Acordei cedo na manhã seguinte, nervoso ao pensar no almoço com Alys.
Sabendo que seria inútil tentar dormir de novo, fui para a Ficiaria. Os gastos extravagantes da noite anterior tinham me deixado com exatos três lumens no bolso, e eu estava ansioso por tirar proveito de meu cargo recém-conquistado.
Em geral, eu trabalhava à noite na Ficiaria. Ela era um lugar diferente de manhã. Havia apenas umas 15 ou 20 pessoas cuidando de seus projetos individuais. À noite, costumava ter o dobro de gente. Kelvin estava em seu gabinete, como sempre, porém o clima era mais relaxado: movimentado, mas não uma correria barulhenta.
Cheguei até a ver Faela num canto da oficina, cinzelando cuidadosamente um pedaço de obsidiana do tamanho de uma broa grande. Não era de admirar que eu nunca a tivesse visto por lá, se era seu hábito estar na oficina tão cedo.
Apesar da advertência de Monet, resolvi fazer um lote de emissores de luz azul como meu primeiro projeto. Era um trabalho complicado, porque exigia o uso do alcatrão-de-osso, mas as lâmpadas se venderiam muito depressa e o processo inteiro só me consumiria quatro ou cinco horas de trabalho cuidadoso.
Não só poderia ser feito a tempo de me encontrar com Alys para almoçar na Foles como talvez eu pudesse conseguir um pequeno adiantamento com Kelvin, para ter algum dinheiro no bolso ao me encontrar com ela.
Reuni as ferramentas necessárias e me instalei numa das capelas de exaustão de vapores na parede da direita. Escolhi um lugar próximo de uma cuba, um dos tanques de 500 galões, feitos de vidro duplamente reforçado que se espalhavam a intervalos por toda a oficina.
Se a pessoa derramasse alguma coisa perigosa sobre o corpo ao trabalhar numa das capelas, poderia simplesmente puxar a manivela do chuveiro e lavar a parte afetada com um jato de água fria.
É claro que eu jamais precisaria da cuba se tivesse cuidado. Mas, pelo sim, pelo não, era bom tê-la por perto.
Depois de preparar a capela de exaustão, fui até a mesa onde ficava o alcatrão-de-osso. Mesmo sabendo que ele não era mais perigoso que uma serra para cortar pedras ou a roda de sinterização, eu achava inquietante aquele cilindro de metal polido.
E havia alguma coisa diferente nesse dia. Chamei a atenção de um dos artífices mais experientes quando ele passou por mim.
Jaxon tinha aquela aparência abatida comum à maioria dos artífices em meio a grandes projetos, como se andasse adiando o sono até terminar tudo.
— Era para haver tanto gelo assim? — perguntei-lhe, apontando para o cilindro de alcatrão.
As bordas estavam cobertas por finos tufos, brancos feito geada, como pequenos arbustos. O ar em volta do metal, aliás, chegava a ondular como frio.
Jaxon deu uma olhadela e encolheu os ombros.
— É melhor frio demais que frio de menos — disse, e deu um risinho sem humor. — Hi-hi-hi. Catapum!
Não pude deixar de concordar, e achei que talvez aquilo tivesse algo a ver com o fato de a oficina ser mais fria de manhã cedo. Ainda não haviam acendido nenhum dos fornos e a maioria das forjas estava com o fogo abafado e lento.
Agindo com cuidado, refiz mentalmente o processo de decantação, para me certificar de não esquecer nada. Fazia tanto frio que meu bafo pairava branco no ar. O suor em minhas mãos congelou meus dedos nos fechos do cilindro, do mesmo jeito que a língua de uma criança curiosa gruda numa estaca de gelo no auge do inverno.
Transferi apenas uma onça do líquido grosso e oleoso para o frasco de pressão e fixei prontamente a tampa. Depois voltei para a capela de exaustão e comecei a preparar meu material. Passados alguns minutos tensos, iniciei o longo e meticuloso processo de preparar e aplicar o lubrificante num conjunto de emissores azuis.
Minha concentração foi interrompida, duas horas depois por uma voz às minhas costas. Não foi particularmente alta, mas veio num tom sério que nunca era ignorado na Ficiaria. Ela disse:
— Ai, meu Deus.
