"Devo dizer que seu nome é um tanto estranho... De onde você veio, Jake?" Enille o questiona acerca de sua origem.
Aquela pergunta já estava em tempo de ser feita, afinal de contas, quem é aquele estranho e misterioso jovem, trajado de roupas atípicas, que simplesmente surgiu da floresta e derrotou os encapuzados, fazendo até com que seu líder retrocedesse?
Jake sabe que aquela pergunta não deve ser respondida com honestidade. "Sou habitante de outro mundo" não é o tipo de coisa a se acreditar, mesmo posta a condição em que se encontra no momento, e enquanto trilhavam a estrada de terra, com o sol ameno da tarde sobre suas cabeças, ele responde ao questionamento.
"Venho de um outro reino, um reino distante. Eu e meu grupo escoltávamos mercadores até este reino, mas fomos atacados por um grupo armado bastante forte. O fato é que muitos de nós foram sequestrados ou mortos, e apenas eu consegui de fato fugir. Mediante o calor da cena, percebi que não conseguiria derrotar aqueles poderosos inimigos, e apenas me escondi... Foi um gesto muito covarde e me arrependo muito disso..."
Jake toma uma boa quantidade de ar, fechando os olhos e rebaixando a cabeça, simulando tristeza. Sua história deve ser confiável o suficiente para não gerar questionamentos posteriores.
"Sinto muito... Se eles realmente foram capazes de enfrentar e derrotar você e seus companheiros, eles têm de ser realmente fortes. Você não precisa se sentir culpado. Não houve nada que você pudesse fazer, e tenho certeza de que seus companheiros não o culpam por isso." Ela emprega uma expressão consoladora, encarando Jake com ternura.
"Eu agradeço muito por isso..." Ele mantém sua fachada.
"Você me salvou. É o mínimo que posso fazer em retribuição." Ela responde com um sorriso leve.
Perfeitamente. A história é crível. Ele sabe que não é interessante para um mentiroso ser o foco da conversação, e logo trata de questionar Enille acerca de sua própria pessoa.
"Você trabalha como uma aventureira, Enille?"
"Sim. Éramos um grupo de aventureiros antes daquilo acontecer... Trabalhávamos com missões de extermínio de monstros, entregas de remessas de alimentos... Essas coisas em que aventureiros trabalham..."
"Você não precisa continuar se lembrando disso." Jake tenta confortá-la de alguma maneira.
Jake olha para os lados, a notar a beleza da natureza quase intocada daquele mundo. Este é um lugar selvagem, repleto de todos os tipos de crueldades e pessoas dispostas a fazê-las. Ele lembra-se de ter escutado isso da Entidade, e conseguiu ver a verdade por trás desse argumento logo em seu primeiro dia nesse novo mundo.
Enille sorri com leveza enquanto caminha. Jake sabe que é peremptoriamente importante fazer aliados nesse perigoso novo mundo, afinal, não se consegue chegar em lugar algum caminhando sozinho. Enille é uma importante peça para seu triunfo, e por isso ele deseja manter a jovem por perto.
Ambos continuam caminhando, e aos poucos, estruturas extremamente elevadas feitas de pedra podem ser vistas a surgir, devagar, no horizonte. Ela não perde tempo em apontar para a cidade com seu dedo indicador, sinalizando o local.
"Ali está a capital do reino de Alardia, Calendas. É uma das maiores cidades do continente, tendo incríveis 12 quilômetros quadrados!" Ela cita de forma enérgica.
Jake apenas olha para ela, erguendo uma das sobrancelhas. Se pudesse sentir algo, certamente estaria surpreso naquele momento. Apenas doze quilômetros quadrados? Isso é muito menor do que qualquer bairro de seu mundo.
No entanto, para uma cidade medieval, é um tamanho a ser considerado, e como ela mesma citou, essa é a maior cidade do reino, justo por tratar-se de sua capital.
Embora já possam ver as torres mais altas, é perceptível que ainda existe uma boa distância a ser coberta por eles, para que enfim possam chegar.
Parados, Jake olha para o lado, percebendo uma placa de madeira fincada ao chão, ao lado da cerca. Sua escrita lembra a grafia em runas antigas, contudo, é perfeitamente compreensível para ele. Os caracteres na placa ordenavam-se a dizer: "Estrada Real: Calendas - Luoliverre".
"Luoliverre há de ser o nome de uma outra cidade." Ele pensa consigo mesmo.
