— Ele não o colocou na rua — brincou Leif quando voltei para a mesa. — Logo, acho que a coisa não correu tão mal quanto poderia.
— Acho que correu bem — respondi distraído. — Mas não tenho certeza.
— Como pode não ter? — objetou Leif. — Eu vi o homem rir. Isso deve significar alguma coisa boa.
— Não necessariamente — interveio Alastor.
— Estou tentando me lembrar de tudo que disse a ele — admiti. — Às vezes minha boca começa a falar e minha cabeça demora um pouco para alcançá-la.
— E isso acontece com frequência, não é? — perguntou Alastor, com um de seus sorrisos raros e serenos.
As brincadeiras dos dois começaram a me acalmar.
— Com frequência cada vez maior — confessei rindo.
Bebemos e fizemos piada sobre coisas bobas, mexericos sobre os professores e as raras alunas que nos chamavam a atenção. Falamos das pessoas de quem gostávamos na Academia, mas passamos mais tempo pensando naquelas de quem não gostávamos, e por que, e no que faríamos a respeito delas se tivéssemos uma oportunidade.
Assim é a natureza humana.
Com isso, o tempo passou e, aos poucos, a Foles ficou cheia. Leif cedeu aos disparates de Alastor e começou a beber smutten, um vinho forte e negro do sopé da Cordilheira das Tempestades, mais comumente chamado de corta-tesão. Leif deixou seus efeitos se manifestarem quase de imediato, rindo mais alto, dando sorrisos mais largos e se remexendo na cadeira. Alastor persistiu em seu jeito calado de sempre.
Paguei a rodada seguinte: grandes canecos de sidra pura para todos nós. Reagi ao desdém de Alastor dizendo-lhe que, se ganhasse meu prêmio nessa noite eu o levaria para casa boiando em corta-tesão, mas, se um dos dois se embriagasse antes disso, eu o espancaria pessoalmente e o jogaria no rio. Eles se moderaram consideravelmente e começaram a inventar versos obscenos para Criaferro curtumeiro.
Deixei-os cuidando disso e me recolhi a minhas reflexões. Em primeiro plano em meus pensamentos estava a ideia de que talvez valesse a pena dar ouvidos ao conselho indireto de Radagon. Procurei pensar em outras canções que eu pudesse apresentar e que fossem suficientemente difíceis para mostrar minha habilidade, porém fáceis o bastante para dar espaço a meu talento artístico.
A voz de Leif puxou-me de volta para o aqui e agora.
— Ande, você é bom de rimas... — insistia ele.
Repensei no último trecho da conversa dos dois, que só escutara parcialmente.
— Experimentem Na batina do seguidor de Ardonai — sugeri, sem muito interesse.
Estava nervoso demais para me dar ao trabalho de explicar que um dos vícios de papai tinha sido sua propensão para criar obscenos poemas humorísticos de cinco versos.
Os dois gargalharam, encantados, enquanto eu procurava descobrir uma canção diferente para cantar. Ainda não tivera muita sorte quando Alastor tornou a me distrair.
— O que é? — perguntei, irritado.
E então percebi em seus olhos a expressão vazia que ele só exibia ao ver algo de que realmente não gostava.
— O que é? — repeti, dessa vez num tom mais ponderado.
— Alguém que todos conhecemos e amamos — disse ele em tom sinistro, fazendo um sinal em direção à porta.
Não vi ninguém que pudesse reconhecer. A Foles estava quase lotada, com mais de 100 pessoas circulando apenas no térreo. Pela porta aberta, notei que a noite caíra lá fora.
— Ele está de costas para nós. Jogando seu charme pegajoso para uma jovem encantadora que não deve conhecê-lo... à direita do senhor gorducho de vermelho — disse Alastor, orientando minha atenção.
— Filho-da-mãe — disse eu, perplexo demais para encontrar um xingamento adequado.
— Por mim, sempre achei que ele era de ascendência suína — comentou Alastor secamente.
Leif deu uma olhada em volta, piscando feito uma coruja.
— O que foi? Quem chegou?
— O Drazno.
— Pelos ovos de Deus! — exclamou, curvando-se sobre o tampo da mesa. — Não me faltava mais nada. Vocês dois ainda não se entenderam?
— Estou disposto a deixá-lo em paz — protestei —, mas, toda vez que me vê, ele não consegue deixar de me dar uma alfinetada.
— Quando um não quer, dois não brigam — retrucou Leif.
— Uma ova! — rebati. — Não quero saber de quem ele é filho. Não vou me encolher feito um cãozinho tímido. Se ele fizer a idiotice de me cutucar, eu lhe quebro o dedo — prometi.
Respirei fundo para me acalmar e procurei soar racional:
— Ele acabará aprendendo a me deixar em paz.
— Você poderia apenas ignorá-lo — propôs Leif, num tom surpreendentemente sóbrio. — É só não morder a isca e num instante ele se cansa.
— Não — retruquei em tom sério, enfrentando seu olhar. — Não, não se cansará — repeti.
Eu gostava do Leif, mas às vezes ele era de uma inocência terrível.
— Quando ele achar que enfraqueci, vai cair em cima de mim com o dobro da força da véspera. Conheço esse tipo.
— Lá vem ele — observou Alastor, desviando os olhos como quem não quer nada.
Drazno me viu antes de chegar ao nosso lado do salão. Nossos olhares se cruzaram e ficou óbvio que ele não esperava me encontrar ali. Disse alguma coisa a seu grupo sempre presente de lambe-botas, que se afastou por entre a multidão numa direção diferente para pedir uma mesa.
Os olhos de Drazno deslocaram-se de mim para Alastor, para Leif, para meu alaúde e de novo para mim. Depois disso ele nos deu as costas e se dirigiu à mesa que os amigos haviam arranjado. Olhou na minha direção antes de se sentar.
Achei irritante não vê-lo sorrir. Ele sempre sorrira para mim até então, um sorriso de pantomima, exageradamente triste, com sarcasmo nos olhos.
Em seguida vi algo que me irritou ainda mais: ele segurava uma robusta caixa quadrada.
— O Drazno toca lira? — perguntei ao mundo em geral.
Alastor encolheu os ombros. Leif fez um ar constrangido.
— Pensei que você soubesse — disse fracamente.
— Vocês já o viram aqui?
Alastor assentiu com a cabeça.
— Ele tocou?
— Declamou, na verdade. Poesia. Recitou, meio que dedilhando a lira — fez Leif, com cara de coelho prestes a sair correndo.
— E ganhou a gaita-de-foles? — perguntei, em tom sinistro. Resolvi no mesmo instante que, se Drazno fosse membro daquele grupo, eu não quereria ter nada a ver com ele.
— Não! — ganiu Leif. — Ele tentou, mas... — Deixou a frase morrer, com uma expressão meio desvairada nos olhos.
Alastor pôs a mão em meu braço e fez um gesto tranquilizador. Respirei fundo, fechei os olhos e procurei relaxar.
Aos poucos percebi que nada daquilo importava. Quando muito, simplesmente subia o valor da aposta nessa noite. Drazno não poderia fazer nada para perturbar minha apresentação. Seria obrigado a assistir e escutar, a me ouvir tocar O Lar de Sir Silver Thelliar, porque, a essa altura, não tinha mais dúvida sobre o que eu tocaria nessa noite.