Por causa de meu trabalho do momento, a primeira coisa para a qual olhei foi o cilindro de alcatrão-de-osso. Senti-me perpassar por uma onda de suor frio ao ver o líquido preto vazando por um canto, escorrendo pela perna da bancada e se acumulando numa poça no chão.
A madeira grossa da perna da mesa fora quase inteiramente corroída, e ouvi um leve borbulhar e estalar quando o líquido acumulado no chão começou a ferver. Só consegui pensar no que dissera Kelvin durante a demonstração: além de ser sumamente corrosivo, o reagente, em estado gasoso, inflama-se ao entrar em contato com o ar...
Bem na hora em que me virei, a perna da mesa cedeu e a bancada começou a se inclinar. O cilindro de metal polido caiu. Ao bater no piso de pedra, o metal estava tão gelado que simplesmente não rachou ou se amassou, mas se estilhaçou feito vidro.
Jorraram galões do líquido escuro, formando uma grande poça no piso da oficina, que foi se enchendo de estalidos e borbulhas à medida que o alcatrão-de-osso se espalhava pelas pedras quentes e começava a ferver.
Muito tempo antes, a pessoa inteligente que fizera o projeto da Ficiaria tinha instalado umas duas dúzias de ralos na oficina para ajudar a limpar e controlar os derramamentos de líquidos. Além disso, o piso de pedra ondulava num padrão suave de altos e baixos, a fim de guiar os líquidos derramados para esses ralos.
Em função disso, tão logo o cilindro se estilhaçou, a grande quantidade de líquido oleoso derramado começou a correr em duas direções diferentes, deslocando-se para dois ralos. Ao mesmo tempo, continuou a ferver, formando nuvens densas e baixas, pretas como piche, cáusticas e prestes a explodir em chamas.
Aprisionada entre esses dois braços de névoa escura que se abriam tinha ficado Faela, que trabalhava sozinha numa bancada afastada num canto da oficina. Ela permaneceu imóvel, com a boca entreaberta de susto.
Usava uma roupa prática para o trabalho na oficina: calças leves e uma blusa de linho fino, com mangas até o cotovelo. O cabelo comprido e escuro estava preso num rabo-de- cavalo, mas ainda lhe descia pelas costas até quase a cintura.
Ela se incendiaria como uma tocha.
O salão começou a se encher de uma barulheira frenética quando as pessoas perceberam o que estava acontecendo. Elas berravam ordens, ou simplesmente gritavam de pânico. Deixavam cair ferramentas e derrubavam projetos parcialmente acabados em sua correria de um lado para outro.
Faela não gritara nem pedira socorro, o que significava que ninguém além de mim havia notado o perigo que corria. Se a demonstração de Kelvin podia servir de indicação, calculei que toda a oficina poderia tornar-se um mar de chamas e névoa cáustica em menos de um minuto.
Não havia tempo...
Corri os olhos pelos projetos espalhados na bancada mais próxima, à procura de alguma coisa que pudesse ter serventia, mas não havia nada: um amontoado de blocos de basalto, rolos de arame de cobre, um globo de vidro parcialmente gravado que provavelmente se destinava a se tornar uma das lamparinas de Kelvin...
E de repente, sem a menor dificuldade, compreendi o que tinha de fazer.
Peguei o globo de vidro e o espatifei num dos blocos de basalto. Ao se estilhaçar, ele deixou em minha mão um caco recurvado, mais ou menos do tamanho de minha palma. Com a outra mão peguei minha capa na mesa e passei pela capela de exaustão.
Comprimi o polegar contra a borda do caco de vidro e experimentei a sensação incômoda de um repuxar, seguida por uma dor aguda. Sabendo que havia sangrado, borrei o vidro com o polegar e pronunciei as palavras de uma conexão por afinidade. Ao parar diante da cuba, deixei o vidro cair no chão, concentrei-me e pisei nele com força, esmagando-o com o salto do sapato.
Veio um frio lancinante, diferente de tudo o que eu já havia sentido. Não era o simples frio que experimentamos na pele e nos membros num dia de inverno. Atingiu meu corpo como uma trovoada. Senti-o na língua, nos pulmões e no fígado.
