O sangue respingava no chão arenoso e irregular, com faixas escuras atravessando o solo desértico.
Kang Seungho estava no centro do massacre, seu peito subindo e descendo enquanto lutava para recuperar o fôlego.
Ao seu redor jaziam os restos retorcidos de monstros, suas formas grotescas piscando fracamente antes de se dissolverem em partículas de luz pálida.
"Mais um dia nesse inferno" murmurou ele, passando por cima dos restos de uma criatura com pernas demais. Sua voz era seca, com um toque de amargura. "Se algum Deus está assistindo a isso, espero que esteja se divertindo."
A espada em sua mão pendia pesada ao lado do corpo. Se aquilo ainda podia ser chamado de espada. A lâmina estava cega, corroída por anos de uso incessante. Se ao menos sua habilidade de Maestria Etérea de Lâminas não drenasse tanta mana, ele teria abandonado aquele pedaço de metal enferrujado há séculos.
"Quando isso vai acabar?" Sua voz foi apenas um suspiro.
Ele já havia perdido a noção do tempo. Dias, meses, anos—tudo se misturava em um ciclo interminável de sobrevivência. Esse inferno, que ele chamava de O Abismo, havia se tornado sua casa por mais de mil anos.
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No início, ninguém percebeu.
As mudanças eram sutis—anomalias magnéticas aqui e ali, leves tremores em áreas antes estáveis, e flutuações inexplicáveis no clima. Cientistas tentaram rastrear esses fenômenos, mas as respostas escapavam mesmo dos mais renomados especialistas. Para a maioria das pessoas, eram apenas notícias de rodapé, uma distração breve em meio à correria do dia a dia.
Até o dia em que o primeiro portal apareceu.
Foi no coração do deserto do Saara, onde o calor escaldante era a única presença constante por milênios. Em 2024, uma equipe de geólogos franceses, que estudava formações rochosas, tropeçou no que parecia ser uma falha espacial. No início, eles descreveram como "uma miragem estranha"—um círculo de energia pulsante flutuando no ar, com uma superfície que parecia água em ebulição.
Mas aquilo não era uma miragem.
Poucos dias depois, outros portais começaram a aparecer pelo globo: um no centro de Nova York, outro nos arredores de Tóquio, e mais um nas florestas amazônicas. Eles surgiam aleatoriamente, em locais que não pareciam ter nada em comum. O mundo os chamou de "portais", mas os cientistas deram um nome mais técnico: Fendas Dimensionais.
Nos primeiros dias, a humanidade observou de longe, sem ousar interagir. Câmeras remotas enviaram imagens de paisagens alienígenas além do portal—florestas cobertas por névoa negra, montanhas flutuantes e desertos de vidro brilhante.
Mas então, o primeiro aparecimento aconteceu.
Uma criatura emergiu dentro do portal no Japão. Ela era pequena, quase insignificante—um lagarto com escamas luminescentes que soltava faíscas ao caminhar. As pessoas o trataram como uma descoberta científica, algo digno de museus. Mas, dias depois, criaturas maiores começaram a surgir. E depois vieram as hordas.
A Terra não estava preparada.
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Portais não eram permanentes. Isso foi descoberto da pior maneira.
Após o primeiro surgimento, um portal localizado na Índia "quebrou." Ninguém havia entrado para explorá-lo, e no décimo quarto dia, ele se estilhaçou como vidro, liberando um fluxo incontrolável de monstros. Eles atacaram sem piedade, reduzindo vilarejos inteiros a ruínas antes que qualquer resposta militar fosse organizada.
Isso marcou o início de um padrão terrível.
Cada portal, caso não fosse explorado e "limpo"—derrotando o monstro-chefe em seu interior—dava origem a uma quebra, liberando suas criaturas no mundo.
Forças militares globais tentaram reagir. Aviões, tanques e mísseis foram usados em combates desesperados. Mas os monstros não eram como nada que a humanidade havia enfrentado antes. Muitos tinham habilidades que desafiavam as leis da física: se regeneravam, manipulavam elementos, ou simplesmente eram grandes demais para serem contidos.
