Vila Nata, um pequeno habitat que abrigava alguns milhares de habitantes, localizava-se ao extremo norte, mais precisamente no nordeste da cidade Mangolândia. No passado, a vila era tranquila, sem a presença de demônios nas redondezas, como se uma força invisível a protegesse.
Contudo, nos últimos três anos, a situação mudou. Gradualmente, demônios começaram a se aproximar. A cada ano, surgiam criaturas mais poderosas, e a proteção que antes parecia inabalável começava a dar sinais de fraqueza.
Em meio a esse cenário, algo peculiar ocorria num beco da cidade, uma cena que se repetia frequentemente: uma criança caída no chão, ferida, enquanto outras crianças a observavam com desprezo.
— Eu não canso de sentir nojo desse seu cabelo. É grotesco. Cada fio me dá vontade de vomitar, e eu mal consigo olhar para você sem pensar o quanto isso é feia. — disse uma das crianças com nojo.
— Sim, parece uma velha — respondeu a outra, em tom zombeteiro.
Outra criança, assistia às meninas insultarem a garota caída, pegou uma pedra do chão e, sem hesitar, atirou-a contra ela. A pedra atingiu seu rosto com precisão e abriu um corte que fez o sangue escorrer lentamente pela pele pálida. A menina, imóvel, não ousava olhar nos olhos de seus agressores. Em vez disso, mantinha a cabeça baixa e encarava o chão como se quisesse desaparecer.
As meninas continuaram a atormentá-la por mais algum tempo e empurravam-a e ria de sua dor, até que, finalmente, perderam o interesse e se afastaram.
Após o silêncio tomar conta do beco, a garota, que até aquele momento havia suportado tudo sem demonstrar fraqueza, abaixou ainda mais a cabeça. As lágrimas, que ela havia reprimido por tanto tempo, começaram a escorrer de seus olhos, quentes e silenciosas. Seus lábios tremiam de emoção contida, enquanto um profundo desespero tomava conta de seus pensamentos. Ela se desesperava, num sussurro íntimo que não ousava se tornar voz:
Mamãe, me salve!
Após longos minutos de choro intenso, a garota finalmente conseguiu se recompor. Secou as lágrimas com a manga da roupa suja e limpou o sangue do seu rosto. Com uma expressão endurecida, fechou o semblante, como se erguesse uma muralha invisível em torno de si. Sem hesitar, levantou-se e começou a sair daquele beco.
Conforme caminhava pelas ruas mais movimentadas pelo comercio, outras pessoas começaram a aparecer. A cada passo, sentia os olhares pesados sobre si. As pessoas a observavam com desprezo e cochichavam entre si, como se sua simples presença fosse um incômodo.
— Droga! Eu vi a amaldiçoada, e agora meu dia vai ser uma merda. Não consigo acreditar que vou ter que lidar com isso novamente.
— Por que ela simplesmente não morre? É frustrante saber que ainda está por aí, atrapalhando tudo e todos.
— Esse seu cabelo…
A garota seguiu em frente, sem deixar transparecer qualquer reação aos olhares ou murmúrios ao seu redor. No entanto, ela podia ouvir cada palavra dita por aquelas pessoas. Para ela, a capacidade de escutar tão bem não era um dom, mas uma maldição, algo que a condenava a absorver comentários cruéis que apenas aumentavam sua dor.
Seu caminho a levou até uma pequena casa de tijolos, simples e desgastada pelo tempo. Sem olhar para trás, ela abriu a porta e entrou.
Naquele cômodo, uma mesa simples ocupava o centro, com quatro cadeiras dispostas ao redor e no meio da mesa, uma única vela.
— É você, Ui?!
— Sim, Tia!
Assim que ouviu, saiu rapidamente de um dos cômodos, segurando uma colher de pau de madeira em uma mão e com um lençol que cobria a cabeça. Sem hesitar, acertou a garota e, com os olhos furiosos, gritou:
— Quantas vezes tenho que dizer?! Eu não sou sua tia, sou Ai, a sua adorável irmã mais velha!
— Me desculpe, irmã.
— Olha só como está o seu rosto, sua idiota! — disse enquanto retirava o lençol. — Elas fizeram isso de novo?
