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O Líquido da Verdade

O vento forte congelava os lenhadores que trabalhavam ao sopé da montanha. Ingall retirava os tocos e, ao olhar para trás, via um caminho limpo de árvores se formando até o acampamento. À sua frente, com um pedaço de saco de legumes servindo como gorro improvisado, estava Walden, atacando a árvore com seu machado. Fazia algum tempo que ele não aparecia no poço, a comida estava sendo racionada e não sobrava muito para levar ao gigante. O reino não enviava mais suprimentos, toda a comida deveria ser coletada pelos caçadores do acampamento, mas a fome tornava os caçadores ainda mais fracos.

A chegada do outono tornou a vida mais difícil. A maioria dos militares tinha roupas adequadas para o clima, outros precisavam suportar os ventos gélidos ou dar um jeito, que geralmente significava beber exageradamente. Os trabalhadores procuravam fabricar suas próprias roupas com peles de animais que chegavam ao acampamento. Os escravos e prisioneiros ficavam à sorte, improvisavam vestimentas, escondiam suas bebidas roubadas, rezavam para que nenhum soldado lhes tirassem o pouco que tinham. O frio já havia matado alguns homens durante à noite. O senhor Volkan exigia que o reino enviasse tendas também para os escravos, e quase estrangulou o mensageiro ao receber a resposta.

– Não tem recursos uma ova! – Volkan gritou no meio da floresta, assustando os lenhadores e o gigante que trabalhavam por ali. – Não vou perder mais mão de obra por causa de um reizinho de merda!

O senhor Volkan ordenou que a madeira coletada naquela semana não fosse enviada para o reino e que o matassem se o rei não gostasse da resposta. A madeira foi usada para construir abrigos simples, com galhos e folhas servindo como paredes e teto. Cada abrigo comportava apenas duas pessoas, dezenas de escravos continuaram a dormir abraçados sob as estrelas. Em nenhum momento foi discutida a situação do gigante, assim como os animais, não acreditavam que ele teria grandes dificuldades com o frio. Era verdade, Ingall resistia ao frio melhor do que os homens, mas, assim como os animais, seu corpo possuía um limite. Com o racionamento de comida e o trabalho intenso, seu corpo enfraquecia e sofria para resistir às noites frias dentro do poço.

Ingall abraçava os joelhos, os grilhões tilintavam enquanto ele tremia. As canções dos soldados o ajudavam a se distrair do frio, cantarolava baixinho os poucos trechos que havia decorado com tantas comemorações sem sentido. Desta vez não era o caso, o capitão Lendall fazia questão de dar boas-vindas ao conselheiro Yorg com muita comida e bebida, queria evitar que as atitudes de Volkan caíssem sobre ele. Por outro lado, o conselheiro não parecia feliz ao chegar ao acampamento. Yorg estava ali para avaliar o trabalho e, principalmente, corrigir o senhor Volkan por ter fugido das ordens e usado a madeira do rei para construção de abrigos não autorizados.

No fundo do buraco, Ingall temia que a visita do conselheiro também viesse a se voltar contra sua existência. Sem o rei Ruzgar por perto, Yorg podia fazer o que quisesse. E certamente teria o apoio do general Nefin caso o capitão Lendall tentasse interferir.

Passos se aproximaram do buraco e tiraram o gigante de seus pensamentos soturnos. Como imaginava, era Walden que vinha para mais uma visita noturna depois de tanto tempo. Ele balbuciou algo que Ingall não entendeu, a garrafa em sua mão explicava tudo. O prisioneiro se sentou de forma desengonçada, quase se atirando ao chão.

– Desculpa, amigo – Walden falou com a voz arrastada. – Sem comida hoje. Muito difícil. Levaram tudo para aquele conselheiro engomadinho.

O gigante deu de ombros, não esperava uma refeição decente tão cedo. Walden insistiu para que ele bebesse o conteúdo da garrafa, mas Ingall recusou, tinha medo de acabar como seu colega e os soldados beberrões que o humilhavam.

