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A Crônica do Contador de Histórias

Após uma vida de poucas conquistas e repleta de arrependimentos, Vanitas recebe uma segunda chance ao reencarnar como um bebê em um mundo onde magia e espadas fazem parte do cotidiano. Determinado a deixar seu passado para trás, ele abraça essa nova chance, vivendo com uma trupe itinerante de artistas da corte. Entre apresentações e jornadas por novas terras, Vanitas aprimora seu talento nato para o alaúde, mas é na magia que seu verdadeiro poder desperta. Sob a tutela da poderosa Arcanista Marceline, ele mergulha nos segredos da simpatia, a arte mágica que, desde o início, acendeu seu desejo de invocar o vento. No entanto, o destino de Vanitas toma um rumo inesperado quando cruza caminho com o enigmático grupo Sombraim, cujos segredos ocultos trazem à tona verdades sombrias sobre o mundo e sobre sua própria reencarnação. Em busca de respostas, Vanitas parte em uma jornada por terras desconhecidas, onde cada nova descoberta o arrasta ainda mais profundamente para os segredos esquecidos da história. Ao longo do caminho ele encontra aliados improváveis, constrói amizades inquebráveis e se apaixona... mas o que realmente aguarda em seu destino é algo que supera tudo isso. Com a chance de mudar o mundo em suas mãos, Vanitas precisa decidir entre seguir o caminho das revelações ou se perder nos laços do amor e da amizade. O peso dessa escolha pode mudar para sempre o curso de sua vida — e a de todos ao seu redor.

porep · Fantaisie
Pas assez d’évaluations
108 Chs

LXXXI. FOLES PT.8

Seria bonito dizer que nossos olhos se cruzaram e eu me desloquei com desenvoltura para o lado dela.

Seria bonito dizer que sorri e falei de coisas agradáveis, em versos rimados de cuidadosa métrica, como o príncipe encantado de um conto de fadas.

Infelizmente, a vida raras vezes tem um roteiro tão bem traçado. A verdade é que simplesmente fiquei parado.

Era Alys, a jovem que eu conhecera na caravana de Rumi muito tempo antes.

Pensando bem, fazia apenas meio ano. Não é muito tempo quando se lê uma história, mas meio ano é um período enorme para se viver, sobretudo quando se é jovem. E nós dois éramos muito jovens.

Avistei Alys quando ela subia o último degrau para o terceiro piso da Foles. Estava cabisbaixa, com uma expressão pensativa, quase tristonha. Virou-se e começou a andar em direção a mim, sem levantar os olhos do chão, sem me ver.

Os meses a haviam modificado. Onde antes fora bonita, agora era também encantadora. Talvez a diferença fosse apenas a de não estar usando a roupa de viagem com que eu a tinha conhecido, e sim um vestido longo. Mas era Alys, sem sombra de dúvida. Reconheci até o anel em seu dedo: uma pedra azul-claro num engaste de prata.

Desde que nos despedíramos, eu tinha guardado pensamentos tolos e afetuosos sobre ela num canto secreto do coração. Pensara em viajar a Ailen para procurá-la, em tornar a encontrá-la por acaso na estrada, em ela ir a meu encontro na Academia. No fundo, porém, sabia que essas ideias não passavam de devaneios infantis. Eu sabia a verdade: nunca mais voltaria a vê-la.

No entanto, ali estava ela, e eu me encontrava totalmente despreparado. Será que sequer se lembraria de mim, do garoto desajeitado que conhecera por alguns dias já fazia tanto tempo?

Alys estava a menos de 4 metros de distância quando ergueu os olhos e me viu. Sua expressão se iluminou, como se alguém tivesse acendido uma vela em seu interior, fazendo-a brilhar com a luz. Correu na minha direção, cruzando a distância entre nós com meia dúzia de passos empolgados, saltitantes.

Por um instante, pareceu correr diretamente para meus braços, mas, no último segundo, deteve-se, olhando de relance para as pessoas à nossa volta. No espaço de meia passada, transformou sua corrida radiante e impetuosa num cumprimento discreto a um braço de distância. O gesto foi gracioso, porém, mesmo assim, ela teve de estender a mão e se equilibrar apoiada em meu peito, para não cair por cima de mim, em função da freada repentina.

Deu-me então um sorriso. Um sorriso caloroso, meigo e tímido, como uma flor desabrochando. Ele foi também amável, franco e levemente embaraçado. Quando Alys me sorriu, senti...

Para ser franco, não sei como poderia descrever a sensação. Mentir seria mais fácil. Eu poderia roubar material de uma centena de histórias e lhe contar uma mentira tão familiar que você a engoliria inteira. Poderia dizer que meus joelhos viraram borracha. Que minha respiração ficou arfante. Mas não seria verdade. Meu coração não disparou, não perdeu o compasso nem parou. Esse é o tipo de coisa que dizem acontecer nas histórias. Tolice. Hipérbole. Conversa fiada.