Mas consegui o que queria. O vidro duplamente reforçado do tanque se rachou em milhares de fraturas, como uma teia de aranha, e fechei os olhos no instante em que explodiu: quinhentos galões de água me golpearam como um punho gigantesco, fazendo-me recuar e me encharcando até os ossos. Depois saí correndo por entre as mesas.
Por mais rápido que fosse, não fui ligeiro o bastante. Uma ofuscante chama carmesim se inflamou num canto da oficina quando a névoa começou a pegar fogo, soltando estranhas línguas angulosas de violentas labaredas vermelhas. O fogo aqueceria o resto do alcatrão, fazendo-o ferver mais depressa. Isso traria mais névoa, mais fogo e mais calor.
Enquanto eu corria, o fogo se alastrou. Seguiu as duas trilhas deixadas pelo alcatrão-de-osso ao correr para os ralos. As chamas subiam com espantosa ferocidade, erguendo duas cortinas de fogo e isolando o canto oposto da oficina. Já estavam da minha altura, e continuavam a crescer.
Faela tinha conseguido sair de trás da bancada e andara depressa ao longo da parede, em direção a um dos ralos do piso. Como o alcatrão-de-osso estava descendo pela grade, havia um espaço livre de chamas e de névoa junto à parede.
A garota estava prestes a disparar por ali quando a névoa preta começou a fervilhar para fora da grade. Ela soltou um grito curto de susto ao recuar. A névoa se inflamou ao ferver, abraçando tudo numa massa agitada de chamas.
Passei finalmente pela última mesa. Sem reduzir o passo, prendi o fôlego, fechei os olhos e pulei por cima da névoa, tentando evitar que aquela coisa pavorosa e corrosiva encostasse em minhas pernas. Senti uma onda breve e intensa de calor nas mãos e no rosto, mas minha roupa encharcada impediu que eu me queimasse ou pegasse fogo.
Como estava de olhos fechados, aterrissei de mau jeito, batendo com o quadril no tampo de pedra de uma bancada. Ignorei a dor e corri para Faela.
Ela havia começado a recuar do fogo para a parede mais externa da oficina, mas, nesse momento, ficou olhando para mim, com as mãos meio levantadas, num gesto de proteção.
— Abaixe os braços! — gritei, enquanto corria para onde ela estava e abria a capa encharcada com as duas mãos.
Não sei se ela me ouviu acima do rugir das labaredas, mas, como quer que fosse, compreendeu. Baixou as mãos e se aproximou da capa.
Ao cobrir o último trecho que nos separava, olhei para trás e vi que o fogo ia aumentando ainda mais depressa do que eu havia esperado. A névoa se grudava ao chão, com mais de 30 centímetros de altura, negra como piche. As chamas eram tão altas que eu não conseguia enxergar o outro lado, muito menos saber que espessura já teria a muralha de fogo.
Pouco antes de Faela encostar na capa, levantei a peça molhada para envolver completamente sua cabeça.
— Terei que carregá-la para fora — gritei, enquanto a embrulhava na capa. — Você vai queimar as pernas se tentar passar por ali.
Ela respondeu alguma coisa, mas o som foi abafado pelas camadas de tecido molhado e não consegui discernir as palavras em meio ao ronco das labaredas.
Peguei-a no colo, não pela frente, como faria um Príncipe Encantado saído de um livro de histórias, mas jogando-a por cima do ombro, como quem carrega um saco de batatas. O quadril de Faela se firmou com força em meu ombro e disparei em direção ao fogo.
O calor me açoitou o corpo pela frente e levantei o braço livre para proteger o rosto, rezando para que a umidade das calças protegesse minhas pernas do que havia de pior na natureza corrosiva da névoa.
Respirei fundo no instante exato de chegar ao fogo, mas o ar estava pungente. Num reflexo, tossi e tornei a engolir outra golfada de ar quente, já entrando na muralha de chamas. Senti o frio cortante da névoa na parte inferior das pernas e o fogo a meu redor, por todos os lados, enquanto corria tossindo e engolindo mais ar envenenado.
Fiquei tonto e senti um gosto de amônia. Uma parte distante e racional da minha mente pensou: é claro, para torná-lo volátil.
Depois, nada.