– Esses caras estão todos ferrados, gigante – disse o loiro. – Eles acham que só os escravos trabalham de graça, mas o reizinho não paga ninguém – Walden riu sozinho, virando a garrafa à boca. – Se tem um conselho que eu posso te dar é: fique longe de reis. Ou qualquer merda assim. Eles não pagam. Não pagam! São todos uns... uns...

– Talvez seja hora de parar com a bebida, amigo – Ingall falou preocupado.

– Eu estou bem, isso daqui não é nada para mim. Um destilado barato de camponês só para não morrer nesse frio do inferno. Ha-ha! Frio do inferno!

Walden não conseguia parar de rir, gargalhava alto e Ingall temia que alguém pudesse ouvir, apesar da cantoria alta dos soldados.

– Não acha que é melhor ir para o seu abrigo, amigo Walden? Tenho certeza de que é mais quentinho lá.

– Eu não vou voltar praquela porcaria enquanto aquele fedido do Olaf continuar dormindo lá. Ele que me arranje outro lugar. Ele fede a peido. Se eu for morrer, prefiro morrer respirando ar puro.

– Você não vai morrer se...

– Eu vou sim! – Walden bradou. Ingall estava apavorado, viu nos olhos do colega a mesma fúria que o álcool deixava nos guardas. – Ei, sabe de uma coisa? Não valeu a pena. Mamãe tinha razão, a ganância é o mal de todos os homens. Cresci o olho naquele monte de pedra e agora vou morrer de frio e fome. Eu não quero morrer, Ingall. Eu não quero!

Walden soluçava enquanto as lágrimas caiam pelo seu rosto.

– De que pedras você está falando? – Ingall perguntou com pena.

– A mina! A maldita mina e seus minérios preciosos. Todos eles morreram por causa de minérios e agora eu vou morrer também. Eu não mereço morrer. O que os deuses vão fazer com a minha alma, amigo? Eu vou sofrer um castigo maior do que esse? Não! Eu já estou pagando, não estou? Ah! Eu não quero morrer!

Walden se jogou de costas no chão, Ingall não conseguia vê-lo, apenas ouvir seu choro agoniado. Se continuasse daquele jeito os soldados logo surgiriam. O gigante queria que o prisioneiro voltasse logo a seu abrigo, mas a conversa o intrigava. Ingall se levantou e sussurrou para Walden.

– Você disse que alguém morreu. Foi por causa dos minérios?

– Não – Walden falou com a voz fraca, ainda deitado. – Eu os matei. Eu e todos aqueles homens do rei Ruzgar. Aquele capitãozinho de merda não conseguiu capturar nenhum.

– Mestre Lendall?

– Esse mesmo! Fedelho burro. Vivia dizendo "eu conheço gigantes, lido com uma fera todos os dias" – Walden falou com uma voz esganiçada em tom debochado. – Não teve coragem para enfrentar nenhum deles, ficou parado com a lança na mão. Ele devia me agradecer. Eu salvei a vida dele. – O prisioneiro se levantou com dificuldade, mas com orgulho na voz enquanto batia no peito. – Eu matei aquele monstro fedido e grande antes que ele pudesse pisar no capitãozinho. Enfiei a lança dentro do nariz. Assim.

Walden simulou um movimento com a lança e demonstrou como o sangue jorrou das narinas do inimigo, derrubando um pouco de sua bebida com os movimentos exagerados. O homem caiu de costas sobre a terra novamente, gargalhando com suas lembranças.

Ingall revivia tudo novamente. Lança manchada pelo sangue de seu tio perfurando o pescoço da mãe. O lanceiro com um sorriso orgulhoso no rosto.

– Você matou um gigante? – Ingall perguntou com seus sentimentos confusos. – Um de seus amigos?

