Mais tarde, nessa noite, eu estava tocando na Grilo quando avistei uma bela moça sentada a uma das mesas lotadas dos fundos. Tinha uma semelhança notável com Alys, mas eu sabia que isso era fruto da minha imaginação. Eu torcia tanto para vê-la que já fazia dias que a vislumbrava pelos cantos dos olhos.
Minha segunda olhadela me revelou a verdade...
Era Alys cantando As filhas do padoeiro com metade dos fregueses da Grilo. Ela me viu olhando em sua direção e deu um adeusinho.
A tal ponto seu aparecimento me apanhou de surpresa que esqueci por completo o que meus dedos executavam, e minha canção se desfez em pedaços. Todos riram, e fiz uma mesura profunda para disfarçar o embaraço.
Eles passaram cerca de um minuto me aplaudindo e vaiando em doses iguais, mais satisfeitos com meu fiasco do que tinham ficado com a música em si. Assim é a natureza humana.
Esperei que desviassem a atenção de mim e me aproximei com ar descontraído de onde Alys estava sentada.
Ela se levantou para me cumprimentar.
— Eu soube que você estava tocando deste lado do rio. Mas não imagino como possa conservar o emprego, se desmoronar toda vez que uma garota lhe der uma piscadela.
Senti-me enrubescer um pouco.
— Não acontece com toda essa frequência.
— A piscadela ou o desmoronamento?
Sem conseguir pensar numa resposta, senti que estava ficando mais vermelho, e ela riu.
— Por quanto tempo você vai tocar hoje? — perguntou-me.
— Não muito mais — menti. Eu devia pelo menos mais uma hora ao Grilo.
Alys animou-se.
— Ótimo. Venha comigo depois, preciso de alguém com quem caminhar.
Mal acreditando em minha sorte, fiz-lhe uma cortesia:
— Ás suas ordens, com certeza. Deixe-me terminar.
Aproximei-me do bar, onde Grilo e duas das moças que atendiam às mesas estavam ocupados servindo bebidas.
Sem conseguir chamar sua atenção, segurei-o pelo avental quando passou apressado por mim. Ele parou com um tranco e por pouco não derramou uma bandeja de bebidas numa mesa cheia de fregueses.
— Pelo corpo de Deus, garoto! O que há com você?
— Grilo, tenho que sair. Hoje não posso ficar até o final.
Ele fechou a cara.
— Uma clientela como essa não aparece quando a gente quer. E não vai ficar aqui sem uma musiquinha ou alguma coisa para se distrair.
— Eu toco mais uma música. Bem comprida. Mas, depois disso, tenho que sair — repeti, dando-lhe um olhar desesperado. — Juro que eu recompenso você.
Grilo me olhou com mais atenção.
— Está metido em alguma encrenca?
Balancei a cabeça.
— Então é uma garota — afirmou.
Virou a cabeça ao som das vozes que pediam mais bebida, depois me despachou com um aceno vigoroso:
— Está bem, vá. Mas trate de tocar uma música boa e comprida. E você fica me devendo.
Fui até a frente da sala e bati palmas para chamar a atenção do público. Quando o salão ficou moderadamente quieto, comecei a tocar.
A execução do terceiro acorde, todos sabiam o que era: Criaferro curtumeiro. A canção mais velha do mundo. Tirei as mãos do alaúde e comecei a bater palmas. Em pouco tempo todos marcavam o ritmo em uníssono, batendo os pés no chão e os canecos nos tampos das mesas.
O som era quase ensurdecedor, mas diminuiu como convinha quando cantei o primeiro verso. Em seguida regi o refrão, com todos cantando juntos, alguns com suas próprias letras, outros em seu próprio tom.
Andei até uma mesa próxima, ao terminar o segundo verso, e tornei a reger o refrão.
Depois fiz um gesto expectante para que alguém ali cantasse um verso de sua autoria. Os fregueses levaram alguns segundos para entender o que eu queria, mas a expectativa do salão inteiro foi o bastante para incentivar um dos estudantes mais tímidos a berrar um verso seu, o que lhe rendeu aplausos e vivas estrondosos. Então, quando todos entoaram o refrão mais uma vez, desloquei-me para outra mesa e fiz a mesma coisa.