No entanto...

Vá para fora nos primeiros dias de inverno, depois da primeira onda de frio da estação. Encontre um lago com uma camada de gelo por cima, ainda recente, nova e transparente como o cristal. Perto da margem, o gelo sustentará você.

Deslize para mais longe. Mais longe. Você acabará chegando a um ponto em que a superfície mal consegue suportar seu peso. Ali sentirá o que eu senti. O gelo se estilhaça sob seus pés.

Olhando para baixo, você pode ver as fissuras brancas disparando pelo gelo, feito complexas e loucas teias de aranha. É tudo perfeitamente silencioso, mas você sente as vibrações nítidas e súbitas sob a sola dos pés.

Foi o que aconteceu quando Alys sorriu para mim.

Não quero fazer supor que tenha sido como parar sobre gelo quebradiço, prestes a ceder sob meu corpo. Não. Eu me senti como o próprio gelo, subitamente estilhaçado, com as rachaduras partindo em espiral do ponto em que ela havia tocado meu peito. A única razão por que me mantive inteiro foi que todas as minhas milhares de partes se apoiaram umas nas outras. Se eu me mexesse, temia desfazer-me em cacos.

Talvez seja o bastante dizer que fui capturado por um sorriso. E, embora isso pareça saído de um livro de histórias, é muito próximo da verdade.

As palavras nunca me foram difíceis. Aliás, muito pelo contrário, inúmeras vezes acho fácil demais dizer o que penso, e as coisas correm mal por isso. Entretanto, ali, frente a Alys, fiquei aturdido demais para falar. Não conseguiria dizer uma palavra sensata nem que fosse para salvar minha vida.

Sem que eu refletisse, todos os modos corteses que minha mãe ensinara repetidamente para mim vieram à tona. Estiquei gentilmente o braço e segurei a mão estendida de Alys na minha, como se ela a tivesse oferecido. Depois dei meio passo atrás e fiz uma elegante mesura de três quartos.

Ao mesmo tempo, minha mão livre segurou a ponta de minha capa e a prendeu em minhas costas. Foi uma mesura lisonjeira, cortês, sem ser ridiculamente formal, e segura para um ambiente público como aquele.

E depois?

Beijar a mão era tradicional, mas que tipo de beijo seria apropriado? Em Aturia apenas se curvava a cabeça sobre a mão. As damas cealdamas, como a filha do agiota com quem eu havia conversado, esperavam que o sujeito lhes roçasse de leve os nós dos dedos e produzisse um som de beijo. Em Serenia, o indivíduo encostava os lábios no dorso de seu próprio polegar.

Mas estávamos na República, e Alys não tinha sotaque estrangeiro. Portanto, um beijo franco. Encostei de leve os lábios no dorso de sua mão, pelo tempo necessário para uma inspiração rápida. A pele dela era morna e recendia vagamente a baunilha.

— Às suas ordens, minha senhora — disse-lhe, erguendo o corpo e soltando sua mão.

Pela primeira vez na vida compreendi o verdadeiro objetivo desse tipo de cumprimento formal. Ele proporcionava um roteiro a seguir quando não se tinha absolutamente a menor ideia do que dizer.

— Minha senhora? — ecoou Alys, parecendo meio surpresa. — Muito bem, se você insiste — disse. Segurou o vestido com uma das mãos e se abaixou numa cortesia rápida, a qual, de algum modo, soube fazer parecer graciosa e zombeteira ao mesmo tempo. — Sua senhora.

Ao ouvir sua voz, tive certeza de que minhas suspeitas estavam certas.

Ela era minha Aloise.

— O que está fazendo sozinho aqui no terceiro piso? — perguntou-me, relanceando os olhos pela galeria em forma de lua crescente. — Veio sozinho?

— Eu estava sozinho — respondi. Depois, não conseguindo pensar em mais nada para dizer, tomei emprestado um verso da canção, que ainda estava fresco na memória: — "Agora, eis que a meu lado se ergue a inesperada Aloise."

Ela sorriu, lisonjeada. 

— O que quer dizer com "inesperada"? — indagou.

— Eu estava mais do que convencido de que você já tinha ido embora.

— Foi por pouco — disse ela com ar travesso. — Por duas horas esperei que meu Silver chegasse. — Deu um suspiro trágico, erguendo os olhos para o lado, como uma estátua de santa. — Por fim, tomada pelo desespero, resolvi que desta vez Aloise poderia sair à procura, e que se dane a história.

"E assim, fomos barcos mal iluminados na noite..." — citei.

"...cruzando-se de perto, mas sem saber um do outro" — completou Alys.

— O declínio de Elward — comentei, beirando a fronteira do respeito. — Não há muita gente que conheça essa peça.

