A mão de uma criança trabalhava rápido sobre um papel. Alternando entre o frasco de tinta e a superfície branca, letras delineadas, fruto de uma caligrafia invejável, estavam sendo gravadas em alta velocidade.
Era tão belo que Marlly e Tânia só conseguiam admirar.
"A letra da princesa é perfeita!" A guarda-costas ficou encantada com os traços deslumbrantes.
A babá apenas continuou observando em silêncio, hipnotizada pelo ato. "Quando ela melhorou tanto assim?", ficou impressionada.
Pelo que Marlly sabia, apesar de bem-feita, a letra da garotinha era consideravelmente simples.
Percebendo a comoção de soslaio, enquanto escrevia, ela sorriu. "Vocês ficariam ainda mais admiradas caso soubessem quantos documentos redigidos por escrivães profissionais eu falsifiquei."
O primeiro trabalho que Develine assumiu na Legião, após fugir da sua casa, foi imitar letras complexas e alterar documentos que eram de suma importância para os interesses da organização.
Com uma brisa fresca entrando pela suntuosa janela do quarto espaçoso, ela redigiu três cartas.
Vendo a garotinha espreguiçar, Tânia disparou surpresa: — A senhorita já terminou? — Ficou impressionada.
— Sim! — Develine sorriu, e sem perder tempo, se voltou para Marlly. — Trouxe? — questionou a mulher.
— Com certeza, princesa... — acordando de um transe, a babá se prontificou, entregando três envelopes vermelhos com bordas pretas e um brasão prateado.
Ao ver os envelopes, a pequena franziu o cenho, ficando surpresa e confusa. Sua atenção logo foi capturada pelo brasão composto de um enorme demônio de asas abertas com duas espadas, uma rapieira e uma claymore, cercando seu pescoço. Aquele era o brasão da família Dargran, o brasão que Darizio e Ashiria criaram para representá-los.
— Éhhh, Marlly... esses são da minha mãe — apontou, achando estranho a competente mulher com mais de vinte anos de serviço ter cometido um erro tão básico.
Ela sabia que por ter sido empregada doméstica da família real por tanto tempo, Marlly com toda certeza entendia o significado dos envelopes personalizados.
Era um meio de identificação e demonstração de poder. Com os estandartes e cores das casas nobres gravadas no invólucro, a atenção dada as suas cartas, seria conforme o poder da família que a enviou.
Até mesmo nos correios poder e prestígio eram reconhecidos e privilegiados. Se a carta fosse enviada por uma família influente, ela seria beneficiada sobre as correspondências de famílias mais fracas.
E como descendente imperial, Develine possuía seu próprio padrão. Envelopes rosas com contornos brancos e o brasão dourado da família imperial gravado na estrutura. Porém, apesar de ser uma princesa, suas cartas eram tratadas de uma maneira diferente.
Sem possuir acesso ao selo imperial, que era guardado pelo seu pai, seu envelope personalizado era tratado apenas um pouco melhor do que as cartas enviadas pelos nobres abaixo das doze famílias.
Questionada por Develine, Marlly logo se prontificou.
— Quando estive procurando pelos seus envelopes, Lady Ashiria os recolheu e me entregou esses no lugar — respondeu.
— Por quê? — Develine achou estranho.
— A Lady disse que sua filha tem esse direito. Ela também avisou que lamenta ainda não ter criado um padrão próprio para a princesa, mas que por enquanto a senhorita pode utilizar os dela — Marlly respondeu, e estendendo sua outra mão, revelou um item dourado. — Ela também disse que a senhorita pode usar o selo pessoal da casa Dargran — a moça tremia enquanto tratava o objeto com cuidado, como se fosse um tesouro.
Develine arregalou os olhos.
Aquele era um objeto muito precioso. Era o item que garantia que a carta enviada era verdadeira. Por mais que os envelopes pudessem ser copiados, era impossível falsificá-los por completo devido à assinatura mágica envolvida, e os selos atestavam isso.
Todos os envelopes personalizados e selos que o acompanhavam, tinham que ser certificados pelo Correio Imperial. Os mesmos funcionavam em pares. O selo de uma família só funcionava em um envelope personalizado daquela mesma família.
