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A Crônica do Contador de Histórias

Após uma vida de poucas conquistas e repleta de arrependimentos, Vanitas recebe uma segunda chance ao reencarnar como um bebê em um mundo onde magia e espadas fazem parte do cotidiano. Determinado a deixar seu passado para trás, ele abraça essa nova chance, vivendo com uma trupe itinerante de artistas da corte. Entre apresentações e jornadas por novas terras, Vanitas aprimora seu talento nato para o alaúde, mas é na magia que seu verdadeiro poder desperta. Sob a tutela da poderosa Arcanista Marceline, ele mergulha nos segredos da simpatia, a arte mágica que, desde o início, acendeu seu desejo de invocar o vento. No entanto, o destino de Vanitas toma um rumo inesperado quando cruza caminho com o enigmático grupo Sombraim, cujos segredos ocultos trazem à tona verdades sombrias sobre o mundo e sobre sua própria reencarnação. Em busca de respostas, Vanitas parte em uma jornada por terras desconhecidas, onde cada nova descoberta o arrasta ainda mais profundamente para os segredos esquecidos da história. Ao longo do caminho ele encontra aliados improváveis, constrói amizades inquebráveis e se apaixona... mas o que realmente aguarda em seu destino é algo que supera tudo isso. Com a chance de mudar o mundo em suas mãos, Vanitas precisa decidir entre seguir o caminho das revelações ou se perder nos laços do amor e da amizade. O peso dessa escolha pode mudar para sempre o curso de sua vida — e a de todos ao seu redor.

porep · Fantaisie
Pas assez d’évaluations
108 Chs

LXVII. PENHORES

Depois de sair da casa de Devi, andei pelas ruas de Torrente, nervoso e irritado, tentando por as ideias em ordem. Tentando pensar num modo de contornar meu problema.

Eu teria uma chance razoável de pagar o empréstimo de dois crimos. Esperava subir nas fileiras da Ficiaria em pouco tempo. Assim que obtivesse permissão para cuidar de meus próprios projetos, poderia começar a ganhar dinheiro de verdade. Só precisava continuar em aula por tempo suficiente. Era apenas uma questão de tempo.

Na verdade, era isso que eu estava pedindo emprestado: tempo.

Mais um período letivo, quem saberia dizer que oportunidades poderiam se apresentar nos dois meses seguintes?

No entanto, mesmo ao tentar me convencer disso, eu sabia a verdade: era má ideia. Eu estava procurando sarna para me coçar. Engoliria o orgulho e veria se Alastor, Leif ou Balken poderiam me emprestar os oito iyanes de que precisava.

Dei um suspiro, resignando-me a dormir um período ao relento e catar comida onde pudesse encontrar. Pelo menos, não poderia ser pior do que minha época em Notrean.

Estava prestes a voltar para a Academia quando minha perambulação irrequieta me levou à vitrine de uma loja de penhores.

Senti aquela antiga dor nos dedos...

— Quanto custa o alaúde de sete cordas? — perguntei. Até hoje não me lembro de ter efetivamente entrado na loja.

— Quatro crimos exatos — disse o dono, animado. Imaginei que fosse novo no negócio, ou que estivesse bêbado. Os donos ou empregados de lojas de penhores nunca são animados, nem mesmo em cidades ricas como Torrente.

Talvez fosse pela cor do meu cabelo?

— Ah — suspirei, sem me dar ao trabalho de esconder minha decepção. — Posso dar uma olhada nele?

O homem me entregou o alaúde.

Não era grande coisa de se ver. Os veios da madeira eram irregulares, o verniz era tosco e estava arranhado. Os trastos1 eram feitos de tripa e precisavam ser trocados, mas isso pouco me preocupava, já que, de qualquer modo, era normal eu tocar sem eles.

A caixa do alaúde era de cabiúna2, de modo que o som não seria tremendamente sutil, mas, por outro lado, a cabiúna ecoaria melhor numa taberna repleta, cortando o zunzunzum das conversas. Bati com o dedo na caixa e ela emitiu um zumbido sonoro. Sólido, embora não bonito. Comecei a afinar o instrumento, a fim de ter uma desculpa para segurá-lo um pouco mais.

— Eu poderia descer até três e cinquenta — disse o homem atrás do balcão. Espichei os ouvidos ao escutar algo em seu tom: desespero. Ocorreu-me que um alaúde feio e usado talvez não vendesse muito bem numa cidade cheia de nobres e músicos prósperos. Abanei a cabeça.

— As cordas estão velhas.

Na verdade, estavam ótimas, mas eu tinha esperança de que ele não soubesse disso.

— É verdade — admitiu, o que me confirmou sua ignorância —, mas as cordas são baratas.

— Imagino que sim — respondi, com ar inseguro.

Seguindo um plano proposital, ajustei cada corda um tantinho desafinada em relação às demais. Toquei um acorde e ouvi o som irritante. Lancei um olhar azedo e especulativo para o braço do alaúde.