Aí limpava o rosto da garota, enquanto Ui, silenciosa, apenas balançava a cabeça em concordância e aceitou sem questionar. As lágrimas começaram a se acumular nos olhos dela e ameaçava cair. Ao perceber, Aí limpou rapidamente o rosto da menina mais uma vez e, com uma voz firme, disse:
— Ei! Seja forte sua idiota, não quero uma chorona em casa.
— Sim.
Ui sorriu e abraçou-a, mas a sua irmã rapidamente se afastou dela e gritou:
— Não toque em mim, sua idiota!
Ela abaixou a cabeça, tomada por uma tristeza silenciosa. Mesmo assim, um leve sorriso surgiu em seus lábios, quase imperceptível, como se estivesse, mais uma vez, resignada a algo que já havia aceitado há muito tempo. Era um sorriso triste, de quem sabia que certas batalhas não poderiam ser vencidas.
— Droga, eu posso estar cuidando de você, mas ainda assim você é uma criança amaldiçoada. Tome cuidado, ouviu?
— Sim.
— Ai, pare de maltratar ela — surgiu um homem por trás e colocou a mão na cabeça de Ui.
— Seu idiota, não pegue o cabelo dela!
— Ainda com isso? Ela não é amaldiçoada.
— Mito! — disse com um sorriso no rosto.
— Voltei, Ui, estás bem… espera, isso aconteceu de novo?
— Isso…
— Já falei com o chefe da vila, mas isso não mudou muita coisa. Ui, escuta, você não precisa aceitar tudo assim. Revide! A única forma de lidar com a violência é com mais violência. Não deixe que te vejam como uma vítima.
— Mito, não diga isso! E tire as mãos da cabeça dela agora!
— Cabelo? Está falando desses cabelos lisos e brilhantes? — disse enquanto acariciava.
— Você que sabe, mas não me toque mais tarde.
— Eu já disse, os cabelos delas não são amaldiçoados.
— Podes dizer, mas grande parte dos demônios têm cabelos brancos.
— Não se prenda a isso Ai, e você ainda é nova para entender tudo sobre os demônios.
— Mas eu já tenho 16 anos!
— Hahaha! Realmente.
— Haaaa! Faça, o que quiser — disse enquanto voltava para o antigo cômodo que ela havia saido.
Enquanto a conversa se desenrolava, Ui mantinha um sorriso no rosto, embora suas emoções fossem complexas. De todos que habitavam aquele lugar, apenas Mito a via como uma pessoa normal; ele sempre encontrava um momento para acariciar seus cabelos e oferecia um conforto que poucos sabiam proporcionar.
O dia seguiu seu curso habitual, até que a noite chegou. Ela se dirigiu a um dos quartos para dormir na qual era bem simples possuindo uma cama e um guarda roupa, ela deitou-se na cama com um sorriso que iluminava seu rosto. O dia havia sido especial, repleto de momentos ao lado de seu amado. Abraçou a almofada e sentiu um rubor em suas bochechas, como se a lembrança dele a aquecesse por dentro.
Mito!
No entanto, algo incomum estava prestes a acontecer. Ui ouviu um barulho diferente dos habituais gemidos que ecoavam do quarto ao lado. Curiosa e apreensiva, levantou-se e dirigiu-se à porta, de onde o som parecia ter vindo. Ao abrir, não encontrou nada que a tranquilizasse, e a incerteza a invadiu.
Mito e sua recém-esposa ocupavam o quarto vizinho, e não havia mais ninguém ali, então, hesitante, decidiu voltar para o seu próprio quarto. Contudo, ao se aproximar da porta, escutou passos sutis que quase escapavam de seus ouvidos atentos.
Virou-se rapidamente e viu uma figura mascarada de preto, que, com um movimento rápido, ergueu uma lâmina em direção ao seu pescoço. Em um impulso de desespero, ela caiu para trás e gritou. O assassino não hesitou e avançou para atacá-la novamente. No entanto, antes que pudesse desferir um golpe fatal, algo molhado atingiu suas roupas.
O mascarado se virou, e, embora estivesse envolto na escuridão, a silhueta de um homem nu com uma espada se aproximava rapidamente. Ele desferiu um corte no intruso com uma ferocidade que surpreendeu Ui. Ela com os olhos fixos naquela coisa que balançou, não conseguiu desviar o olhar.