Caso um selo mágico certificado fosse carimbado em um envelope falso, sem assinatura, o mesmo irromperia em chamas.
— Mas... — a garotinha ficou sem palavras, lembrando de quantas vezes pediu para usar o selo da casa Hydess em prol de enviar suas cartas mais rápido.
Enquanto seus irmãos pediam e recebiam, ela precisava mostrar resultados, ou seja, atender educadamente aos pedidos do seu pai.
Apesar de existirem objetos mágicos de comunicação, os mesmos eram caros, raros, restritos e difíceis de fazer. Normalmente eles só eram usados em emergências ou como itens de cunho estratégico, em tempos de guerra, por exemplo.
Quando Develine descobriu que sua mãe usou tal objeto importante de comunicação apenas para chamar pessoas para construir uma biblioteca pessoal para ela, ficou estarrecida.
~Mãe, isso é um exagero!~ disparou chocada.
~Exagero, onde? É uma emergência~ a maga afirmou com a cara mais deslavada do mundo. ~Minha filha quer aprender e eu nem sequer tenho um lugar adequado. Onde já se viu isso?~ bufou transtornada.
Vendo a criança ficar muda, Marlly encarou Tânia, usando seu olhar gentil para lhe pedir uma ajudinha.
Entendendo o recado, a guarda-costas logo interveio: — Não é perfeito, princesa? A mãe da senhorita é incrível e te ama muito — disse, adulando-a como uma verdadeira irmã mais velha.
Dando uma fungada emotiva, Develine concordou com a cabeça: — Sim! A mamãe é a melhor — soltou um sorriso prestes a desabar em choro.
Apesar dos exageros, havia amor em cada mínimo gesto feito por Ashiria. Dos presentes que dava até os momentos de carinho, pegando-a no colo, adulando-a, colocando para dormir, lhe contando uma historinha ou simplesmente lhe protegendo com todas as suas forças, tudo era feito com amor.
Por um instante, Develine até duvidou. Parecia um sonho.
"Era tão fácil assim?", se recordou do quanto resistiu a maga ruiva em sua vida anterior. "Se eu tivesse pedido ajuda antes, minha vida teria sido diferente?", se questionou.
Ela precisou analisar por apenas alguns instantes para alcançar uma conclusão.
"Acho que não..."
Develine se conhecia melhor do que ninguém, e sabia que o seu eu atual era fruto de muitas experiências dolorosas.
"Se por um milagre eu tivesse pedido ajuda para Ashiria e ela me mimasse tanto quanto está me mimando agora, eu provavelmente ainda seria uma garota nojenta", seu sorriso amargou com a ideia.
Só ela sabia o quanto teve que sofrer para começar a mudar, e mesmo assim, muitos traços permaneceram. Volta e meia ela sentia o ódio que costumava consumi-la lutando para tomar forma.
Por mais que os presentes de Ashiria fossem legais, era óbvio que a maga ruiva tinha dificuldades para entender as consequências dos seus mimos. Ela apenas queria cuidar ao máximo da filha que sempre sonhou ter, mas Develine sabia que ser tão paparicada com toda certeza faria mal ao seu eu do passado.
"Você realmente foi uma idiota, Develine", ela concluiu com um suspiro.
Diante do seu silêncio, às duas moças que a acompanhavam encararam-na com expectativa, devolvendo a seu rosto o sorriso que desapareceu por um instante. Sentindo o afeto daquelas pessoas, ela voltou a florescer.
"Porém, eu gosto de acreditar que me tornei uma pessoa diferente." Pegou os envelopes e começou a guardar suas cartinhas. "E essa pessoa diferente precisa salvar o futuro", concluiu, ficando animada de novo.
Conferindo os envelopes com cuidado, entregou dois para Marlly, que ao verificar os destinatarios ficou imediatamente confusa.
— Senhorita, isso está certo? — a babá estranhou. — Há duas cartas para o príncipe Liam. — Mostrou o envelope.