Jake agora sabia de alguns detalhes a mais. O espaço em que caminham é chamado de "Estrada Real", possivelmente um tipo de conexão entre as cidades do reino, que pelo nome, há de ser utilizada por nobres e talvez grandes mercadores.
Seu pensamento é interrompido pela voz de Enille, que preenche a brisa leve, trazida pelo vento, misturando-se ao som do farfalhar das verdes e majestosas árvores decíduas do bosque.
"Se continuarmos caminhando, conseguiremos chegar em menos de uma hora na muralha do reino. Vamos, Jake!" Ela chama por ele, já posicionada alguns passos na frente dele.
"Oh, é claro." Ele responde, desviando seu olhar da placa e tornando a acompanhá-la.
A Entidade o munira de melhorias físicas e intelectuais, e pela primeira vez Jake questiona o fato de ser capaz de manter comunicação com os nativos desse mundo. Teria a Entidade garantido a ele o entendimento e compreensão completos acerca da língua local?
Sim. Ele conversa fluidamente com Enille, como se estivesse conversando com seu vizinho. Aquele apenas poderia ser algum tipo de melhoria.
"Aparentemente ainda possuo um grande caminho para seguir... Tenho de descobrir depressa acerca de tudo o que consigo fazer."
Eles continuam caminhando silenciosamente por mais alguns minutos, e durante o caminho, Enille eleva seu olhar para observar a face de Jake. Isso se repete por diversas ocasiões, até que a garota decide que é o certo tempo de afirmar o que se passa em sua mente.
"Você é mesmo bastante alto, Jake." Ela o encara em seus olhos.
"Huh?" Ele nota.
De fato. O topo da cabeça de Enille encosta-se na base do osso esterno de Jake. A disparidade de estaturas é algo quase assustador. O visual de Jake é capaz de intimidar qualquer transeunte que se aproxime.
"Agora entendo o motivo de meu pai por desejar ter filho menino no meu lugar..." Ela afirma em um tom baixo, contudo, Jake é capaz de escutar o que foi dito.
"Seu pai realmente disse isso?" Ele a questiona.
Aceitando que ele a escutara, Enille toma uma porção grande de ar, e olhando um pouco para baixo, passa a falar.
"Sim... Meu pai sempre desejou um homem forte, que fosse capaz de segurar uma espada e entrar para a tropa de guerreiros reais... Mas no lugar eu nasci, uma garota pequena e que só consegue usar um arco..." Ela diz. Um arco curto repousa em suas costas, pendurado acima da aljava de couro.
Ela reduz o ritmo de seus passos por um instante. Jake acompanha essa mudança.
"Eu tenho o sonho de entrar na tropa, mas soube que o exame de admissão e o treinamento diário são muito difíceis. Homens e mulheres possuem a mesma facilidade de acesso às inscrições, mas a maioria das aspirantes a guerreiras femininas acabam falhando em decorrência do nível físico necessário... Afinal, fisicamente falando, homens são muito mais fortes..." Ela libera tudo o que necessita dizer.
Jake apenas escuta com atenção.
"... E eu sou apenas uma baixinha sem qualquer aptidão para isso... ... ... Desculpe ter que forçar você a ouvir isso."
Enille está cabisbaixa, e continua olhando para a estrada enquanto caminha devagar. Jake decide questioná-la acerca de algo.
"Essa é realmente a sua vontade, ou você apenas deseja tentar satisfazer o desejo egoísta de seu pai?"
Ela imediatamente eleva seu rosto após ouvir isso, encarando com intensidade o caminho em sua frente.
"Você nunca chegará a lugar nenhum caso se fundamente no que os outros pensam de você. Ser quem você é não é um erro de qualquer espécie. Caso realmente deseje triunfar, deve ater-se a algo que você de fato deseja fazer, ser quem você deseja ser. Apenas assim conseguirá evoluir."
Ele apenas continua, posicionando suas duas mãos nos bolsos de sua calça.
"Seu pai nunca irá aprovar você. Mesmo que se torne uma guerreira, mesmo que passe no exame de admissão. Nada disso vai mudar a misoginia dele."
Enille pensa por um instante curto antes de finalmente questionar.
"Miso... Misoginia...? O que isso significa?"
É claro. Ele não pode esperar que pessoas de um mundo em nível tecnológico de Alta Idade Média saibam o que significam as palavras modernas.
"Apenas saiba que é algo muito ruim, e que você deve ativamente lutar contra."