As perdas foram devastadoras. Governos caíram, cidades inteiras foram abandonadas, e o medo tornou-se constante.
Foi nesse caos que o Sistema apareceu.
Em uma manhã de outubro, pessoas ao redor do mundo começaram a relatar vozes em suas cabeças. A mensagem era simples:
" "Você foi escolhido."
Diante de seus olhos, um painel translúcido apareceu, exibindo informações sobre seus nomes, níveis, habilidades e uma nova designação: Caçador. Essas pessoas, aparentemente aleatórias, tornaram-se as únicas capazes de entrar nos portais e enfrentá-los diretamente.
Ao contrário dos soldados ou civis comuns, os caçadores podiam aprimorar suas habilidades, ganhar recompensas por missões e utilizar equipamentos que desafiavam a lógica.
Eles eram, essencialmente, as últimas esperanças da humanidade.
Kang Seungho era uma dessas pessoas, um caçador. Um homem coreano de 24 anos, no auge de sua juventude. A não ser pelo fato de que seu Rank era o mais baixo de todos, um simples Rank F, um caçador fraco, quase insignificante.
Mas ele nunca imaginou que o título de "insignificante" seria um dia substituído por algo muito mais horrível: esquecido
Quando o Sistema o escolheu, ele não sentiu glória nem orgulho, apenas uma confusão misturada com medo. As palavras no painel brilhante pareciam impessoais, frias:
" Rank F.
Habilidades:
[Fortitude Menor].
[Agilidade Básica].
Sua vida como caçador foi uma sequência de fracassos. Ele mal conseguia completar Fendas de Rank F, sendo constantemente relegado às tarefas mais insignificantes, como recolher materiais ou eliminar monstros menores que já estavam à beira da morte.
Então, veio o portal de Rank ???.
Era uma anomalia. Até o Sistema parecia hesitante em lidar com aquilo, recusando-se a atribuir uma classificação exata.
" Rank ???. Informação insuficiente. Alta probabilidade de quebra.
Essa era a única descrição fornecida.
Mesmo assim, centenas de caçadores foram enviados para enfrentá-lo. Afinal, o risco de uma quebra de portal desse nível era inimaginável.
Líderes mundiais uniram forças, enviando os melhores caçadores que o Sistema havia designado. Seungho, no entanto, não fazia parte da equipe de elite. Ele estava no local errado, na hora errada.
Quando o portal começou a emitir uma vibração que fez o chão tremer, os caçadores reunidos recuaram instintivamente. Seungho, que estava muito perto, não teve tempo de fugir. Uma onda de energia o envolveu, arrastando-o para o coração da fenda dimensional.
Ao contrário dos outros, que se preparavam com armaduras, habilidades e equipamentos, ele entrou desarmado, despreparado e sozinho.
O Abismo.
Assim ele passou a chamar aquele lugar.
A fenda pulsava de vida, mas era uma vida que queria vê-lo morto. O chão sob seus pés cintilava com energia instável, suas rachaduras brilhando fracamente com uma luz que oscilava entre o foco e o desfoque. Torres de obsidiana erguiam-se para o céu carmesim, suas superfícies marcadas por runas que pulsavam como um coração. Acima, as nuvens giravam em tons de violeta e preto, opressivas e sufocantes.
Ele limpou o suor da testa, sua mão pegajosa de sangue e icor negro. Pela milésima vez, seu olhar vacilou para a notificação flutuante que pairava na beira de sua visão.
[Missão Diária Concluída.
Recompensa: 1 Ponto de Habilidade.]
Ele soltou um riso curto e sem humor. "Um ponto de habilidade. Ótimo. Isso vai resolver todos os meus problemas."
Seungho ajustou o aperto na espada, o punho escorregadio de suor e sangue. Seus braços tremiam, o cansaço pesando em cada movimento, mas ele não podia parar—não ali. Não ainda. Com uma expressão fechada, ele escaneou o local mais uma vez.