Não demorou muito para que os fregueses tomassem a iniciativa de cantar seus próprios versos quando o refrão terminava. Aproximei-me de onde Alys esperava, junto à porta da saída, e escapulimos pé ante pé para as primeiras luzes do crepúsculo.
— Isso foi inteligente — comentou ela ao começarmos a nos afastar da taberna. — Quanto tempo acha que eles continuarão cantando?
— Tudo vai depender da rapidez com que o Grilo conseguir servir as bebidas para o todo mundo — respondi.
Parei na entrada da ruela que separava os fundos da taberna do Grilo da padaria vizinha:
— Se você puder me dar licença um instante, preciso guardar meu alaúde.
— Num beco? — ela perguntou.
— No meu quarto — retruquei.
Com passos leves, subi depressa pela lateral do prédio. Pé direito no barril de coletar água da chuva, pé esquerdo no parapeito da janela, mão esquerda no cano de ferro do escoamento e um impulso para alcançar a borda do telhado do primeiro andar. Pulei por cima da viela para o telhado da padaria e sorri quando Alys prendeu a respiração, assustada.
Dali, foi uma caminhada rápida para cima, e saltei de novo sobre o beco para o telhado do segundo andar da Grilo. Abrindo o trinco da minha janela, estiquei o braço para dentro e depositei delicadamente o alaúde em minha cama, antes de descer pelo mesmo caminho da subida.
— O Grilo lhe cobra um lumen toda vez que você usa a escada? — perguntou Alys quando me aproximei do chão.
Desci do barril e limpei as mãos nas calças.
— Eu entro e saio em horários estranhos — expliquei, descontraído, acertando o passo com o dela. — Estou certo ao entender que você está à procura de um cavalheiro para acompanhá-la num passeio esta noite?
Um sorriso curvou seus lábios quando ela me olhou de esguelha.
— Perfeitamente.
— É uma pena. Não sou nenhum cavalheiro — suspirei.
O sorriso de Alys alargou-se.
— Eu acho que você chega bem perto.
— Gostaria de chegar mais perto ainda.
— Então venha andando comigo.
— Seria um grande prazer. Mas... — Reduzi um pouco o passo e meu sorriso se desfez numa expressão mais séria. — E o Balken?
Os lábios de Alys se comprimiram.
— Ele lhe disse ter direitos sobre mim?
— Bem, não exatamente. Mas há certos protocolos envolvidos...
— Um acordo entre cavalheiros? — perguntou ela, em tom audacioso.
— Está mais para honra entre ladrões, se você preferir.
Alys fitou-me nos olhos e disse, com ar sério:
— Vanitas, me roube.
Curvei-me numa mesura e fiz um gesto largo para o mundo.
— Às suas ordens — assenti. Continuamos a caminhar sob a lua cheia, que fazia as casas e lojas ao redor parecerem úmidas e pálidas. — E como vai o Balken, afinal? Faz algum tempo que não o vejo.
Alys descartou a lembrança com um aceno.
— Nem eu. Não por falta de tentativas da parte dele.
Animei-me um pouco.
— É mesmo?
Ela revirou os olhos.
— Rosas! Juro que os homens tiram todo o seu romantismo do mesmo livro surrado. Flor é uma boa coisa, uma coisa gentil para se oferecer a uma dama. Porém são sempre rosas, sempre vermelhas, e sempre perfeitos botões desabrochando, quando eles conseguem obtê-los — disse e se virou para mim. — Quando me vê, você pensa em rosas?
Fui esperto o bastante para negar com a cabeça, sorrindo.
— Então, em quê? Se não é uma rosa, o que você vê?
Ela me pegou.
Olhei-a uma vez, de cima a baixo, como se tentasse decidir.
— Bem — respondi devagar —, o problema é que, ao oferecer flores a uma moça, a escolha pode ser interpretada de muitas maneiras diferentes. Um homem pode lhe dar uma rosa por achar que você é bonita, ou por imaginar que a tonalidade, a forma ou a suavidade dela se parecem com seus lábios. As rosas são caras e talvez ele pretenda mostrar, com um presente valioso, que você lhe é preciosa.
