa que aos poucos exigia seu lugar. Sob tal influência, ao ver que as modificações estavam dando certo, pensou que o interior de seu corpo também deveria receber um pouco daquilo.

— Ana, sua idiota… — resmungou para si mesma, quando finalmente lembrou-se da última cena. Seus olhos, agora focados novamente no presente, seguiram os dois homens vegetais que levavam a mulher-planta para fora. Viu as muitas marcas em sua pele e, com um suspiro cansado, percebeu que as marcas foram feitas por seus próprios dentes. 

Devagar, os fragmentos da noite anterior começaram a fazer sentido, embora as lacunas ainda fossem grandes, pois não recordou de quando Miguel foi amarrado, apesar de inconscientemente saber que também era culpa sua.

Finalmente baixando as mãos, se virou para a anciã, que a observava com um interesse silencioso.

— Talvez... — começou, com uma voz um pouco rouca. — Talvez tenha funcionado, já que recobrei meus sentidos.

Ana deu um passo à frente, e então sentiu uma inesperada pontada de remorso atravessá-la.

— Peço desculpas pelo que aconteceu com Letícia…

Marlene franziu o cenho por um instante, confusa, mas logo compreendeu o que foi dito.

— Você estava mesmo tão ruim que não se lembra da conversa que tivemos? — perguntou, com um sorriso breve.

Ela fez um gesto com a cabeça em direção aos dois homens que haviam jogado o corpo da plantínea no chão do lado de fora, de forma desleixada. Ana observou, intrigada, enquanto a grama ao redor da suposta falecida começava a se mover em direção a ela, como se estivesse respondendo ao chamado de sua energia. Simultaneamente, pequenas vinhas saíam do corpo de Letícia, infiltrando-se lentamente na terra.

— Em algumas horas, ela deve recobrar a consciência — explicou Marlene. — E em poucos dias estará de volta ao normal.

Os olhos atentos de Ana fascinaram-se pela milésima vez com os mistérios desse novo mundo. Um sorriso curioso se formou em seus lábios enquanto balançava levemente as mãos, ainda sentindo certo ardor pelas costuras.

— A maldita mana realmente é incrível — comentou, colocando o bisturi de lado, no balcão de aço. Dando de ombros ao ver que não teria grandes implicações, começou a cantarolar baixinho. — O laboratório de vocês é ótimo, não esperava que estivesse tão bem preservado.

Ela caminhou pelos poucos corredores de forma despreocupada, explorando os arredores. As máquinas que via eram peças raras, o auge do que se podia conseguir em tecnologia naquela sociedade em ruínas, ainda que algumas delas estivessem danificadas ou faltando peças.

Marlene, seguindo atrás, soltou uma chiada risada baixa.

— O hospital era até que grande para uma cidade pequena — admitiu, com um certo pesar. — Agora... quer continuar com o que discutimos?

Ana parou por um instante, franzindo a testa enquanto processava a pergunta.

— Discutir algo com alguém fora de si é jogo sujo — disse em uma estranha melodia, com um sorriso torto. — Vamos lá, repita. Qual o assunto?

Antes que Marlene pudesse responder, Miguel se aproximou, parecendo meio ansioso.

— Não seria melhor você comer algo antes de continuar?

A observação de Miguel pegou Ana de surpresa. Ela piscou, como se estivesse emergindo de um transe profundo, e foi então que notou os fragmentos de vidro em suas mãos. O becker quebrado estava preso em seus dedos, apertado com tanta força que quase rasgava sua pele. Olhou ao redor, confusa, sem se lembrar de como aquele objeto havia chegado ali.

— Podemos conversar lá fora, se preferir — sugeriu Marlene, observando a cena com uma diversão silenciosa, sem emitir nenhum julgamento.

Ana soltou o vidro lentamente, os pedaços estilhaçando-se ainda mais ao tocarem o chão. Seus olhos brilharam com uma sombra de reflexão antes de curvar os lábios em um sorriso leve e irônico.

— Sim, acho que preciso de um pouco de ar.

Ela observou suas mãos uma última vez, com as flores balançando levemente com cada movimento. Seu rosto endureceu, e ela as aproximou de seus lábios, como se as pétalas tivessem vida.

— Se não forem úteis… eu arranco todas vocês fora — sussurrou, voltando a cantarolar.