O silêncio era antinatural, pesado e opressivo, quebrado apenas pelo zumbido sutil da energia percorrendo o chão. Por um momento, seus instintos diziam que tinha acabado. Sem mais inimigos, sem mais ataques. Mas Seungho aprendera da pior forma a não confiar na paz naquele lugar.
Arrastando seu corpo abatido em direção a um pedaço de chão liso, ele se encostou em um dos pilares brilhantes. A energia que irradiava era levemente quente, uma sensação que quase chegava a ser reconfortante, se não fosse tão alienígena. Ele encostou a cabeça na superfície fria e soltou um suspiro trêmulo.
"Talvez hoje seja o dia," murmurou ele, metade para si mesmo, metade para qualquer força cruel que o mantinha ali. "Talvez isso finalmente termine."
As palavras pairaram no ar, sem resposta. O céu carmesim acima girava em padrões preguiçosos e ameaçadores, como se zombasse de sua esperança.
Mas então algo se moveu.
Os olhos de Seungho se abriram de repente, seu corpo enrijecendo enquanto a adrenalina inundava suas veias. Ele agarrou sua espada, erguendo-a com mãos trêmulas. A lâmina era pouco mais que um pedaço de metal rombudo a essa altura, mas era melhor que nada.
Do canto de sua visão, um brilho fraco emergiu. Sua primeira reação foi pensar em outro monstro, alguma nova abominação enviada pela Fenda para atormentá-lo ainda mais. Mas, à medida que a figura se aproximava, Seungho hesitou.
Não era como os outros.
Pequena e etérea, a criatura pairava logo acima do chão. Suas asas translúcidas batiam nervosamente, lançando brilhos suaves pelo chão irregular. Seu corpo brilhava levemente, uma silhueta infantil cercada por um halo de energia tênue.
Seungho encarou, sem piscar. Sua mente, embotada por anos de violência e monotonia, lutava para processar o que estava vendo.
"Você só pode estar brincando," murmurou ele, abaixando ligeiramente sua arma.
A criatura congelou, seus grandes olhos brilhantes fixos nele. Suas asas batiam mais rápido, de forma errática, como se pronta para fugir a qualquer segundo.
"Você não deveria estar aqui!" guinchou, sua voz aguda e trêmula.
Seungho piscou, a absurdidade da afirmação rompendo seu cansaço. "Ah, é? E onde exatamente é 'aqui'?"
A criatura hesitou, torcendo suas pequenas mãos. "E-e-essa fenda! Você não deveria estar vivo! Se os superiores descobrirem, eu estou perdido!"
"Superiores?" repetiu Seungho, apertando novamente o punho da espada. "Do que você está falando? Quem é você?"
A criatura inflou o peito, tentando parecer autoritária. Seu brilho aumentou levemente, mas o efeito foi mais cômico do que intimidador.
"Eu sou um Administrador do Sistema Primordial!" declarou, embora sua voz tenha falhado na última palavra.
Seungho encarou em branco. "Certo. E?"
A criatura murchou, suas asas caindo levemente. "E... você não deveria estar nesta fenda," admitiu, com a voz pequena.
"Estou aqui há milhares de anos," disse Seungho com firmeza. "O que você quer dizer com 'não deveria'?"
O Administrador se encolheu, olhando para todos os lados, menos para ele. "H-houve um pequeno erro. Um erro muito pequeno nos cálculos do sistema."
A paciência de Seungho, já por um fio, se rompeu. Ele se levantou, seu corpo tremendo de exaustão e raiva. "Um erro?" ele sibilou. "Você está me dizendo que fiquei preso nesse pesadelo por milênios por causa de um erro?"
A criatura recuou, suas asas batendo em pânico. "S-sim, mas eu posso consertar! Vou consertar agora!"
Seungho abriu a boca para responder, mas antes que pudesse dizer uma palavra, o Administrador levantou uma mão brilhante. O ar ao redor deles mudou, crepitando com energia.
"Espere—"
Uma luz cegante o envolveu, e o chão desapareceu sob seus pés.