— Está, sim! — Develine sorriu, aquele seu velho e intimidador sorriso traiçoeiro. — Um deles é apenas um trabalhinho que preciso que o meu grande amigo, Liam, faça por mim. Nada de mais. — Lançou uma piscadela provocativa para a sua babá. "Esperar meu pai enviar aquela pessoa até aqui é só um atraso irritante, ainda mais com toda essa confusão de adoção rolando"
O plano inicial de Develine era esperar aquela pessoa aparecer. Originalmente aquele homem visitaria a propriedade de Ashiria em busca de parcerias comerciais, a mando de Dalfoy. Com a maga ruiva ficando ainda mais triste depois da visita de Develine, o príncipe esperava se aproveitar da mulher fragilizada.
Mesmo algo tão corriqueiro quanto enviar sua filha para visitar a tio no interior, era um esquema nas mãos de Dalfoy. O homem nunca parava quieto.
Porém, Ashiria dispensou o rapaz e deu início a sua reclusão severa.
"Mas estou trabalhando para mudar isso", o rosto radiante da sua nova mãe inundou os pensamentos da criança.
Develine tinha um plano de negócios.
Porém, um detalhe havia passado despercebido. Ao receber as cartas que nunca recebeu em sua vida anterior, ela se deu conto de um ponto muito importante.
"Se eu mudar demais o futuro, perderei minha vantagem." Develine ficou em pânico.
A imagem dos seus planos desmoronando logo vieram a sua mente.
"Espera! Será que aquele cara ainda vai vir até a propriedade da minha mãe?!" Sentiu vontade de roer as unhas. "Mas já até fiz amizade com a Leifea", choramingou. "Eu preciso fazer isso acontecer ou estarei ferrada", se decidiu.
Foi nesse ponto que Liam entrou em seu plano. Com a carta do garoto em mãos, ela tinha uma desculpa.
"Eu te amo muito Liam, tenha certeza disso", abraçou o amigo em sua imaginação.
Aquele envio foi providencial para lubrificar as engrenagens do seu projeto de futuro perfeito.
"Eles se conhecem", lembrou do fato corriqueiro.
Percebendo que a garotinha estava tramando algo, Marlly engoliu em seco.
"Minha princesa, você acabou de receber uma cartinha do garoto e já está fazendo ele trabalhar para você", suspirou desanimada. "Desse jeito será difícil arrumar um noivo para a senhorita"
Develine estreitou o olhar, ela conhecia aquela mulher a ponto de conseguir saber o que ela estava pensando só de olhar para as expressões que ela fazia.
"E quem disse que eu quero me casar com ele?", ficou levemente "ofendida". "Ele é um grande amigo, ok? Apenas isso", pensou.
Sem perceber que a princesa e sua babá estavam tendo um diálogo não verbal, Tânia se intrometeu, explodindo de alegria.
— Eu sinto que a senhorita tem feito muitos negócios ultimamente — a guarda-costas sorriu, com uma expressão que claramente queria dizer: "A princesa é a melhor".
Realmente se sentindo uma irmã mais velha, Tânia estava orgulhosa.
Develine ficou feliz.
"Você não faz ideia, Tânia", sorriu. "Esses negócios provavelmente salvarão o mundo." Por um instante, sentiu orgulho de si mesma. "Ou, pelo menos, eu espero que sim", ficou um pouco ansiosa.
Enquanto a mente da jovenzinha voava alto, os espasmos repentinos da sua babá lhe chamaram atenção.
— Prin-princesa! — Marlly parecia chocada com algo.
Quando Develine percebeu o que era, suspirou. Sua babá estava encarando o destinatario da terceira carta, a que ainda permanecia sobre sua escrivaninha pessoal.
"Ahh é, têm isso."
Aquela era a grande questão de Develine no momento. "Enviar ou não enviar, eis a questão"
Com uma letra maravilhosamente desenhada, o terceiro envelope tinha um destino especial.
Hausturio Hydes, Imperador de Calderium e avô de Develine.
"Eu não sei se fazer isso é a melhor escolha, mas eu não posso deixar que eles morram nas mãos daquele panaca", pensou enquanto se recordava de um grupo de indivíduos que, mesmo em sua primeira vida, tinham um cantinho reservado em seu coração.
Principalmente um garotinho de olhos vermelhos, pele pálida, olheiras profundas e presas pontudas.
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