– Eu nunca mataria meus amigos. Por que eu faria isso? Ei! Eu sou um homem muito justo, Ingall. E você é meu amigo, eu nunca te mataria. Eu preciso de você para nos tirar daqui. Você vai matar todos eles, não vai? Coisa de amigo. Eu te dou comida, você me tira daqui. É justo.

– Você matou gigante – Ingall falou com amargor na voz. Não conseguia acreditar no que estava ouvindo. – Por que matou gigantes, Walden?

– Ei! Aqueles imbecis estavam no meu caminho. Não queriam deixar a gente tomar o lugar. Eu só queria a caverna. Eles se enfiaram no meio e morreram. Simples assim. – Walden tomou um grande gole do líquido da garrafa. – Ruzgar disse que eu seria um homem muito rico se ajudasse ele a ficar rico. Ele não tem palavra. Eu matei os monstros e exigi meus ouros, mas o rei não quis dividir nada, só depois que o feudo estivesse pronto e a mina desse lucro. Eu fiz o que devia ter feito.

– O que você fez?

– Ora! Eu corri até o rei Vadim e contei sobre a mina. Quer dizer, eu tentei. Aquele cocheiro era mais lerdo que uma lesma. Não! Um caramujo. – O prisioneiro tentou conter o riso. – Fui pego no meio do caminho. Eu lutei! Cortei umas dez cabeças. – Walden gesticulou como se tivesse uma espada em mãos. – Me pegaram, mas eu resisti. Resisti como um verdadeiro herói. Um verdadeiro... – Walden deu um grande gole até secar a garrafa. – VERDADEIRO HERÓI!

O prisioneiro arremessou a garrafa para longe, um impulso tão grande que o fez perder o equilíbrio e cair no buraco. Teria quebrado o pescoço se Ingall, num reflexo assustado, não tivesse o segurado. Walden estava apagado, dormindo feito um bebê nos braços do gigante. Com todo o barulho de seu último acesso de loucura embriagada, soldados correram até o buraco. Ingall não sabia o que fazer com o colega desacordado, não queria se meter em encrenca e, ao mesmo tempo, sentia uma fúria em seu peito. Como Walden podia ter contado tantas mentiras a ele, lhe dando de comer apenas para tirar proveito de si. Sentiu vontade de jogá-lo de volta para o gramado, jogá-lo o mais longe possível para que nunca mais o visse de novo. Sua razão falou mais alto e decidiu esperar os soldados para recolherem o bêbado e dizer que ele tinha caído em seu poço de repente.

No dia seguinte, Ingall tentava explicar aos militares o que tinha acontecido, ocultando parte da verdade, dizendo que Walden era apenas um bêbado que se aproximara demais do buraco, mas ninguém dava ouvidos ao gigante. Os prisioneiros foram duramente interrogados sobre a bebida. Garrafas de vinho e aguardente roubadas dos militares foram encontradas escondidas pelos abrigos. Socos e chutes eram distribuídos para que alguém falasse. A tortura não parecia estar levando a resposta alguma, até que um dos prisioneiros, Olaf, cansado de receber chutes na barriga, decidiu falar.

– Walden era quem mandava em todos nós. – Olaf tossiu, recuperando o fôlego. – Ele roubava as bebidas e comidas, e quando não roubava mandava um de nós roubar.

– Está mentindo! – o capitão Lendall gritou com o dedo apontado para Olaf, que continuava de joelhos. – Walden não tinha armas para fazer ameaças. Eu e o general o revistamos antes de amarrá-lo.

– Espere um pouco, capitão – disse o senhor Volkan com a voz calma. – Walden era um sujeito esperto. Vamos ouvir o rapaz.

Volkan fez menção para que Olaf continuasse a falar. O rapaz tossiu forte mais uma vez, a garganta seca arranhava. Volkan tirou seu cantil da cintura e ofereceu ao prisioneiro, que se deleitou.