— Não sou muita gente.

— Nunca mais me esquecerei disso — repliquei, curvando a cabeça com deferência exagerada.

Ela soltou um grunhido desdenhoso. Ignorei-o e prosseguir, em tom mais sério:

— Não tenho como te agradecer pela ajuda que me deu hoje.

— Não tem? — indagou ela. — Ora, que pena. Quanto pode me agradecer?

Num impulso, levei as mãos ao colarinho da capa e soltei a gaita-de-foles de prata que prendera ali.

— Apenas com isto — respondi, estendendo-lhe meu prêmio.

— Eu... — hesitou Alys, meio surpresa. — Você não pode estar falando sério.

— Sem você eu não a teria conquistado. E não tenho mais nada de valor, a não ser que você queira meu alaúde.

Os olhos escuros de Alys analisaram meu rosto, como se ela não conseguisse decidir se eu estava brincando ou não.

— Acho que você não pode dar sua gaita-de-foles...

— Na verdade, posso. O Radagon mencionou que, se eu a perdesse ou a desse a alguém, teria de ganhar outra — respondi.

Segurei sua mão, abri seus dedos e pus a gaita do talento em sua palma:

— Isso significa que posso fazer o que quiser com ela, e me agrada oferecê-la a você.

Alys contemplou o objeto na palma da mão, depois me fitou com uma atenção resoluta, como se não me houvesse propriamente notado até aquele momento. Por um instante, foi doloroso estar consciente de minha aparência. Eu tinha a capa puída e, mesmo usando minha melhor roupa, estava a um curto passo do andarilho.

Ela tornou a baixar os olhos e, lentamente, fechou a mão em torno da gaita-de-foles. Em seguida, fitou-me com uma expressão indecifrável:

— Acho que talvez você seja uma pessoa maravilhosa.

Tomei fôlego, mas ela foi a primeira a falar:

— No entanto, esse é um agradecimento exagerado. Um pagamento maior do que seria apropriado pela ajuda que eu possa ter-lhe oferecido. Eu acabaria em dívida com você — disse, pegando minha mão e repondo a gaita nela. — E prefiro tê-lo em débito comigo — acrescentou, com um súbito sorriso. — Desse jeito, você continua a me dever um favor.

A pequena galeria ficou perceptivelmente mais silenciosa. Olhei em volta, confuso com o fato de ter esquecido onde estava.

Alys levou um dedo aos lábios e, por cima do parapeito, apontou o palco lá embaixo. Chegamos mais perto da borda e olhamos; vimos um senhor de barba branca abrir a caixa de um instrumento de formato estranho. Prendi o fôlego, surpreso, ao ver o que ele segurava.

— O que é aquilo? — perguntou Alys.

— É um antigo alaúde usado na corte — respondi, sem conseguir disfarçar o assombro em minha voz. — Na verdade, eu nunca tinha visto nenhum.

— Aquilo é um alaúde? — admirou-se Alys, movendo os lábios em silêncio. — Contei 24 cordas. Como é que aquilo pode funcionar? São mais cordas do que em algumas harpas!

— Era assim que eles eram feitos, anos atrás, antes das cordas de metal, antes que se soubesse fixar um braço longo. É incrível. Há uma engenharia mais refinada naquele pescoço de cisne do que em três catedrais juntas — comentei.

Observei o ancião afastar a barba, para não atrapalhar, e se acomodar no banco:

— Só espero que ele o tenha afinado antes de subir ao palco — acrescentei, baixinho. — Caso contrário, esperaremos uma hora enquanto mexe nas cravelhas. Meu pai costumava dizer que os antigos bardos passavam dois dias prendendo as cordas e duas horas afinando-as, para produzir dois minutos de música num antigo alaúde da corte.

O velho só levou cerca de cinco minutos para harmonizar as cordas. Depois começou a tocar.

Sinto vergonha de admiti-lo, mas não tenho nenhuma lembrança da canção. Apesar de nunca ter visto um alaúde da corte, muito menos ouvido algum, minha cabeça estava zonza demais pensando em Alys para absorver muitas outras coisas. Quando nos debruçamos sobre o parapeito, lado a lado, lancei-lhe olhares furtivos pelo canto do olho.

Ela não havia me chamado pelo nome nem mencionado nosso encontro anterior na caravana de Rumi. Isso queria dizer que não se lembrava de mim. Não era de admirar, suponho, que tivesse esquecido um garoto esfarrapado com quem só convivera por alguns dias na estrada.

Mesmo assim, foi meio doloroso, porque eu tinha passado meses pensando nela com ternura. Mas não havia como trazer o assunto à tona naquele momento sem parecer tolo. Era melhor recomeçar do zero e torcer para que eu fosse mais memorável da segunda vez.

A canção terminou antes que eu me desse conta.

E bati palmas entusiasmadas para compensar minha desatenção.