— Você faz uma bela defesa das rosas. Mas persiste o fato de que não gosto delas. Escolha outra flor que combine comigo.
— Mas, o que é combinar? Quando um homem lhe dá uma rosa, o que você vê pode não ser o que ele pretende dizer. Talvez você ache que ele a considera delicada ou frágil. Talvez antipatize com um pretendente que a considere toda meiguice e nada mais. Talvez o cabo tenha espinhos e você presuma que ele a julga propensa a ferir a mão que se apressar demais a tocá-la. Mas, se ele retirar os espinhos, talvez você ache que ele não gosta de alguém capaz de se defender com rispidez. Há inúmeras maneiras pelas quais se pode interpretar uma coisa. O que deve fazer o homem cuidadoso?
Alys me olhou de soslaio.
— Se o homem fosse você, acho que desfiaria um rosário de palavras inteligentes e torceria para a pergunta ser esquecida — disse ela, e inclinou a cabeça. — Mas não foi. Que flor você escolheria para mim?
— Muito bem, deixe-me pensar — retruquei, virando-me para olhá-la e novamente desviando o rosto. — Façamos uma lista. O dente-de-leão poderia servir: é luminoso, e há uma luminosidade em você. Mas o dente-de-leão é comum, e você não é uma criatura comum. Das rosas nós já falamos e as descartamos. Doce-amarga, não. Urtiga... talvez.
Alys fez uma careta, fingindo-se ofendida, e me mostrou a língua.
Bati com um dedo nos lábios, como se reconsiderasse:
— Tem razão; a não ser por sua língua, ela não combina com você.
Alys deu uma bufadela e cruzou os braços.
— Aveia-brava! — exclamei, arrancando-lhe uma risada por causa da surpresa. — A impetuosidade dela combina com você. Mas é uma flor pequena e tímida. Por essas e outras razões mais óbvias, acho que deixaremos de lado a aveia-brava.
— Que pena.
— A margarida é boa — prossegui com ímpeto, sem deixar que ela me distraísse. — Alta e esguia, disposta a crescer à beira das estradas. Uma flor robusta, não muito delicada. A margarida é independente. Acho que combinaria com você. Mas continuemos com nossa lista. A íris? Muito espalhafatosa. O cardo-selvagem? Distante demais. A violeta? Efêmera demais. O trílio? Hmmm, é uma possibilidade. Uma bela flor. Não gosta de cultivo. A textura das pétalas... — comentei, fazendo o gesto mais ousado de minha curta nova vida e roçando delicadamente o lado de seu pescoço com dois dedos — ...é fina o bastante para combinar com a sua pele, com pouca diferença. Mas ela fica muito perto do chão.
— Você me trouxe um buquê e tanto — disse Alys, em tom gentil.
Inconscientemente, levou a mão ao lado do pescoço onde eu a havia tocado, pousou-a ali por um instante e a deixou cair.
Bom ou mau sinal? Estaria afastando o meu contato, ou pressionando-o mais junto ao corpo? Enchi-me de uma insegurança mais intensa do que antes e resolvi seguir em frente, sem outros riscos flagrantes.
— Celária.
Alys parou e se virou para mim.
— Tudo isso e você escolhe uma flor que não conheço? O que é celária? Por quê?
— É uma flor de um vermelho intenso que cresce numa trepadeira forte. Tem folhas escuras e delicadas. A planta viceja melhor à sombra, mas a flor em si encontra raios de sol perdidos sob os quais florescer — expliquei.
Olhei para Alys:
— Ela combina com você. Que tem muito de sombra e luz. Ela cresce em florestas fechadas e é rara, porque só quem é habilidoso consegue cuidar dela sem feri-la. Tem um perfume maravilhoso e é muito procurada, mas raramente encontrada — concluí. Parei e fiz questão de examiná-la. — É, já que sou forçado a escolher, eu escolheria a celária.
Ela me olhou, depois desviou o rosto.
— Você me dá importância demais.
Sorri.
— Talvez você se dê importância de menos.
Alys captou um pedaço do meu sorriso e o devolveu luminosamente.