– Ele não usava armas, senhor – Olaf falou com dificuldade. – Ele tinha um acordo com o gigante. Mandaria o monstro nos matar durante o trabalho se não colaborássemos. Os dois planejavam fugir daqui. Outros homens lhe davam cobertura e ele visitava o gigante com frequência, levando comida e bebida para agradar a fera.

Houve silêncio entre os militares. O conselheiro Yorg, que assistia tudo de longe, não parecia surpreso com a informação. Lendall ajeitava o cabelo nervosamente. Volkan quebrou o silêncio e soltou uma gargalhada forte e sarcástica.

– Aí está a porcaria do seu gigante, capitão – o senhor Volkan debochou.

– Ele está mentindo! – Lendall gritou. Avançou para dar um soco em Olaf, mas Volkan o segurou. – Ele é uma besta, mas é leal e dócil feito um cachorrinho.

– O senhor diz isso por que sabe que se falhar com a fera será punido pelo rei – disse Yorg em tom de superioridade.

– E nós vamos acreditar em tudo que esse merdinha fala?

– Não – Volkan se meteu. Ele colocou o capitão para o lado e ergueu a cabeça, o olhar fixo nos prisioneiros ajoelhados à sua frente. – O que Olaf diz é verdade?

Os homens cansados de apanhar, cuspindo dentes e sangue, sofrendo com o frio, concordaram com a cabeça.

– Aí está sua verdade, capitão – Volkan falou com um sorriso no rosto. – Agora junte seus homens e matem aquele monstro antes que eu mesmo o faça!

– O monstro é propriedade do rei Ruzgar e apenas ele pode dar cabo da vida da criatura. – Lendall disse entre os dentes com olhar selvagem. – Essa floresta ainda estaria exatamente do jeito que encontramos se não fosse por mim e pelo gigante. Você precisa dele aqui.

– Eu preciso é de homens competentes, não um animal de quatro metros e escravos magros. A porcaria do seu rei gasta rios de dinheiro com guardas que não fazem nada além de brincar, beber e papear ao redor de um gigante. Se todo o dinheiro gasto com esses soldados fosse usado para trazer trabalhadores de verdade, não precisaríamos de um gigante. – Volkan bufou. –Este reino está falido, nos deixando passar fome por causa de um reizinho burro.

– Mais respeito com o rei, senhor Volkan – Yorg se intrometeu. – O reino está perfeitamente bem. A comida está sendo racionada em todos os cantos. O frio não tem sido bom para...

– Nós estamos no outono! – Volkan interrompeu. – Se esse reizinho não consegue alimentar seus homens agora, eu não quero ver o que vai nos acontecer quando a neve começar a cair. No fim das contas, esperto mesmo é o maldito Walden que venderia a mina para Vadim.

– O senhor pretende trair o rei Ruzgar como fez Walden?

– Eu prefiro ter trabalhadores de verdade e comida na barriga. – Volkan se aproximou do conselheiro e o encarou nos olhos, sendo obrigado a olhar para cima. – Eu estou dizendo o que penso. Se não gosta de ouvir verdades sobre Ruzgar, pode pegar suas coisas e voltar para lamber as bolas dele no castelo.

Volkan se afastou com passos pesados, ordenando que os homens se preparassem para o trabalho. Lendall pediu para que o conselheiro o encontrasse na cabana principal para que pudessem conversar sobre o rumo das operações e se afastou, ajeitando seus cabelos nervosamente. Antes que Yorg pudesse acompanhá-lo, uma mão agarrou suas vestes.

– Eu dei a informação, senhor Yorg – disse Olaf suplicando de joelhos. – Um casaco em troca da informação. Como recompensa. Por favor, sei que o senhor é bondoso. Posso dizer quem eram os homens que ajudavam Walden e...

Olaf foi interrompido por um tapa com as costas da mão magra do conselheiro. Yorg ordenou que seus guardas linchassem o rapaz enquanto ele prepararia as malas. Tinha visto o suficiente para dar fim àquela gente desleal.

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