Mito, em um movimento apressado, se posicionou ao lado da criança. Ela viu seu corpo nu, os músculos tensionados em preparação para o combate. O terror da situação se misturava à confusão, mas ela não conseguia desviar os olhos da bunda.
— Quem é você?
— Não entenda mal, o mal precisa ser cortado pela raiz.
— Entendo.
Com um impulso, avançou rapidamente e desferiu um corte horizontal contra o assassino. A lâmina do intruso tentou defender, mas não foi párea para a força do corte. Com um estalo, a lâmina se partiu, e a cabeça do assassino rolou pelo chão.
Assim que o perigo imediato foi afastado, ele se virou para Ui, sua expressão misturada de preocupação e urgência. Ele se aproximou dela e, com um tom firme, perguntou:
— Estás… estás bem? Ele te fez alguma coisa?
— Eu…
Naquele momento, ela não conseguia mais olhar para o corpo nu dele e desviou o olhar, sentindo-se envergonhada e confusa. Enquanto isso, Aí saiu apressadamente do quarto, envolta em uma toalha que realçava suas boas curvas. Seu cabelo preto estava salpicado de algumas gotas brancas.
Ela correu até seu marido e parou abruptamente à sua frente e gritou:
— Seu idiota, olha para você completamente nu!!
— Ah! — ele olhou para o seu corpo. — Me desculpe!!! — gritou enquanto corria para o quarto.
Um tempo se passou, e Mito, agora em um estado de vigilância, começou a revistar o corpo do assassino caído. À luz vacilante de uma vela, ele iluminou o rosto do intruso e franziu a testa.
— Conhece? — perguntou Ai.
— Infelizmente sim.
— O que vamos fazer se isso acontecer de novo? Eles podem me matar! Não! Eu sou jovem demais para morrer, não posso acabar assim! Isso... isso é culpa sua! Sua maldição está se espalhando por essa casa como uma sombra sinistra, infectando tudo e todos. Vá embora! Por favor, não me envolva nisso!
Ouviu as palavras de sua irmã, sentiu uma onda de tristeza profunda invadir seu coração. Embora gritasse frequentemente com ela, havia sempre um tom de preocupação por trás da irritação, mas desta vez era diferente.
A maneira como sua irmã reagiu ao ver o corpo do assassino parecia carregada de desprezo e aversão, como se cada palavra fosse um reflexo do ódio que o resto da população nutria por mim.
— Não é isso, eles vieram matar Ui.
— Ui? Então não sou eu. Ufa! Devias ter dito isso antes!
— Ai, peça desculpas.
— Quê?
— Peça desculpas! — gritou.
— Eu... Eu não vou pedir nada! A culpa é dela por ser amaldiçoada! Ela é quem deveria pedir desculpas por nascer assim, trazendo essa desgraça para todos nós. Eu não posso carregar esse fardo por causa dela!
— Ai!
— Cala boca! Eu não tenho culpa de nada!
Ela correu para o quarto e deixou uma atmosfera tensa no ar. Mito, por sua vez, voltou seu olhar para Ui, que estava com a cabeça baixa, cercada por um manto de tristeza. Ele se aproximou dela, gentilmente colocou a mão em sua cabeça e, com um tom suave, disse:
— Ui, Não se preocupe.
— Eu… estou bem…
Ele parou por alguns segundos, imerso em um silêncio pesado, enquanto segurava sua espada com mais força. Os músculos se contraíam e seu olhar se tornava sombrio. Ela observou a transformação e percebeu a fúria que se acumulava em seu amado, e seu coração se apertou.
Após um momento que pareceu se arrastar, Ele respirou fundo, tentou se acalmar. E, com uma vontade renovada, proclamou:
— Ui.
— Sim.
— Não és amaldiçoada!
Consentindo com a determinação que ele expressava, lágrimas começaram a escorrer por seu rosto, quentes e libertadoras. Pela primeira vez, ela se permitiu chorar intensamente na frente de alguém e liberou todo o peso que carregava em seu coração.
Mito, ao ver sua dor, sorriu suavemente e a envolveu em um abraço protetor. Ele a segurou firmemente, como se quisesse transmitir segurança e calor em meio ao turbilhão de emoções. Ui se afundou em seu abraço e chorou livremente, enquanto o conforto dele a envolvia, aliviando um pouco do sofrimento que a acompanhara por tanto tempo.