— Você acertou mais no começo da lista. Margaridas, simples e meigas. As margaridas são o modo de conquistar meu coração.
— Vou me lembrar — afirmei, e recomeçamos a andar. — Que flor você me traria? — provoquei-a, pensando apanhá-la desprevenida.
— Um botão de salgueiro — disse ela, sem um segundo de hesitação.
Passei um bom momento pensando.
— Os salgueiros tem botões?
Alys olhou para cima e para o lado, pensando.
— Acho que não.
— Então é um raro prazer ganhar um. — Ri. — Por que um botão de salgueiro?
— Você me lembra um salgueiro — disse ela sem pestanejar. — Forte, com raízes profundas e oculto. Move-se com fluidez quando vem a tempestade, porém nunca para mais longe do que deseja.
Levantei as mãos, como se aparasse um golpe.
— Pare com essas palavras doces — protestei. — Você está tentando dobrar-me à sua vontade, mas não vai funcionar. Para mim, sua lisonja não passa de vento!
Alys fitou-me por um instante, como que para se certificar de que meu discurso havia terminado.
— Mais do que todas as outras árvores — disse-me, com a curva de um sorriso na boca elegante —, o salgueiro se move ao sabor do vento.
As estrelas me informaram que cinco horas haviam se passado. Mas não parecia haver transcorrido praticamente tempo algum ao chegarmos ao Toco de Carvalho, onde ela estava hospedada em Torrente.
À porta, houve um momento que durou uma hora: o momento em que pensei em beijá-la. Já me sentira tentado por essa ideia umas 10 vezes enquanto conversávamos na estrada; ao pararmos na Ponte de Pedra para contemplar o rio ao luar, sob uma tília num dos jardins de Torrente...
Nessas ocasiões eu sentia uma tensão crescer entre nós, algo quase palpável. Quando ela me olhava de lado com seu sorriso secreto, a inclinação da cabeça e o jeito de quase virar de frente para mim faziam-me pensar que devia estar esperando que eu... fizesse alguma coisa. Que a envolvesse com um dos braços? Que a beijasse? Como era possível saber? Como se podia ter certeza?
Eu não tinha.
Por isso, resistia à atração dela. Não queria ser presumido demais, não queria ofendê-la nem me embaraçar. E mais, a advertência de Droch me deixara inseguro. Talvez o que eu sentia não fosse nada além do encanto natural de Alys, de seu carisma.
Como todos os garotos da minha idade, eu era um idiota em matéria de mulheres. A diferença entre mim e os outros era que eu tinha uma dolorosa consciência da minha ignorância, enquanto outros, como Leif, saíam metendo os pés pelas mãos e fazendo papel de bobos com seu estilo desajeitado de cortejar.
Eu não podia pensar em nada pior do que tomar uma liberdade indesejada com Alys e fazê-la dar risada da inépcia de minha tentativa. Não há nada a que eu tenha mais horror do que fazer coisas malfeitas.
Assim, despedi-me e a observei entrar na porta lateral da hospedaria Toco de Carvalho. Respirei fundo e mal pude me impedir de dar gargalhadas ou sair dançando. Estava totalmente impregnado dela, do aroma do vento em seu cabelo, do som de sua voz, do modo como o luar lançava sombras em seu rosto.
Depois, aos poucos, repus os pés no chão. Antes de dar seis passos, murchei como uma vela quando o vento diminui. Refazendo o trajeto pela cidade, passando por casas adormecidas e hospedarias às escuras, meu estado de ânimo oscilou entre a euforia e a dúvida no espaço de três inspirações curtas.
Eu tinha estragado tudo. Todas as coisas que dissera, coisas que haviam parecido muito inteligentes no momento, eram, na realidade, as piores que um tolo poderia dizer. Nesse exato momento ela devia estar lá dentro suspirando de alívio por finalmente ter-se livrado de mim.
Mas Alys havia sorrido. Dado risadas.
Não se lembrara do nosso primeiro encontro na estrada de Notrean. Eu não podia ter-lhe causado uma grande impressão.
Me roube, ela dissera.
Eu devia ter sido mais ousado e lhe dado um beijo no final. Devia ter sido mais cauteloso.
Falara demais. Dissera muito pouco.