É complexo explicar o funcionamento da sociedade para uma pessoa quiçá alienada acerca do funcionamento do próprio sistema de governo em que vive. Os reinos medievais certamente não foram sequer um pouco democráticos e o conhecimento sofreu de alta censura.
Isso é algo com o qual ele sabe que deve ter cuidado. Jake não pode simplesmente espalhar conhecimentos de sua era por esse mundo, ou será caçado e censurado de maneira dolorosa por aqueles que não possuem interesse no pensamento crítico da população.
"Melhor manter minha boca fechada."
Um olhar novo preenche o rosto de Enille. As palavras de Jake certamente tocaram o cerne da garota. Ela demonstra estar pensativa, seriamente considerando seguir aquilo que prega as palavras que ouviu.
Jake olha para o lado, a ver um espaço aberto no cercado de madeira, semelhante ao que conduz ao trecho do rio em que encontrou Enille.
"Som de água..."
***
Ele, já ajoelhado, estende sua mão em forma de concha, enchendo-as da água pura que corria cristalina, e quase levando-a à boca, decide olhar para o lado por um segundo.
Enille está parcialmente submersa no rio de baixa profundidade, cerca de um metro apenas. Ela entrou ali com todas as suas roupas com exceção das botas, visando lavar o vômito que as manchou previamente. O fluxo da água existe no sentido Enille-Jake, e não o contrário. Percebendo aquilo, Jake deixa a água cair de suas mãos propositalmente.
"De jeito nenhum irei beber isso."
Ele apenas de fato consome a água após a saída da garota.
O sol pouco faz seu caminho por entre a folhagem densa, isso resfria a água que sutilmente desce do topo das grandes montanhas à distância. Segundo Enille, este é um rio sustentado pelo degelo dos picos nevados, e por isso, a qualidade de sua água é altamente apreciada por sua pureza. Um lugar calmo e pacífico, em que o tempo tem a impressão de passar um pouco mais devagar.
A transparente, límpida água possibilita ver perfeitamente a camada de folhas amareladas e avermelhadas que caíra da copa das árvores ao longo do tempo.
Já é dada a hora de irem. A julgar pela clara visão das montanhas, os dois estão bastante próximos de Calendas. Quinze ou vinte minutos de caminhada e eles chegarão, mantendo seu ritmo normal. Entretanto, ambos Jake e Enille desejam chegar depressa, reduzindo o tempo estimado.
A garota calça as botas, equipando a aljava e o arco em suas costas logo e seguida. Tudo estaria ótimo para partirem, se não fosse por um certo detalhe.
O som de algo a uivar é escutado nas proximidades.
"Um lobo?" Jake pensa consigo.
Enille rapidamente trata de assumir uma postura combatente. Jake observa enquanto o som de passos a esmagar pequenos galhos aproxima-se deles.
Detrás de uma densa área da floresta, surgem lobos. Aquele fato seria extremamente irrelevante caso não Jake não considerasse que aquele é um mundo mágico.
São lobos incomuns, três deles. Cada um deles é muito maior do que um homem adulto caso se mantenha em apenas duas patas. Robustos e musculosos, sua pelagem espessa, perfeitamente branca ofusca sutilmente os olhos com ao ser iluminada pelo pouco sol que consegue penetrar pela vegetação. Olhos azuis, garras afiadas, e uma atmosfera gelada, que congela pequenas plantas em suas imediatas proximidades.
Nada amigáveis, o olhar intenso dos animais prega-se aos dois jovens, e diversos grunhidos são vocalizados. Suas presas exibem-se intimidadoras, suplicando por algo para perfurar, que no caso é a carne dos dois. O lobo ao centro do trio abre sua mandíbula levemente, deixando escapar uma branca fumaça fria, similar ao gelo seco quando exposto à água.
Jake não perde tempo, e velozmente rebaixa-se, agarrando um galho de árvore de tamanho e espessura médias, atirando-o contra o lobo que ameaça atacar. O animal agarra o objeto com sua boca, e ambos Enille e Jake conseguem ver com precisão conforme gelo surge de forma espontânea, cobrindo o galho por inteiro como uma camada de cristal.
"Isso deve causar um tremendo frostbite... Uma pequena mordida e posso perder um membro. Huh... 'Frostbite'... Quem diria que esse nome viria tanto a calhar." Jake pensa, percebendo o congelamento completo e imediato de todo o galho.
Enille está sem flechas, e por isso estende suas duas mãos para frente. Um estranho fenômeno luminoso é visto a se intensificar nos arredores de suas palmas.