— Parece que o braço está rachado — comentei, dedilhando um acorde menor que soou ainda menos agradável. — Isso não lhe parece um som de junco rachado? — E tornei a dedilhar com mais força.

— Três e vinte? — perguntou o homem, esperançoso.

— Não é para mim — respondi, como se o corrigisse. — É para meu irmão caçula. O cretininho não deixa o meu em paz.

Tornei a dedilhar o instrumento e fiz uma careta.

— Posso não gostar muito do diabinho, mas não sou cruel a ponto de lhe comprar um alaúde com o braço rum — continuei. Fiz uma pausa significativa. Como não viesse nada, instiguei-o. — Por três e vinte não dá.

— Três redondos? — indagou o homem, de novo esperançoso.

Na aparência, eu segurava o alaúde com ar desprendido, descuidado. Mas, no fundo do coração, agarrava-o com uma ferocidade de branquear os nós dos dedos. Não espero que você compreenda.

Quando mataram minha trupe, os membros do Sombraim destruíram cada pedaço de família e lar que eu havia conhecido. Mas, em certos aspectos, tinha sido pior quando o alaúde de meu pai fora quebrado em Notrean. Tinha sido como perder um membro do corpo, um olho, um órgão vital.

Sem minha música, eu passara anos vagando por Notrean, quase morto, como um veterano aleijado ou uma alma penada.

— Escute, eu lhe dou dois e dois — dirigi-me a ele com franqueza. Peguei a bolsa de moedas. — Você pode aceitar ou deixar essa coisa horrorosa pegando poeira numa prateleira alta pelos próximos 10 anos.

Encarei-o, tomando o cuidado de não deixar que minha expressão demonstrasse o quanto eu precisava do instrumento. Faria qualquer coisa para ficar com aquele alaúde. Dançaria nu na neve. Agarraria as pernas dele, trêmulo e desvairado, prometendo-lhe qualquer coisa, qualquer coisa...

Contei dois crimos e dois iyanes expostos no balcão entre nós: quase todo o dinheiro que eu havia economizado para a taxa escolar do segundo período. Cada moeda fez um estalido alto quando a bati na mesa.

O homem me dirigiu um olhar demorado, avaliador. Pus mais um iyane e esperei...

E esperei.

Quando enfim ele estendeu a mão para pegar o dinheiro, sua expressão abatida foi a mesma que eu estava acostumado a ver no rosto dos donos de lojas de penhores.

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Devi abriu a porta e sorriu.

— Ora, ora, sinceramente, não pensei que voltasse a vê-lo. Entre — disse, trancando a porta atrás de mim e se dirigindo à escrivaninha. — Mas não posso dizer que esteja desapontada — acrescentou, olhando para trás e abrindo seu sorriso travesso. Depois sentou-se e completou: — Eu estava ansiosa para fechar um negocinho com você. E então, dois talentos?

— Na verdade, seria melhor pegar quatro — respondi.

O bastante para eu pagar a taxa escolar e um beliche no Cercado. Eu poderia dormir ao relento, sob o vento e a chuva. Mas meu alaúde merece coisa melhor.

— Esplêndido — disse ela, pegando o frasco e o alfinete.

Eu precisava manter intactas as pontas dos dedos, por isso espetei o dorso da mão e deixei três gotas de sangue se juntarem lentamente e caírem no frasquinho marrom. Entreguei-o a Devi.

— Jogue o alfinete aí dentro também.

Assim fiz.

Devi pincelou a tampa com uma substância transparente e a encaixou na boca do frasco.

— É um adesivo inteligente dos seus amigos lá do outro lado do rio — explicou. — Assim, não posso abrir o frasco sem quebrá-lo. Quando você pagar sua dívida, vai recebê-lo intacto e poderá dormir sossegado, sabendo que não guardei nenhum sangue para mim.

— À menos que você tenha o solvente — assinalei.

Devi lançou-me um olhar incisivo.

— Você não é muito chegado a confiar, não é?

Vasculhou uma gaveta, tirou um pouco de cera selante e começou a aquecê-la no candeeiro da escrivaninha.

— Imagino que você não tenha um selo, um anel ou coisa parecida, tem? — perguntou, espalhando a cera por toda a tampa do frasco.

— Se eu tivesse joias para vender, não estaria aqui — respondi com franqueza, e pressionei o polegar na cera. Ele deixou uma impressão digital reconhecível. — Mas isso deve servir.

Devi rabiscou um número na lateral do frasco com um estilete de esmeralda, depois pegou um pedaço de papel. Escreveu por um instante e abanou o papel com a mão, esperando que secasse.

— Pode levar isto a qualquer agiota em ambos os lados do rio — disse, animada, entregando-me o papel. — Foi um prazer negociar com você. Não desapareça.

Voltei para a Academia com dinheiro no bolso e o peso reconfortante do alaúde pendurado numa alça em meu ombro. Ele era feio, de segunda mão e me custara muito caro em dinheiro, sangue e paz de espírito.

Mas eu o amava como uma criança.

Como o ar.

Como a minha própria mão direita.