"Jake, vamos ter que lutar juntos! Essas coisas não nos deixarão ir a lugar nenhum!" Ela afirma, materializando uma forma no ar.
Jake observa conforme o ar se une, comprimindo-se em um único espaço. Uma luz esverdeada emana das palmas de Enille enquanto o vento se acumula em forma de uma flecha ou pequena lança. Essa é uma demonstração da Magia utilizada pelos habitantes desse mundo.
"Então isso é Magia... Tenho de observar mais de perto, e para isso..."
Jake corre em direção às bestas, preparando um soco potente. Todo o ar em cerca de um metro de diâmetro desses animais torna-se inacreditavelmente frio.
Enille dispara aquela Magia em forma de projétil. Não há destino certo, e isso é usado apenas para dispersar o grupo. Assustados pelo ataque em alta velocidade, cada lobo desvia para um lado.
Agora dispersos com sucesso, Jake poderia focar-se apenas em um deles, o mais próximo de si. Em reação à sua investida, o animal prepara uma mordida, planejando saltar sobre ele, contudo é superado pela enorme velocidade dos golpes do rapaz, que consegue acertar um poderoso soco em seu abdômen.
A potência física elevada de Jake fez o lobo branco ser propelido alguns metros no ar, antes de enfim cair ao chão. Entretanto, ainda levanta-se, mostrando grande resistência.
"Um golpe não é o suficiente para nocautear. Entendo."
De todo modo, é perceptível que já não está em bom estado para combater, e embora tenha resistido, o grande lobo já não consegue mais lutar com o mesmo afinco.
"Um segundo golpe e tudo está acabado."
Um som afiado literalmente corta o ar.
Enille dispara mais um de seus projéteis de ar, o que finalizou a criatura ao abrir um rombo em seu tórax, um grande e perfeitamente redondo buraco sangrento, que atravessou o tronco do robusto animal completamente, rasgando de pelagem a ossos.
"Magia é realmente útil. Tenho de aprender a usar." Jake pensa, avaliando o modo como aquele lobo aparenta ter sido atingido por um disparo antitanque.
Enille é mais do que capaz de lidar sozinha com a ameaça, e isso Jake pode atestar com total certeza. Entretanto, ele sabe que ficar parado não há de gerar uma boa reação por parte da garota, e decide continuar ajudando.
Assim, Jake nocauteia o segundo lobo, atirando-o no rio com um chute sobre-humano. O canídeo mágico é lentamente levado pela correnteza sem resistência. Assim, apenas o terceiro restava.
Trabalho fácil. O terceiro lobo é eliminado de forma simples. Enille estende a mão direita, liberando uma espécie de impulso de ar, que repele o animal mágico por uma grande distância, como uma onda telecinética. Ele choca suas costas contra uma grande árvore, e não possui tempo de reagir antes de ser internamente esmiuçado por um golpe desferido por Jake. Aquilo terminou.
Dada a vitória, a garota aproxima-se da besta caída.
"Essas coisas não deveriam estar por aqui..." Emile aparenta estar preocupada.
"Eles não são naturais dessa parte da floresta?" Jake pergunta.
"Definitivamente não..." Ela responde.
Enille ajoelha-se, deslizando a mão direita pela pelugem suave do animal.
"São Lobos Brancos da Geada. Seu habitat natural são os picos nevados das montanhas próximas. Nunca desceram tanto até a floresta... Para falar a verdade, eles sequer saíram das áreas mais frias... O que essas coisas estão fazendo aqui, tão próximos das pessoas...?"
Um olhar de pavor toma a face da jovem moça. Estas feras em particular não são extremamente perigosas, contudo, o simples fato de estarem aqui significa que algo muito pior pode vir a descer das montanhas.
Ela levanta-se imediatamente.
"Temos de ir rápido. Precisamos avisar a cidade acerca dessa terrível descoberta..."
Eles caminham em passos rápidos. Jake observa a garota, a pensar.
"Ela definitivamente não é fraca. Sendo assim, por qual razão não conseguiu se defender contra aqueles sujeitos encapuzados? Não consegui nocautear um Lobo Branco da Geada com apenas um golpe, contudo, foi bastante fácil derrotar aquelas pessoas. Há de existir alguma razão por trás disso."
Jake olha para frente ao perceber uma mudança no cenário: as grandes muralhas de Calendas exibem-se imponentes logo diante de seus olhos.